27/04/2012

Algumas lembranças claras


Passei boa parte da meninice em quartéis. Eu via e ouvia cousas interessantes, mas tudo muito discreto e... quer dizer, nem tudo. Isso foi no auge da ditadura, auge que também marcou seu declínio, para o desespero do rouba-mas-faz. Peço aos amigos que não façam birrinha e leiam tudo até o fim, não sou de direita, de esquerda, de cima nem de baixo, eu sou o que sou e é isso que eu sou. Eu sou o marinheiro Popeye! Poo-poo!

Lamento informar, mas gente inocente morreu sim, torturada. Comentava-se a boca miúda de pessoas que, de alguma forma, desagradava figurões, ou era excêntrica demais para a mente estreita de muita gente com prestígio, confessou crimes que não cometeu para ser assassinada de forma rápida, após longas sessões de tortura. Não, petebas, os policiais em questão não falavam disso com satisfação, falavam com muito pesar. Mesmo os oficiais diziam que já tinham passado tempo demais no poder e que deveriam ter respeitado os seis meses de prazo que deram, quando do golpe, ou revolução para alguns; palavras mudam de significado, neste início de século, então, até cueca ganhou bolso!

Tenho conhecimento pessoal de policiais que usavam do aparato da repressão, para controlar suas famílias. Especialmente se fosse com filhas. Assim que chegavam em casa, da escola, eram interrogadas de forma bruta sobre o porquê de terem conversado com um homem, durante o recreio, ainda que esse homem fosse um professor antigo. Os outros, apesar de nada poderem fazer, pois tratava-se de gente preciosa para quem estava e queria permanecer no poder, expressava claramente sua discordância. Levar o quartel para casa, comentavam, era como um médico levar um rim para operar na mesa da sala de estar.

Não, meus queridos, eu não imaginei tudo isso. São cousas claras que ainda trago nas lembranças, mais vivas do que factos recentes.

Não que o Lula seja boa bisca, na verdade não o conheço e não posso dizer se é, trata-se de um político e desconfio dele por antecipação, mas em uma época em que nem todos (na verdade, bem poucos) tinham telephone em casa, era comum nestas terras planaltinas as convocações de emergência, com oficiais mais ligados à política alegando que o "Lula está marchando para Goiás". Imaginem o que significava isto na época. Se hoje, com internet e todas as facilidades de se conseguir uma informação mais ou menos confiável, as pessoas têm preguiça ou nem sempre lêem o que não querem, imaginem naquela época. Havia censura, censura acirrada, então era fácil deduzir que não mostravam para não alarmar a população, e os soldados ficava aquartelados, alguns tirados da lua-de-mel para isso. Grande parte da raiva que muitos militares goianos têm dele, saiu disso. Grande parte das teorias da conspiração brotaram assim.

Por falar em telephonia, foi uma época em que o governo tinha o monopólio dos serviços essenciais, pelo que poderia ter popularizado as telecomunicações, sem praticamente ninguém para se opor. Mas não o fez. Os motivos são fáceis de se imaginar. Linha telephônica era tão difícil, que muita gente, há até pouco tempo, ainda vivia de alugar as suas. Havia uma bolsa de linhas telephônicas no Partenon Center, na Rua 4. Na praça em frente, uma central de telephones públicos toda de acrílico. Pasmem, eu me lembro ainda hoje daquela sede futurista, linda de se admirar, e sempre com bastante gente dentro. O acrílico das cabines era fumê, para dar privacidade. Hoje, infelizmente, é só lembrança em minha memória maltratada. Aliás, a Goiânia linda, limpa e civilizada, é uma lembrança dolorosa.

Lembro com clareza dos escândalos gerados pela máfia portuária. Muitas mortes, muitas ainda hoje insolutas (ou encobertas) e chocantes foram motivadas por disputas de poder, por desavenças e tudo mais. O sindicato que monopolizada o Porto de Santos, escolhia quem poderia ou não trabalhar, quase sempre escalando mais que o dobro do necessário de mão-de-obra, mas só dos sindicalizados. Metade fazia corpo mole, a outra metade fazia cousa nenhuma, encarecendo muito as operações portuárias. Quando havia eleição para a presidência desse sindicato, então, as delegacias ficavam sob tensão de guerra, mas pouco podiam fazer, porque o clima de máfia era muito maior do que só aparente, havia um código de silêncio que custaria a vida do delator, quando não também de sua família.

O descontentamento dentro dos próprios quartéis, aliado às dificuldades enfrentadas pelo povo, era maior do que a censura, então o humor ácido dos Millôr, Jaguar, Kateka e cia ltda aflorava. O problema é que toda a boa infra estrutura que o Brasil erguera, foi conseguida a custa de muito endividamento externo. Dizia-se que, quando um presidente brasileiro ia à Nova Iorque, passar o chapéu (sim, havia charges descaradas ilustrando isso) alguém perguntava "Como vai o Brasil?" e o presidente, constrangido, respondia "O Brasil vai bem, mas o brasileiro vai mal". O caso era muito mais grave no Nordeste, onde os coronéis que queriam uma ditadura eterna (e se diziam 'cristãos') ainda eram absolutos, e ainda hoje mandam muito. Lá, as constantes secas nos faziam ter imagens que hoje só conhecemos dos países mais sofridos da África. Chegou-se a cogitar, também em conversas de quartel e a boca miúda, reduzir a altura mínima para alistamento, porque a desnutrição estava nos dando uma geração de nanicos, que também sofriam com a falta de glicose, que estaria prejudicando também a capacidade de raciocínio. Exagero ou não, o facto em si aconteceu, e durou até fins dos anos oitenta, sempre com prefeitos clientelistas cadastrando quem tinha título de eleitor, para escolher quem receberia a visita do caminhão-pipa; outra máfia, diga-se de passagem, que nunca permitiu a construção de aquedutos. Doações para o Nordeste eram abundantes, mas poucas chegavam ao seu destino.

Sabem aquela história que seus pais falam de "lei que pega e lei que não pega"? Metade não pegava, especialmente as de trânsito. Foram décadas para que a ausência de capacete ou cinto de segurança, realmente começasse a dar punição. Lembrando que essas leis foram criadas quando a polícia militar era responsável pela fiscalização de trânsito, tendo então poder de flagrante e prisão. Mas sempre aparecia alguém que conhecia um político ou um oficial e quebrava a multa. E o coitado do policial, tentando fazer seu trabalho, queria quebrar a cabeça na primeira parede que visse pela frente, só de raiva, já que não podia fazer mais nada. Afinal, ensinar 'macheza' ao garoto, dando-lhe o volante antes de ter ideia na cabeça, era mais importante do que a segurança alheia.

O último general a assumir a cadeira eléctrica da presidência, foi João Batista de Oliveira Figueiredo, dele eles gostavam, mas não comentavam muito. Coube-lhe a tarefa de fazer transição, de se livrar da batata quente e deixar os militares fazerem o que era sua função. O que lembro dele, é que era curto e grosso, dando recados inequívocos aos rouba-mas-faz que queriam continuar no poder sem dar satisfações ao povo que os sustentava... e sustenta até hoje... eleitor idiota. Foi ele quem deu o pontapé nos fundilhos do pro-álcool, hoje rebatizado ridiculamente como etanol, como se o álcool de supermercado não pudesse alimentar o motor. Na época, estávamos no auge da crise do petróleo, deflagrada pelo Kadaffi (que hoje se contorce nos umbrais mais profundos) e que deu fim à era dos muscle cars, inclusive os nossos. Apesar dos problemas iniciais, e da inicial necessidade de se subsidiar o combustível, ele apresentava uma vantagem inegável, permitia ao motor gerar mais potência e emitia só o carbono que a cana retirava do ar.

Para terem uma ideia, um Fusca 1600 à gasolina, produz 52cv, o à álcool despeja 59cv, diferença suficiente para parecer que tem um motor 1800 empurrando o carro, especialmente na arrancada. Com a compressão muito maior, responsável pelo ganho de potência, a diferença de consumo era bem menor do que a de hoje. Devidamente preparado, o rendimento térmico do motor era ainda maior. Claro que os flex mal adaptados acabaram com essa vantagem, no máximo 2cv a mais em motores de 120cv, que poderiam ter fácil 25cv mais potência, se fossem só à etanol.

Também havia subsídios ao gás de cozinha, motivo pelo qual era vetado (mas se faziam vistas grossas) ao uso automotivo, e ao diesel, motivo pelo qual era vetado (mais vistas grossas) ao uso em carros de passeio; embora o motor de ciclo diesel não seja necessariamente proibido. Hoje o diesel não tem mais subsídios, mas continua proibido graças às donas maricotas que a base aliada impõe ao governo, no lugar de técnicos.

Algo que vem de longe, é a mentalidade medíocre do "É do governo, então pode quebrar". Claro que não se compara à delinqüência que temos hoje, mas o próprio funcionalismo público depredava e dilapidava o patrimônio público, como se fosse coisa sem dono. E quem se importava? Todo mundo tinha raiva do governo, à exceção dos que participavam dele, é claro. Ninguém parava para pensar que estava onerando seus próprios bolsos, que levar um aparelho usado de telephone para casa seria corrupção. Qualquer semelhança para com os dias de hoje, não é mera coincidência, é continuismo.

Há mais uma cousa que lembro do Figueiredo. Uma vez, um garoto do povo, pobre de marré-marré, lhe pediu um vídeo-game. Era novidade no mundo todo, no Brasil, então, nem se fala! Pois lá foi ele, depois de algum tempo, levar o Atari (se não me engano) que prometera. Difícil encontrar alguém que não gostasse dele, até porque a inflação galopante da época, era atribuída aos fracassos do então Ministro da Fazenda Delfim Neto. Alguém aí lembra de alguém ter prometido um notebook, para fazer um garotinho calar a boca, e não cumpriu? Ah, claro, pobre é OBRIGADO a gostar de futebol e detestar esporte de elite...

Estou cá, selecionando e ordenando as lembranças... Lembro de o episódio de 1964 constar nos livros de história, mas sem qualquer detalhamento. Eu acredito que um grupo de garotos idiotas e bem manipulados, tenham intencionado um golpe, como quem tenta atirar pedras na lua, mas qualquer um que tenha investigado dá por ridícula a conversa de 'Intentona Comunista". Jango era latifundiário e o brasileiro ainda estava muito influenciado pela propaganda de guerra, acreditava mesmo que comunista comia criancinha. Sem apoio do povo, sem chance. Lembro também de reclamarem que a bomba tinha estourado nas mãos do Sarney, quando da época da hiper inflação, em que os preços mudavam literalmente mais de uma vez ao dia; só que ele já fazia parte do governo, durante a ditadura, disso quase ninguém lembra.

Está ficando longo!... O que mais posso dizer, sem eternizar a redação, é que as pessoas que estavam no poder, na época, ainda hoje são eleitas, especialmente a turma do rouba-mas-faz. O Figueiredo tinha tentado desburocratizar o serviço público do país, fez até campanhas para que os brasileiros abandonassem o estereótipo do machão, mas teria sido suficiente ensinar o povo a votar... Certo, estou ficando velho mesmo.

2 comentários:

Vy disse...

Jura que são "suas" essas lembranças?
Que coisa mais triste querido mago! Eu ainda sonho com um mundo justo e de gente boa, sem podridão. Sofro como você, por tudo isso que fez do nosso país a baderna que está. Ah! Mas esse mundo não é aqui, nem faz parte desse sistema, mas estou certa que a gente vai se encontrar por lá e poderemos falar de coisas lindas e verdadeiras e de como nossa esperança foi recompensada.

Boletim de hoje: churrasco, bagunça e som. Ficarei até as tantas sem dormir, já estou ficando zangada com Deus...
Beijo grande querido! Vy

Nanael Soubaim disse...

Fadinha, eu tenho muito mais lembranças realmente ruins, que fazem estas parecerem boas, mas não é o caso de colocá-las aqui.
Podes ter certeza de que te encontrarei por lá, depois de terminar o serviço pesado que ainda tenho... que inclui gente(?) como teus vizinhos.
Um abraço de chocolate com damasco.