28/07/2011

Ipse venena bibas

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Meritíssima Juíza; digníssimo corpo de jurados e juradas; nobre auditório, futuros colegas e concidadãos de boa índole. Começo agora a desfazer uma injustiça, não contra uma pessoa, que interesses pessoais não permearão minha explanação, mas contra a dignidade de toda uma classe social historicamente oprimida e achincalhada!

Mostrarei, caríssimos e caríssimas, que o cidadão mostrado como vítima deste acto infeliz, na realidade, foi o provocador e único responsável pelo mesmo. Aliás, minto, perdoem. Meu cliente teve sua parcela de responsabilidade, não resistindo à tentação de baixar a crista petulante de um exibicionista inato e notório, pondo-se em um acto de loucura momentânea à agressão física que, convenhamos, não resultou em danos maiores do que os por ele sofrido. Lesões superficiais, uma camiseta de péssimo gosto rasgada e a perda de seu aparelho, que nem era novo.

Não, eu não nego, nem meu cliente, o custo das conseqüências de um acto de violência. Acto, digníssimos, pelo qual ele já pagou, passando quase um ano em uma cela superlotada, sem ventilação, sofrendo toda sorte de agressões e humilhações, com alimentação que minha mãe não dá nem, aos porcos de sua chácara. Meu cliente não nega a paga pelo que fez, tanto não nega que já quitou moralmente com sobras. Não fosse assim, não teria o respeito do delegado que o manteve em cárcere, nem dos plantonistas com quem conversava a noite inteira.

Devo lembrar, meritíssima, corpo de jurados e juradas, que há cerca de seis meses houve uma fuga em massa da delegacia, quando criminosos de verdade abalroaram a frágil parede de suas instalações com um caminhão. Somente três, vejam bem: não trinta, mas três apreendidos não fugiram, dos cento e setenta que lá estavam. Dois deles porque estavam no banheiro de sua cela (sabe-se lá fazendo o quê, não é da minha conta) e não ouviram o estrondo. Já o meu cliente, caríssimos... meu cliente é saudável (ou teria sucumbido ás condições em que estava) e tem boa velocidade de corrida. A parede da cela de meu cliente também veio abaixo! Não mais do que vinte centímetros o separavam da liberdade ilícita que os demais não deixaram escapar! Mas ele não. Ele, de livre e espontânea vontade, com os brios que a vida ainda não conseguiu tirar-lhe, permaneceu impávido e sereno no lugar onde estava, em um canto, para que os fugitivos não o identificassem como um traidor, olhando para baixo a fim de não identificar os fugitivos e, assim, preservar a integridade de sua família, que o aguarda na humildade acolhedora de seu lar.

Fosse meu cliente realmente um criminoso, ele estaria livre. E eu teria abandonado a causa! Mas ei-lo aqui, meus amigos e minhas amigas. Olhem bem para ele! Embora emborcado pelos sofrimentos sofridos, ele está altivo e tranqüilo como sua consciência, consciência de quem sabe que pagou seu débito e pode olhar de frente a sociedade que ora o julga por seus actos. Ele já os quitou. Ele não se envolveu com os criminosos que o cercavam e ameaçavam a todo momento, jamais sequer falou alto com ninguém na delegacia, como todas as testemunhas asseguraram.

Os presentes, que em suas conversas antes desta sessão demonstraram boa cultura, devem ter ouvido falar das impressoras 3D, que ainda são novidade em nosso país. Pois como prova de boa vontade, durante o purgatório em que estava metido, meu cliente aprendeu a operá-las, na delegacia. Sim, ele aprendeu uma profissão e, surpresa! Ele já tem emprego garantido para quando sair deste tribunal à liberdade!!

Sim, jurados e juradas! Sim, meritíssima, a libertação de meu cliente será também o recomeço glorioso de sua vida sofrida! Uma página a ser virada para sempre! Ele me pediu que lhe conseguisse um emprego, e quando eu forneci suas qualificações, tive que selecionar o empregador. Mais uma prova da boa vontade de meu cliente em começar vida nova. Está tudo nas cópias que lhes entreguei, desde o curso de auto-cad e studio 3D até a operação das máquinas. Ele sai daqui para se apresentar ao novo trabalho. Olha, moças, ele tem perspectivas de ganhar bem com sua produção

Surpresos, senhoras e senhores jurados? Pois a meritíssima juíza, que acompanha o caso desde o início, me parece sim estar é satisfeita com o que já esperava.
É verdade, meus caros, que meu cliente subtraiu um tablet da suposta vítima. Que essa suposta vítima saiu do episódio com lesões e teve o aparelho destruído. Meu cliente não se furtou o dever de assumir e dar cabo de sua dívida. Longe disso. Eis em suas mãos os relatórios que comprovam sua submissão prévia à pena.
Acontece que a suposta vítima é figura bem quista em rodas políticas hoje sob investigação. São amizades poderosas, que deram uma estranha rapidez a um processo que normalmente seria lento, e permitiria a meu cliente responder em liberdade. A meritíssima já está a par e determinou a investigação interna, tendo estranhado a conduta do antecessor.

As testemunhas de acusação, ficou claro a todos, entraram em contradição várias vezes, por eu não ter me atido às perguntas de praxe e não ter feito as mesmas para todos, embora todas exigissem as mesmas respostas. Só troquei "bola" por "esphera", ou "grosso" por "espesso", e uns contradisseram aos outros.
Com a permissão da meritíssima já concedida, vou revelar aos jurados e juradas quem é realmente a suposta vítima, que disto nada tem.

Vamos aos factos. O acusador tinha o hábito de passar desnecessáriamente por aquela comunidade pobre, fazendo barbaridades com seu carro importado, pondo os pedestres em risco e exibindo suas posses aos moradores. Depois ia para o bar e ria com seus amigos pela humilhação que impunha a toda uma população. Há gravações comprovando isso. Em uma área pobre, carente de serviços públicos, ele costuma exibir maços de euros, cartões sem limites e jóias caríssimas. A defesa bem lembrou que ele tem o direito de ir e vir sem ser incomodado. Concordamos. Mas o direito de um termina na fronteira com o do outro, e ele invadiu o de uma comunidade inteira. Ostentando tentações ás quais sabia ser difícil, quase impossível um pai de família desempregado resistir, assumiu o risco de ser agredido para a subtração dos bens.

Quem anda se exibindo, meus amigos e minhas amigas, chama atenção. Ele quis chamar atenção, e chamou. Que dê graças a Deus de ter sido a de um homem com vergonha na cara, que é o meu cliente! Que levante as mãos para o céu por os verdadeiros marginais da área não estarem lá, naquele momento! Porque se estivessem, o réu seria outro e a acusação seria por latrocínio! Ele quis ser atacado! Ele quis ser vítima para atrair a piedade do público! Mas ele provocou! Foi arrogante! Foi prepotente! Foi uma ameaça à dignidade da família de meu cliente.
Meu cliente não ficou com o bem subtraído e, em suaves prestações, poderia tê-lo ressarcido.

As concidadãs devem estar estarrecidas, reconhecendo de minhas palavras um jugo que tenta tolher-lhes sua dignidade desde tempos imemoriais. Eu explico. A suposta vítima responde, hoje, à quinta acusação de atentado violento ao pudor. Estranhamente, as outras quatro vítimas foram encontradas mortas ou desapareceram sem deixar rastros. Mas a actual, embora de aparência humilde, é amiga de gente influente e está recebendo a assistência e proteção devidas. Agora a justiça ás mulheres vítimas será feita, ainda que póstuma.
O meu cliente fez questão de que o processo corresse normalmente e se comportou com dignidade, mesmo com os habeas corpus negados. A suposta vítima fez de tudo para não ir a juri. Tolheu o direito de suas vítimas de irem e virem sem serem molestadas, e eram todas trabalha...

 - Eu vou acabar com você! Se não calar a boca você vai ver só!

A juíza determina que o valentão seja retirado do tribunal. Ele resiste e acaba sendo preso por desacato. mesmo com todas as instruções do advogado, a arrogância de quem jamais respondeu pelo que fez, desde criança, não tolerou ser cobrado em público por seus delitos.

O advogado de defesa dá continuidade e inclui suas ligações com políticos que desviaram verbas e tiveram seus processos arquivados pelo congresso, evasão de divisas, sonegação, enfim, tudo a que tem direito um machão misógino que teve o cartão de crédito como babá. Não é a primeira nem a última ameaça de morte em sua carreira. Ter colocado o rapaz contra a parede e feito tomar juízo surtiu efeitos, podendo se dedicar então somente ao processo. Encontrar podres de quem se acostumou á impunidade foi fácil. Plantar cópias de provas perdidas contra o antigo juíz nem tanto.

Ao fim, juri e magistrada reconhecem que o réu já cumpriu mais do que deveria e é posto, sob advertências, em liberdade. Como efeito colateral, angariou a simpatia do jurado e lá seus primeiros clientes. Ele foi um ladrão, é verdade, teve a oportunidade e teve a desculpa que queria para isso. Se ele realmente merecia esta chance, foi decisão do tribunal.

3 comentários:

Adriane Schroeder disse...

Gostei muito do enorme sarcasmo que destilaste no texto!

Umbelina disse...

Muito bom.
Abraços

Nanael Soubaim disse...

Sarcasmo?? Eeeeeeeeeu??? Imagina!!!

Abraço, meninas.