27/12/2008

Sim

Amassou a latinha de coca cola como pôde (força bruta não é o seu forte) e jogou na lixeira. Pensou bastante na sua situação, mas não encontrou saída. Que fazer? Cada um a quem contou a história fez festa, não poderia contar com ninguém.
Andou a esmo pelo Setor Aeroporto, sem definir um destino. O sol inclemente não assusta mais do que a visão que se descortina. Nem vê que quase vira recheio de pastel, sob as rodas de um Scânia cheio de carros novos. O xingamento do motorista, seguido de um gracejo grosseiro, nem lhe impressionou os tímpanos.

Tem muito medo. Sempre olhou com desdém para os eventos relacionados, mas agora é consigo e não vê luz no fim do túnel. E se ver, na certa é uma locomotiva na contramão.

No fundo sabe que não é tão terrível assim. Tem uma prima cuja vida foi completamente desgraçada por uma incursão mal sucedida, levou anos para recomeçar a viver, mesmo assim nunca mais foi a mesma. Ficou taciturna, recolhida e demasiadamente sensível. Entretanto, sabe que a maioria supera até razoávelmente bem.

Fácil seguir este raciocínio, quando não é consigo. Facílimo dizê-lo aos outros. Mas agora é consigo. Não percebe que atravessa a Anhangüera e entra no Setor Oeste. Não percebe nem mesmo que está suando mais que kanangô na sauna, pois não teve cabeça para tirar a jaqueta e calças de couro. Não que sua motocicleta seja um bólido, é uma CB 450, mas é uma mulher prevenida, sabe bem que andar de shortinho e regata numa motocicleta pode deixar marcas horríveis por todo o corpo, ao menor esbarrão de um carro, e já sofreu vários. Pois mesmo essa previdência toda não a poupou do drama que vive agora.

Os cabelos estão completamente ensopados de suor e ela nem percebe que entrou no Bosque dos Buritis. Uma larga nuvem piedosa retarda o seu cozimento, mas ela nem se dá conta. Porque agora é com ela. Tem que tomar a decisão hoje.

Mal o corpo esfria e a chuva cai. Para quem conhece Goiânia, é fácil saber que calor em tempo húmido é prenúncio de tempestade e rios instantâneos. O zíper nem está de todo fechado, então o suor dá lugar á água da chuva, ensopando-a ainda mais.

Por um instante chega a se alegrar, mas logo o medo volta e continua a caminhar. O que disser hoje, seja o que for, mudará completamente os rumos de sua vida. Por mais que digam o contrário, não terá a liberdade de agora. Se acostumou a pegar sua CB, sem avisar nem mesmo à sua mãe, e empreender viagens pelo país inteiro, tomar banho de rio pelo caminho, usufruir do seu trabalho, correr nua à noite quando ninguém vê.

As horas não a comovem e não percebe a longa caminhada que faz. Em meio à enxurrada, no que lhe vale o couro da roupa, que apaga a maioria dos carros, ela segue indiferente. Começa a chorar enquanto anda. Mas o que está lhe acontecendo? Do que tem medo? Tudo muda o tempo todo, só os mortos não mudam, por isto apodrecem. Quando chega a hora de mudar, que se mude.

Nunca foi Cinderela, teve sua primeira experiência sexual aos doze anos, com um colega de sala do qual se despediam, pois mudou para Los Ângeles no dia seguinte. A iniciação ficou em segredo até hoje, mesmo porque se vira com seu próprio dinheiro (como entregadora, em sua bicicleta) desde aquela época e acha que não deve satisfações a ninguém. Mas agora deverá.

Estia. Ela não percebe. O sol, bem mais ameno, surge e reinicia o ciclo para a próxima tempestade. Só agora, já no Jardim Goiás, começa a sentir o cansaço. Não foi uma epopéia retilínea, vagou pelos Setores Oeste, Sul, Bueno, Marista, chegou ao Pedro Ludovico e vários outros, em uma caminhada tortuosa e arriscada, por sua desatenção ao caminho.

Com a fadiga vêm as dores dos quase cem quilômetros em condições adversas que cobriu. Agora emerge a mulherzinha que mesmo o maior dos machões tem dentro de si, quanto mais uma moça de compleição delicada, apesar de sua valentia descomunal. Não consegue dar um passo mais, volta a chorar, quer colo. Logo o tem. Alguém a pega nos braços e a leva para dentro da loja, desviando de Mercedes-Benz e Chryslers. Lhe tira a roupa de couro e logo vê um hábito arraigado da mulher, que há mais de quinze anos costuma andar com uma camiseta e mais nada sob as vestes de motoqueira. Aquele corpo o excita muito, pois foi a primeira cousa que lhe chamou atenção há dez anos, quando a conheceu. Procede os primeiros socorros e aguarda que desperte. As colegas de trabalho a reconheceram na hora, da janela da copa, o avisaram e se morderam de inveja; seus namorados/namoridos/maridos nunca as carregaram nos braços, na frente de toda a cidade, fosse qual fosse a situação. Ela começa a acordar e o vê, no que também começa a chorar. Ele nunca a viu chorando, é uma surpresa à qual não sabe responder, senão acolher e esperar.

A concessionária inteira, apesar de deixá-los à sós, espera pelo desfecho do episódio. Deixaram o saco de pancadas, digo, o estagiário espiando por uma fresta que a persiana não cobriu. Quando ela se refaz, ele faz. Alega que o tempo pedido está acabando e pergunta mais uma vez àquela moça agora tão fragilizada "Quer se casar comigo?". Meu D'us! Era tudo quanto mais temia. Aquela pergunta a faz tremer nas bases, mas não consegue sequer raciocinar e deter o "Sim, quero". O estagiário se afasta a uma distância segura e solta o berro, funcionalismo e clientela fazem a festa.

Não doeu. Sinceramente não doeu nem um pouco. Perdeu um pouco da liberdade, mas como é feliz! Ah, como é feliz sendo mãe, esposa e motoqueira!

2 comentários:

Kristal disse...

Feliz 2009, Nanael!

Nanael Soubaim disse...

Prosperidade e boas companhias, minha flor cristalina.