10/03/2007

O Beijo na Mão

Todos os dias ele ouvia "Muié gosta é de macho!" e "Beijá mão é pá baitola!", mas não se importava. O tipo de mulher que o atraia não era o mesmo que pelas quais os outros... bem... faziam homenagens solitárias.
Foi a uma livraria, onde encontrou uma colega de trabalho com a qual tinha pouco contacto. Longe dos termos técnicos e da urgência documental, ambos conversaram sobre os livros que compravam e logo sobre mais coisas. Convidou-a para um lanche, pois já era tarde e ainda não tinham almoçado. Pagaram suas compras e foram. Lá fora repousava o Fusquinha 1984 com rodas do Mercedes A160. Ela estranhou, pois a maioria dos carros é equipada com rodas grandes, excessivamente largas e escandalosamente chamativas. Ele explicou que não são muito largas e aceitam os pneus originais. Agora ela via a principal diferença: a fechadura com chave instalada na porta direita, que abriu a deixou entrar. Acomodada, ele fechou a porta e só então entrou no carro. Se perguntou de que país seria aquele homem.
Escolheram uma pizzaria que já estava aberta, para aproveitar um horário carente do serviço. Novamente ele saltou do carro, abriu sua porta e lhe estendeu a mão, para auxiliar a saída. Deixou que escolhesse a mesa e ainda lhe puxou a cadeira, só então sentou-se. Fizeram o pedido e, no decorrer da conversa, ela percebeu que não se tratava do tipo machão, que usa de gentilezas para prender a mulher e lhe tolher o arbítrio. Ele falava da reforma em sua casa, que estava fazendo aos poucos para não ter mais despesas e transtornos do que o necessário. Visava uma ampliação para acolher amigos ou parentes em uma emergência, talvez até um casamento. Ela sentiu um arrepio na espinha e um rubror indisfarçável...
-- Eu disse algo que a constrangeu?
-- Ah, não, imagina! É que essa conversa toda me faz lembrar... Bobagem.
Ele não insistiu e mudou o assunto. Chegou a pizza meia frango, meia Califórnia. Ele detestava misturar doce com salgado, mas convidou e não avisou. Deixou que a servissem primeiro. Decerto que uma pizza é muito para duas pessoas bem educadas, então embalaram o cinco pedaços restantes e...
-- Por favor, da próxima vez. Hoje eu convidei.
Ele pagou a conta. Ela pediu para ser deixada no ponto de ônibus da Praça Cívica, mas ele retrucou, argumentou que os ônibus àquela hora estavam muito cheios e perigosos, e um automóvel servia justamente para isso. Levou-a para o Jardim Goiás, pegou uma rua que só um Fusca enfrenta sem medo e deixou-a à porta do condomínio, com o mesmo ritual, mas adicionando um elemento, após dar-lhe a pizza, beijou-lhe a mão que estendia para cumprimentá-lo. Esperou que estivesse em segurança já dentro do pátio e partiu.

A segunda-feira foi um dia normal de trabalho, ele foi discreto e cortês, mas agora já tinham assuntos para os pequenos lapsos entre cada tarefa. Quando ele foi ter com o seu computador, ela pôde ver a real diferença. Ouviu colegas falando em baixo tom de suas aventuras sexuais, usando de palavras que já a anojavam antes, mas agora a convenciam a colocar o cedê dos Carpenters para não ouvir mais. E lá iria se interessar pelo formato do clítoris alheio? Mas está muito fácil! E pensar que já se desmanchou por esses tipos. Eeeeeeeeecaaaaaaa!

Se encontraram novamente na mesma livraria, onde ele acertava a tarde de autógraphos...
-- Não! Você escreve?? Ah, mas eu quero ver!
Sacou um dos livros de cortesia que lhe cabiam e lhe deu. Título: "O Homem Que Pensa Com a Cabeça de Cima". Não escapou de dar uma dedicatória, como sempre, cavalheiresca. Ele sabia que estava caçando briga em um país ainda machista, principalmente em um Estado mais machista do que a média, mas a boa receptividade da colega o encorajou a seguir adiante com as cento e quarenta e sete páginas de argumentos e parábolas. Ela devorou o livro em poucas horas e passou a compreender o comportamento do amigo, não era homossexualismo, muito menos assexualismo. Era educação mesmo, coisa de berço.
Na tarde de autógraphos, lá estava ela com a família. Os quatro testemunharam o que a moça dizia, a elegância e a boa educação no trato com as pessoas era tão contrastante com o que se acostumaram, que o pai da moça perguntou mais uma vez "Tem certeza de que não é viado?", e mais uma vez ouviu "Tanto quanto de que você não é". Acenou e ele viu. Seguiu a passos firmes, mas suaves, em sua direção e ela já sabia o que fazer, ergueu a mão meio caída com o braço semi-estendido e ele a beijou. O mesmo com mãe e irmã da moça. Levou-os para conversarem enquanto ele atendia os amigos e parentes que conseguiu reunir para sua estréia no mundo das letras. Ela se sentia a própria Audrey Hepburn, sendo tratada daquela forma. Passou a prestar mais atenção ao que veste e aos próprios modos, desde aquele primeiro beijo na mão. Algumas conhecidas se afastaram, claro, mas fazer o quê? Já se sentiu muito melhor usando um vibrador do que com um homem na cama, não queria ficar assim para o resto da vida. Agora, pensando bem, iria começar uma conversa mais "séria", aproveitando a disponibilidade...
-- E a sua casa?
-- Já está pronta - disse em um sorriso discreto - Fiz uma suíte e deixei meu antigo quarto para hóspedes. Também há um jardim bem diversificado, mesclado com uma horta, na frente...
A mãe da moça não tinha dúvidas quanto às intenções do rapaz. Nenhum galã de cinema, nem gordo nem atlético, mas, como costumava dizer às filhas: "Homem com cara de homem, o resto é descartável". No decorrer da conversa, ela chega ao ponto...
-- Tem espaço pra crianças?
-- Tem. Tem muito espaço, coloquei película nos vidros para evitar uma tragédia e há uns brinquedos no quintal.
-- Cara, você tá querendo casar! Pode ser comigo?
-- E com quem mais seria?
No exacto momento o som ambiente toca Gigliola conquetti: Dio, Come Ti Amo. Como resistir? Tudo conspirou a favor. Nunca transaram. Mas quem tem pressa? Um contratempo se deu quando um homem foi tirar satisfações, levou para o lado pessoal tudo o que estava escrito, exceto a parte que diz "Mas esse mesmo brutamontes é vítima de uma sociedade torpe que exige tal comportamento, ainda que o torne infeliz...". Com a ineficácia da argumentação, viu seu nariz sangrar e a necessidade de dominar o sujeito. Tudo rápido e sem dar tempo para espetáculos. Perder esse homem? Mas nem que a água seque e o fogo molhe. Tratou de cuidar de seu homem e realinhar-lhe a camisa. Com os parentes do namorado presentes, passou a conhecer-lhe os defeitos, as qualidades que ainda não se apresentaram, sua história meio melancólica e, principalmente, a confirmação do cavalheirismo à britânica. Foi ter com ele e marcar seu território, o incidente chamou muita atenção, havia mulher demais no ambiente para o seu gosto.

Casaram-se seis meses depois. Não é uma paixão arrebatadora, do tipo que devasta tudo ao redor e depois te deixa cair no buraco que cavou, é o amor maduro dos que já sabem o que querem da vida. Não deixaram seus empregos, pois até o amor em uma cabana precisa pagar as contas no fim do mês. Os livros se tornaram uma boa renda extra e, principalmente: Beijo na mão, abrir e fechar a porta do carro, puxar a cadeira, ser tratada como uma verdadeira rainha. Ah, isso não tem preço. Até passou a gostar do aspecto "retrô" do amado, e está criando o casal de filhos para seguirem os bons exemplos do pai. E todos os dias repete "Dio, Como Ti Amo...".

9 comentários:

Cosmic Girl disse...

Andei lendo posts mais antigos teus e a.do.rei! Obrigada por ter me visitado. Ah, não se assuste com o meu jeito...ehuehe sou uma pessoa calma, embora inconformada com a realidade. Volte sempre tah?!

Anônimo disse...

Dio, como gostei deste texto.
Tem certeza que não é de verdade?
Isto não é uma história real?
Amei, amei, amei.
Quase chorei!

Lisi disse...

Muito lindo Nanael. Textos assim me fazem sonhar...

Mary Jane disse...

lindo texto. me deixou emocionada, porque amor assim a gente não vê em qualquer lugar.

dani

Emilio disse...

seu blog e muito bom....

Nanael Soubaim disse...

Meus bons amigos, suas palavras enaltecem a missão à qual este blog se destina. Minha sincera gratidão e aguardem, estou preparando mais material.

Unknown disse...

Oi Nanael, separei um tempinho aqui para ler seu texto e fiquei impressionada com a qualidade dele e com sua sensibilidade!!! Achei bem oportuno mencionar "prender a mulher e lhe tolher o arbítrio" esta frase me intrigou, pois tipos assim costumavam me arrebatar.

Cheguei a conclusão de q vc descreveu me namorado neste texto... ele é desse jeitinho, naturalmente.

Sim, nos casaremos ;)

Fiquei perplexa com este texto AMEI AMEI AMEEEI!!!!

Anônimo disse...

AFF desculpa estou logada no pc da minha irmã... bjus Monique

Mary Jane disse...

eu não deixei!!!!

tá falando do fórum do GQDN?
eu continuo lá, só que meu nick agora é Dani F.

que bom que voltou ao meu blog!!!


beijos!