22/09/2020

O lado B dos civilizados

 

Tóquio

            A despeito de toda a admiração que se possa, e se deva ter por povos mais civilizados, é pertinente ressaltar que a utopia é um prato que alguém já pagou; nada é grátis. Quando esse alguém cessa a subvenção e por qualquer motivo não se encontra outro à altura, a utopia deixa de ser uma flor aprazível e se revela uma planta carnívora. Vamos deixar claro a diferença entre “mágica” e “ilusionismo”; a mágica faz milagres com o que se tem, potencializando e optimizando de tal forma os recursos, que permite a um pé rapado fazer com suas mãos o que nem todo magnata conseguiria fazer com toda a sua fortuna aplicada; ilusionismo pressupõe pegar o nada, dele fazer o tudo e a este dar duração eterna, transformando uma casquinha de sorvete em cornucópia… pois é a este que os defensores de utopias se apegam, criando um universo paralelo onde até as leis da física mudam, onde até a velocidade da luz é relativa, apenas para dar suporte aos seus anseios. Neste universo paralelo eles são os mestres, mesmo que mal saibam amarrar os próprios cadarços no mundo real, por isso só aceitam conversar sob as leis desse universo.

 

            Uma das regras sacras e mais furadas desses defensores é a de que existe uma sociedade justa com um sistema justo suprindo todas as necessidades do cidadão, claro que problemas existem, nada é perfeito, mas juntos avançaremos mais e mais para um país mais próspero e humano. Usar de bordões empolgantes e inflar o entusiasmo faz parte dessa defesa, por isso os jovens são tão vulneráveis a essas idéias. Se enchendo dessas idéias, se aprofundando nelas e em suas meias-verdades, esses jovens acabam se levando demasiadamente a sério e se considerando um cientista, vendo os outros como ignorantes e esfregando na cara de qualquer discordante o “embasamento” de suas convicções; não basta tê-las, é preciso impô-las. Já falei disso e de tantos outros temas correlatos, mas praticamente nada mudou verdadeiramente de 2006 para cá, e um vídeo triste de 2015 mostrou-me o apocalipse individual que já acontece há muito tempo, mas que essa empolgação pueril pelas civilizações civilizadas prima censurar a qualquer custo. Sistemas e sociedades e sistemas são como máquinas virtuais coletivas, máquinas não tem a menor obrigação de serem boas, têm obrigação de funcionar a contento e, sempre que necessário, a toda velocidade, mesmo que alguém seja atropelado. Ser bom e justo é papel das pessoas, não de entidades burocráticas.

 

            Começo falando de um dos piores equívocos, e que mais frustram emigrantes pelo mundo, o de que em países “civilizados, evoluídos e bem desenvolvidos” a sociedade por si já supre suas necessidades ou, pelo menos te garante o acesso aos meios de supri-las; e aqui se confunde necessidade com aspiração e desejo. Não me refiro a ditaduras, me aterei a países que são satisfatoriamente democráticos. Para se conseguir uma colocação digna, por mais fácil que seja, é preciso sair à rua e ouvir um “não temos vagas” atrás do outro. Pode ser rápido? Sim, pode, até no Brasil sei de casos em que a procura foi mais efêmera do que o seguro-desemprego, mesmo em épocas de recessão, mas são exceções. Ter suas reservas e fazer economia de guerra atenuam os efeitos do desemprego, mas muita gente quer manter um padrão próximo, ou até igual ao de que desfrutava quando estava empregada. Assim não adiantam seguro social e bicos esporádicos, a situação financeira vai se deteriorar mais rápido do que os sortudos conseguem uma recolocação. O pensamento de que se está em um “sistema justo de uma sociedade evoluída” deixa rapidamente de ser um tranqüilizante para se tornar um desespero, não raro acompanhado de revolta pelo sentimento de exclusão. É quando o indivíduo descobre o quanto é caro manter toda aquela infraestrutura.

 

            Para as pessoas ao redor, à amiúde imersas em seus próprios problemas, fica a impressão de que aquele problema é só seu e que tu vais, cedo ou tarde, retomar sua vida normal; boa parte do que chamamos de egoísmo se baseia nisso, na certeza inconsciente de que tudo vai se resolver por si ou que alguma entidade virá em seu socorro. Nesta certeza, em conjunto com narrativas de pessoas rudes com quem tenta ajudar, o cidadão comum prefere não se aproximar e não se inteirar dos seus dramas; aos poucos a indiferença se torna um casulo protetor de que as pessoas não abrem mais mão. Não é só em países violentos como o nosso que existe medo social, ele existe em toda parte e por diversos motivos, este é só um deles. Ainda pesa especialmente entre os jovens, o anseio por liberdade e de cortar os laços familiares, para finalmente sentir-se dono de sua própria vida; uma das mais belas meias-verdades cantadas pelos idealistas. Esse topete atrapalha muito, porque o indivíduo não percebe a mensagem corporal que transmite, isso pode ser uma pá de cal em qualquer entrevista para emprego, pode ser até mesmo para quem decide trabalhar por conta própria. Com esse anseio por liberdade, a necessidade de viver bem pode ficar em segundo plano; assevero que não são incompatíveis, pelo contrário, mas humildade e planejamento são fundamentais na vida adulta, que pode chegar antes da fase adulta. Muita gente, mas muita gente mesmo tapa o sol da necessidade com a peneira dos desejos, não só por prazeres físicos, e vai levando a vida assim até quando der; não é raro dar em suicídio.


            Acreditar piamente que se vive em um país quase perfeito, com problemas pontuais e nos quais ninguém de fora deve se meter, ajuda a pressionar o indivíduo. Qualquer sinal de insatisfação é tratado como ingratidão, pois bilhões de pessoas pelo mundo passam fome e ele tem tudo o que quer. A reprimenda tem sua validade, mas não para todos os casos. Não é só de fome que se chora, não somos cactos, precisamos de mais do que água e nutrientes para viver. Uma das drogas mais utilizadas para atenuar essa deficiência é apontar o dedo para os outros países, que não são tão conscientes e limpos, por isso não estão fazendo sua parte para salvar o mundo, assim a causa da infelicidade não é ter trocado suas necessidades por desejos, é a existência de pessoas que não correspondem ao seu idealismo; vejam, meu país é um paraíso, um exemplo e paradigma para toda a humanidade, por que vocês simplesmente não nos imitam e páram de destruir nossos sonhos? O facto de se ter pós-doutorados não torna ninguém imune a isso, intelectualidade não é vacina contra males da psique.

 

            Aliás, esses países são campeões em auto assassinato. Para quem tem um mínimo de recursos, tudo é muito fácil. Comida é muito fácil, diversão é muito fácil, sexo é muito fácil, droga é muito fácil, pular na frente do trem é muito fácil… A facilidade é uma ajuda valiosa para quem está fragilizado, mas para quem está em boas condições gerais ela é um ópio de ação limitada, aos poucos deixa de fazer efeito e aquele que tiver feito da satisfação de desejos o norte de sua vida, perde facilmente o sentido de viver. Uma estrutura perfeita, com uma civilização perfeita, proporcionando uma vida perfeita em uma ilusão perfeita, cujo desvanecimento mostra o imenso espaço vazio onde deveria haver uma coleção de experiências de vida, que dariam suporte à subsistência e aos planos para anos seguintes. Não é à toa que cidades grandes, com vida noturna mais frenética, concentram o grosso dos casos registrados. Em países nórdicos, e do extremo oriente, isso nem sempre é notícia porque já faz parte da rotina, e porque a indiferença cumpre bem seu papel de casulo protetor. Ah, claro, quando há uma notícia vinda de muito longe, a hipermetropia que esse casulo causa logo eriça pêlos, fazendo parecer que os problemas próximos simplesmente não existem. Isso que tanta gente chama de pieguice, foi o que garantiu a sobrevivência da espécie na pré-história, e teria garantido a de tantas crianças que se mataram por não terem a quem ou não conseguirem chorar e pedir por socorro.

 

            Essa indiferença não está apenas na sociedade externa, a família geralmente não vê a hora de se livrar dos filhos, que não são mais aqueles bebês fofinhos e fedorentos, mas tão aprazíveis que a lei os obrigou a criar até terem idade para se virarem sozinhos, e isso pode ocorrer antes da maioridade. Fazem questão de que o já petiz não se sinta tão à vontade dentro de casa, tratando-o como uma mudinha que será plantada muito longe do viveiro; a cobrança pelo suprimento de suas necessidades básicas pode fazer parte do longo e doloroso ritual de expulsão. Confiantes de que o adolescente vai conseguir se virar, os genitores viram as costas assim que ele põe os pés para fora, e não raro nunca mais querem notícias. Adolescente sozinho é uma mina terrestre. Se cedo morrer, morreu, talvez nem saibam se e quando isso acontecer. Os laços familiares, que em muitos casos poderiam ser a única ligação com a subsistência, são consideravelmente frágeis nesses países. Tão frágeis que deixam de existir na primeira esquina virada. Aos poucos aquela imagem photográfica na estante perde não só a cor, mas também o nome de quem ninguém se lembra mais quem é... ou era. Qualquer ensaio de culpa pelo feito ou sentimento de responsabilidade para com o indivíduo, é prontamente sufocado pela narrativa das oportunidades fartas e do bem estar social garantido. Garantido, meus queridos, só o óbito.


            Quando o subconsciente começa a perguntar o que tu estás fazendo aí, é o sinal amarelo para prestar atenção ao redor e se certificar de que aquele lugar é ou não adequado à tua natureza. Infelizmente ele não consegue falar muito alto, nos primeiros momentos, precisa de prática e observação para conseguir gritar, até lá a propaganda do falso frugal te convence de que 2m² bastam para morar, que a vida deve ser vivida lá fora, e que qualquer coisa além é ostentação ofensiva à sociedade civilizada e inclusiva; não importa a tua real necessidade de espaço, aquilo é obrigatoriamente o bastante e ponto final. O lar é o convívio social civilizado e desenvolvido do sistema justo e solidário, que está se lixando para suas necessidades íntimas, quer é te enfiar facilidades e prazeres, dando conforto moral mesmo que às custas de destruir seu corpo e seu psicológico. Eles acreditam ser livres, precisam acreditar nisso, mesmo vivendo numa gaiola psicológica que os mantém à parte dos próprios sangramentos. Quando a propaganda começa a perder efeito, os gritos do subconsciente ficam cada vez mais altos e não há para onde escapar, ou os ouve ou enlouquece. O abuso crescente de ansiolíticos não deixa dúvidas sobre o que mais acontece.


            Corrobora para esse quadro de declínio humano, o gigantismo de muitas cidades contemporâneas, que é acompanhado pela indiferença não muito menor para com o indivíduo. Para onde quer que se olhe há faces, tão somente faces sem rostos, falas sem vozes, expressões sem sentimentos, agasalhos sem calor. Todos são estranhos, mesmo aqueles que se conhecem há muito tempo. Ninguém quer conviver com o próximo, quer simplesmente usufruir das experiências que o outro puder oferecer, em um vampirismo mútuo e cada vez amis intenso. Tudo o que essas pessoas poderiam oferecer de bom, quando o fazem, é dedicado à privacidade pública das redes sociais, onde escancaram seus pedidos de socorro nos anseios não realizados dos desejos satisfeitos em photos, vídeos, gifs e toda essa parafernália virtual. Daí o sucesso que faz cada plataforma de compartilhamento que parece ser diferente, mais prática e descolada do que as anteriores. Cobram de si mesmos aproveitar o dia em cada segundo das distrações que seu país desenvolvido e civilizado pode oferecer, evitando ao máximo olhar para dentro e ver o que seu próprio cabedal tem a oferecer, porque isso implicaria em encarar também os gritos de dor e socorro abafados com o tempo. Sabem aquela máxima de que o palhaço é um homem triste? Ela é real. Via de regra, ninguém expressa a contento uma necessidade satisfeita, só se consegue expressar o que lhe falta, e tanto melhor quanto mais falta fizer.


            Tal como o bom palhaço, o jovem, solto num mundo cheio de prazeres e nenhuma alegria, perde paulatinamente o interesse pela própria vida. A maioria, com uma coragem de fazer inveja aos melhores combatentes, enfrenta a tendência crescente ao suicídio se segurando só por mais um dia, só por mais esta vez, ainda que recorrendo e ingerindo distrações menos perigosas, álcool e fumo entre elas. Claro que isso tem um preço, transtornos mentais não são exclusivos dos azarados que nascem com eles. E a resistência destes faz seus governos inflarem as estatísticas de bem estar e prosperidade, acompanhando com a retórica confortável de que seu povo é desapegado de bens materiais, quando na verdade está é se lixando para tudo e para todos, inclusive cada um para si mesmo. Mas é uma retórica confortável, faz a vida parecer que tem sentido, então vestem carapuças em que não cabem suas cabeças. Quando a carapuça se rasga, pela insistência em vestir, as expectativas não correspondidas cobram o preço de terem sido chamadas em vão.


            Do lado de cá, um exército de alienados memorizadores de frases alheias repede ad aeternum o que manda a cartilha, muitas vezes atribuindo seus próprios ideais aos povos que julgam ser o apogeu da civilização, mesmo que esses povos rejeitem tais ideais; vocês não vão gostar de ser um norueguês furioso, ao ouvir "fale da experiência socialista no seu país" de um desses memorizadores, é uma das poucas coisas que já soube fazê-los sair do sério. Eles sofrem do mesmo mal que os outros, mas apontando o dedo acusatório para o próprio país  e sonhando com a vida fácil, farta e gratuita de outras paragens. Não por coincidência, a maioria mora em grandes cidades e padece dos mesmos males de quem falei agora, só que em um país muito imperfeito, o que só alimenta tudo isso. Repetem para si mesmos que são livres, bem resolvidos, com senso crítico aguçado, que os outros são a causa de suas frustrações e depressões. E uma vez que a maioria desses países civilizados não admite suas reais mazelas, a narrativa de "eu sou livre", mesmo dentro de uma gaiola bem intencionada, se sustenta.


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