29/04/2011

I.A - Incompetentes Anônimos


A sessão tem início com as boas-vindas da equipe, formada por ex-incompetentes, aos dependentes dessa droga nefasta. Após alguns socorros por cortes com papel-toalha e gente que se esqueceu de respirar, os depoimentos começam...

- Tudo começou na escola. Fui da primeira geração de alunos que foi empurrada, que não precisou estudar pra passar de ano. Fiquei viciado nas facilidade e acomodei. Com o tempo o guverno passô a dar ajuda, cesta básica, moradia, tudo sem exigir nada em troca, nem mesmo umas hora de serviço comunitário por semana. O pobrema é que eu fiquei despreparado, passei a não conseguir nada de esforço próprio. Quer dizer, eu conseguia fazer filho, foi seis em cinco anos e meio. O que era pra ser ajuda virou esmola. Mais eu tava nisso desde moleque, não conhecia outra vida!
- E quando mudou, (vamos chamar de) Patric?
- Mudou quando eu vi um carinha que tinha estudado na minha sala, no primário, de Mercedes-Benz. A gente malhava ele, chamava ele de otário porque ele ia pra biblioteca enquanto a gente transava com as mina no banheiro. Fiquei com uma raiva, mas com tanta raiva, que pulei na frente do carro dele. Acordei dois dias depois, no hospital. Ele tinha pagado o hospital pra mim. Mas meu pesadelo só tinha começado, porque minha família reconheceu um indigente, que dizer, outro indigente morto como sendo eu. Foi quase um ano trabalhando duro tudo o que eu não tinha trabalhado a vida inteira pra provar que tava vivo!
- Você não carregava um documento?
- Não. Achava que se caísse o Samu ia me levar. Hoje eu tô tentando me livrar da incompetência, e se Deus quiser eu vou conseguir. Já tenho um emprego de lavador de carro, pago eu mesmo o que eu como e tô quase aprendendo a escrever... é que eu tinha esquecido.

Aplausos ao esforçado, que apesar de recaídas tem se mantido firme na estrada para a competência.

Um idoso apelidado de Rogério toma a palavra, com a voz embargada pelo remorso...

- Eu fui chefe de uma repartição pública durante trinta anos. Minha situação financeira é boa, mas é só a financeira. Na época eu tinha prazer em humilhar meus subordinados, dificultar a vida do contribuinte e perseguir desafetos. É normal no serviço público. Até para desencorajar tentativas de tomar o meu lugar, eu obrigava o sujeito a refazer um ofício duas, três ou mais vezes, mandando encher de lingüiça e colocar trechos absolutamente contraditórios na redação, como escrever "Após cordiais cumprimentos..." sem tê-los feito em uma linha anterior. Se voltasse, eu colocava a culpa no funcionário, se agradasse eu assumia a autoria intelectual. Termos inúteis na língua portuguesa como "junto ao", "enquanto tal", "perante ao" eram como doce para um diabético. E o foram para mim, me intoxicaram de tal modo, que não consegui mais viver sem atrapalhar quem queria trabalhar. Parecia que só eu trabalhava direito naquela repartição, afinal eu era o chefe e só eu podia autorizar e desautorizar uma manifestação, nenhuma poderia ser feita sem passar por mim.
- Para quem não tem punição, parece mais fácil mesmo.
- E era! Era muito fácil! Mas quando eu me aposentei, adivinha quem foi à minha festa de despedida... Ninguém. Nem a minha família. Mas lá fora havia um monte de gente com câmeras, para registrar minha saída. Dois anos depois, quando precisei de serviços da minha ex-repartição, tive em meia hora o que eu fazia esperar uma semana para sair. Eu ouvia as pessoas comentando o quanto eu era incompetente e safado. Oras, eu reconheço que era incompetente, como quase todo funcionário indicado pela base aliada, mas nunca embolsei um centavo do que não fosse meu. Infelizmente eu percebi que a má fama estava instalada, que o boato tinha ganho status de verdade e ninguém contestava. Naquele ambiente eu não tive coragem pra me revelar, até porque eu não sei explicar como a documentação me foi entregue tão depressa! Eu não sei como aquilo funciona! Um ano mais e o meu orgulho de ex-chefe desabou, com ele o mundo que eu tinha construído. De tão empenhado em me dar bem, ganhando gratificações e extras, que descobri que fui um pai de família tão incompetente quanto era como director de autarquia. Pensei em me matar, até que descobri o I.A.

Embora alguns queiram torcer-lhe o pescoço, pois agora sabem quem atrapalhou suas vidas, aplaudem o tardio arrependimento do homem.

Chega um incompetente crônico, apresentado como Paulo, que respira fundo e pensa bem antes de começar a falar...

- Eu terminei a faculdade, mas devo confessar que foi por meios desonestos. Cursei direito pra tentar prestar um concurso e ter vida mansa. Sim, meus amigos, eu estava com más intenções desde o começo, por isso não reclamo dos apuros pelos quais passei. Mas confesso que está muito difícil largar o vício. Eu era muito carismático na faculdade, prolixo e cheio de retóricas, tinha prazer em estar certo mesmo estando errado. Eu seduzia os colegas com isso e ficou fácil, muito fácil tirar boas notas; memorizava para os exames, me encostava nos colegas que estudavam e eu considerava trouxas, decorava macetes para ganhar pontos extras, enfim, estava treinando com afinco para me tornar o canalha de colarinho branco que pretendia ser. Até o registro na OAB eu consegui com minha artimanhas. Só que a vida real não aceita trapaças. Sofri um acidente de avião, ninguém além de mim teve danos sérios. Fiquei quase dez anos na cadeira de rodas, cinco dos quais sem conseguir me expressar, assim eu perdi minha ferramenta de ascensão social.
- Como foi a sua recuperação?
- Eu ainda tenho problemas de cognição, então ainda estou me recuperando. Os amigos que tinha conseguido para meus planos se afastaram de mim, precisei me virar pra não ficar na pior. Tentei emprego de vendedor, mas sempre aparecia um cliente com conhecimento técnico pra me fazer passar vergonha; tentei ser balconista de drogaria, mas quase matei um paciente que eu tinha convencido a levar mais coisas do que ele precisava. Aos poucos eu percebi que era um completo incompetente, que tinha passado a vida inteira tentando passar os outros pra trás e não me aprimorava de verdade. Eu lia, me informava, mas só conseguia falar palavras bonitas e fazer discursos prolixos. Caí na real, eu devia era ter seguido a carreira de cantor, que minha mãe dizia que eu levava jeito pra ser. Hoje eu estudo música, pra tentar recomeçar a vida, apesar de a tentação do caminho fácil me atormentar todos os dias.
- Você tem boa voz mesmo! Pode nos dar uma palha?
- Vou tentar, mas ainda estou cru...





Alguns segundos separam a estupefação da ovação, ele é aplaudido de pé pelos colegas de entidade. No decorrer das explanações fica claro que o caminho mais fácil, o abandonar o sonho em troca do dinheiro rápido, a malandragem e a insistência em se fazer o contrário do que o coração manda, caracterizam o incompetente.

O último a falar nesta noite, encorajado pelos depoimentos, segue altivo e confiante ao palco. Se apresenta sozinho...

- Boa noite. Sou o ex-deputado Paulo Mezzo Ginia. Eu não conheci outra coisa além da política, nem outra moral (ou falta dela) que não fosse a dos políticos profissionais. Neste ramo aprendi a contestar e atacar ainda que o outro estivesse certo e que desta certeza dependesse a vida de alguém. O importante era eu estar certo, pois assim conseguia prestígio junto ao partido enquanto correligionário, ao nível de candidatável. Posto que assim era, assim eu o fazia, porque era esta a normalidade e eu estava inserido nela. Não pensem que há até um ano eu me importava, mas depois que minha mãe faleceu por minha culpa, eu percebi o mal que fizera à sociedade, enquanto raça humana.
- Sua culpa? Como assim? Ela não morreu de câncer no esôfago?
- Sim, mas a culpa é indirectamente minha. Eu, por motivos pseudorreligiosos das lideranças partidárias, barrei sem dó as pesquisas que poderiam tê-la salvo. Eu também, junto ao Contran, enquanto pressão política, ajudei a proibir que caminhões e ônibus construídos por pessoas físicas , ainda que passem com louvor nas inspeções de regularização, circulem ao nível de vias públicas. Também, para que nossos indicados a cargos comissionados e chefias não parecessem tão incompetentes quanto realmente são, ajudei a tornar mais ridícula a reforma ortographia. Alguns deles são incapazes de interpretar uma carta comercial, precisávamos poupá-los do vexame. O ideal seria investir em educação e até retomar o latim nas escolas públicas, digo isso porque já abandonei a vida política e não tenho mais o que perder, mas se isto acontecer, em quinze anos nenhum deles terá mais voto nem de si mesmo!
- Bom saber!
- Valeu pela dica.
- Diga como veio parar no Incompetentes Anônimos, Paulo Mezzo.
- Sim, claro. Esta instituição que ora me acolhe, que ironia, foi uma das vítimas de minha falta de caráter e completa incompetência para a lida com a administração pública. À época o nome me causava gargalhadas, até que minha santa mãezinha pereceu sob a sombra mórbida de minha amoralidade. Como o amigo ali, também pensei em dar cabo de mim, pois acreditava que nem para viver junto ao mundo enquanto ser humano eu servia, no nível de minhas amarguras. Eu não tinha competência para viver, até que este pensamento me fez lembrar desta casa e eu me empenhei na busca.
Amigos, é uma tarefa árdua viver como empresário honesto, sem maracutais nem costas quentes, mas juntos chegaremos à vitória!

Após os aplausos, o presidente da entidade dá a bronca da noite, e é justo ao ex-deputado...

- Paulo Mezza, seu incompetente, as reuniões são anônimas e você se apresentou! Todo mundo aceitando apelidos e você só faltou dar o código do seu cartão de crédito!

Findam a reunião e vão à mesa, fazer o lanche de despedida.

2 comentários:

Priscila Andrade Cattoni disse...

Aqui estou, presente!

Beijos

Nanael Soubaim disse...

Presente e reluzente.