05/06/2010

Saber morrer

Uma das falhas crassas da sociedade é (não temer, mas) alimentar o temor pela morte. É importante não ter pensamento fixo nela, mas ter ciência e tranqüilidade de que ela virá e não adianta cultivar temores.

Primeiro porque é inútil, o medo é um mecanismo de defesa e quando a morte chega, não há absolutamente nada que se possa fazer contra. Segundo porque aumenta o sofrimento a cada luto, as pessoas instintivamente imaginam que sua hora vai chegar e variam entre a depressão e a euforia cega, na tentativa de viver tudo antes que acabe. Terceiro porque é insalubre, a pessoa deixa de viver o que realmente lhe faria diferença para melhor por se preocupar em viver tudo antes que acabe. Quarto e último porque é idiota, a pessoa passa a pautar sua vida pelo fim dela, como um viajante que tenta comer de tudo e photographar tudo e todos antes que a estrada termine; não aproveita absolutamente nada.

Os materialistas que cabem ao caso, temem porque, bem, porque acreditam que são apenas bichos dotados de raciocínio lógico (nem tão, vá) e que deixarão de existir, caindo no vazio absoluto de onde suas consciências teriam surgido.

Os não materialistas que cabem ao caso, temem porque sabem que não estão fazendo a lição de casa como deveriam, muitos acreditando que alguns deslizes os lançarão à tormenta eterna e infinita do inferno. Como Deus é mau, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah... Bobagem.

Em ambos os casos houve uma falha na educação para a vida, aquela que deveria preparar a criança para a vida adulta desde a mais tenra idade, que a troca da mãe pela babá, do livro pelo videogame, das prendas domésticas (também para meninos) pelo shopping center, do pai pelo currículo escolar, da vida em família pela mesada (entre muitos outros factores) legou ao esquecimento. Se a pessoa não aprende a viver, não saberá morrer com o mínimo de dignidade própria. Quando digo "viver", subtraia-se a busca insana por prazeres efêmeros e voláteis. Falha-se, neste caso, em ensinar como obter prazer na busca de um objectivo. É como no mercdo financeiro, quando a especulação toma o lugar do trabalho, forma-se uma bolha de prosperidade que estourará a qualquer momento, nós vimos isto, uma estourou logo nas mãos do Obama. Tudo parece maravilhoso, a cousa certa a ser feita, mas rapidamente a casa cai. Na vida pessoal não existe um Obama para tomar as rédeas, elas são tuas.

Uma das informações mais importantes que deveríamos receber da família é a de que um dia vamos morrer. A criança precisa se acostumar a isto. Não, bocó, não é para transformar a vida da menina em um filme de terror. É para não se esquivar quando ela perguntar a respeito, não florear e não monstrualizar, dizer que todo corpo tem uma data de validade e que um dia expira, como tudo no mundo.

Para os teístas, não se deve fazer propaganda da morte. O acto de morrer não é bom, é agonizante. A passagem que se dá pode (ou não, na maioria dos casos) ser boa. Agir com naturalidade é a única receita válida para todos os casos, o resto varia muito. Privar a criança de velórios não a poupa em nada, ela não crescerá mais saudável por isso, também não há porque impedi-la de visitar parentes hospitalizados, quando autorizado pelo médico responsável. Aprender que ninguém está bem o tempo todo, e que uma hora não estar bem é irreversível, ajuda a digerir a idéia de que se vai morrer um dia.

Sim, claro, "A morte não existe". Mas vamos tratar do fenômeno bioquímico a que nos acostumamos como sendo a morte.

A civilização ocidental, desculpem bater em ferida aberta, é a mais despreparada para o fim da vida. Levado ao extremo da distorção, o termo "carpe diem" foi transformado em um slogan para uma vida de excessos e desconsideração para com os outros. "Aproveitar a vida" se tornou símbolo de promiscuidade e desperdícios. Quando chega a hora, a imensa maioria já está tão apegada à vida que levou, que se desespera e leva o desespero como última e perene impressão da vida. Não preciso dizer o que penso de "Melhor viver dez anos a cem que cem anos a dez". O infeliz que adopta esta aberração como lema de vida, abrevia a própria e a de quem nada tem a ver com sua loucura.

Acostumar-se e perder o medo da idéia da morte tem outro efeito, passa-se a envelhecer com mais dignidade. Embora se procure manter corpo e mente activos, não há mais a preocupação em recuperar a juventude perdida. Não interessa o que charlatães de programas de auditório digam, a juventude jamais volta, é uma fase, um tempo; o tempo não pára. Envelhecendo com dignidade, os efeitos da velhice ficam mais tênues, perde-se menos (ou nenhum) tempo implicando com a saia curta da neta, a música de péssimo gosto dos jovens incomoda menos, até se conseguem alguns acompanhantes de menor idade para saber de novidades e repassar a experiência. Infelizmente esta velhice digna não dá o retorno financeiro que os fabricantes de milagres, que usam e abusam de se chamarem de cientistas, conseguem fazendo os idosos passarem por ridículo.

Ter espiritualidade ajuda, mas asseguro que sozinha não adianta. A hora da morte não aceita ensaios, é tudo no improviso, se sair bem, saiu, se não sair...

Ajuda a morrer bem não deixar inimigos. Desde que o inimigo vai cuspir no seu túmulo até se casas com a sua viúva, tudo passa na cabeça do moribundo rebelde. Melhor então fazer o seu possível para acabar com a richa, se ele não aceitar, paciência, a tua parte na inimizade já terá sido extirpada, o problema será dele, porque gente que não aceita reconciliação planta inimizades.

Ser útil. Poucas cousas aliviam a consciência como a sensação de a passagem sobre a terra foi mais necessária do que onerosa. Para quem não conhece, experimente ser útil a terceiros, sem esperar recompensas. Haverão os detratores, te chamarão de otário, mas eles também terão suas horas e elas lhes cobrarão o tributo.

Se entregar à futilidade e à vida vazia não é o mesmo que satisfazer vontades sinceras. Faça-as. Chocolate é caloria pura, mas uma barra não vai te tornar um obeso. Poupar para conhecer o Rio de Janeiro em grande estilo não deve ser considerado luxo, porque sonho não é luxo. Pessoas viciadas em saúde são tão doentes quanto as viciadas em drogas. Cuide da saúde para ter a certeza de que a morte virá quando tiver que vir, não antacipada por descuidos, mas não deixe de viver a vida à tua maneira, corra artrás dos teus objectivos ou Azrael vai te cobrar a alegria que não foi disseminada, e lhe cabe disseminar. Ele não tem dó de ninguém.

Pague o que deve. Não gaste mais do que ganha para não levar para o túmulo a preocupação da dívida. Há circunstâncias em que é necessário assumir uma, mas na maioria dos casos não é. As ilusões cobram juros altos. Mas o dinheiro gasto em prol da comunidade ou de necessitados é uma poupança que inflação nenhuma corrói. Pensar "Fiz o que pude" enquanto o cérebro se apaga é um antídoto contra a agonia.

Trabalhe. Trabalhe com afinco até o último instante. Quem trabalha direito está mais exposto às provações necessárias e menos ao azar. Um acidente de trabalho te dá direito a regalias, tanto legais quanto morais, em especial dentro da família. Trabalhar em pequenas actividades, quando se torna necessária a aposentadoria, mantém a lucidez e o foco, a vida fica tão cheia que não há espaço para a tristeza que ronda a espreita de um idoso displicente.

Acostume os mais jovens à idéia da tua morte. Saber que filhos e netos vão sofrer muito em luto só interessa ao mau-caráter. Gente de bem como tu quer que eles chorem o que têm a chorar e depois toquem suas vidas. Tenha tato, escolha as palavras de acordo com quem estiver ouvindo, mas não deixe de ser directo. Vamos todos morrer, um dia, não tem jeito. Todos verão o teu corpo decair até se apagar por completo, então é melhor que estejam formalmente prevenidos, o choque é muito menor.

Como sei de todas essas sensações? Já tive uma experiência de quase morte. Senti o corpo deixando de obedecer aos meus comandos e o cérebro se apagando aos poucos. É escuro pra dedéu. Não houve um túnel, mas também não houve noção de tempo, porque meia hora deopois eu acordei e não parecia ter se passado nem um segundo, a consciência permaneceu na activa e minha boca ficou torta por mais uns minutos.

Sei de um patriarca judeu que, momentos antes de falecer, chamou o filho e a esposa, recém-casados, abençoou a união e mandou que fossem para a lua-de-mel. Depois fechou os próprios olhos com a mão direita, a uniu com a esquerda no peito e morreu. Isto não é conversa de evangélio, aconteceu nos rincões do Amazonas, na primeira metade do século vinte. Quer morte mais serena e tranqüila do que esta?

Ateu ou teísta, trate de se acostumar e aos mais jovens à idéia da morte o quanto antes, a vida ficará muito melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sábias palavras, meu caro anjo...

Eu vou vivendo minha jornada (espero que bem) e quando chegar a hora que está termine e venha a próxima. Sua sabedoria tão generosamente compartilhada vai para minha bagagem, e certamente será muito útil aos meus filhos e netos.

Um abraço quetinho neste dia tão frio em São Paulo...

Nanael Soubaim disse...

Abraço quente que aqui também está frio... de manhã e à noite, das dez às quinze o sol esturrica.