É quando a lágrima chega à base dos olhos e se recusa a sair, o riso à porta do palato e se recusa a sair, o grito à sombra das pregas e se recusa a sair. Não se chora, não se ri, não se brada o que já dificulta a respiração, com esta a subsistência.
É quando a depressão deixa de ser uma situação para se tornar o estado natural. Então não há muito o que fazer além de resistir, domar os instintos suicidas do corpo que se recusa a continuar nas circunstâncias presentes. Se antes as palavras não saíam, agora seriam inúteis mesmo que saíssem perfeitas... A dicção trai. O cenho se contrai.
Por todas as perdas que se lamentou, a sombra do que não foi resolvido permanece, perpetua o frio glacial que a luz do sol não alcança. O orgulhoso se recolhe, curvando a coluna; o humilde se contorce para não ir ao chão. A força que se faz para se soltar o riso é maior do que a necessária à corrida, ainda assim se sorri. Sem som, sem o gargalhar salutar que desobstruiria o peito e a mente. Torna-se intimista por força das circunstâncias e não mais por mera discrição. A vida etérea baila ao redor sem ir e sem ficar, agarrada apenas pelo magnetismo que a duras penas se gera.
As saudades dos tempos difíceis emergem por terem sido tempos em que, ao menos, se podia agir, lutar, impôr-se ao destino que se apresentava sem ser chamado. Mesmo difíceis, eram tempos em que se tinha a mínima esperança, viver era assim muito mais fácil do que o mundo de confortos que hoje nos é ofertado. Não que o mundo fosse mais belo, mas o era assim mesmo, o véu monocromático ainda não caíra sobre os olhos de quem perdera quase todas as esperanças. Não que ela esteja morta, mas agoniza no leito de uma ulterapia de tratamento intensivo. Os médicos entregaram à Deus, mesmo os que não crêem. Mas dizem que irá por último.
Toca Amelinha, Foi Deus, na radiola que jaz em um ferro-velho. Há anos não recebe uma pilha, já nem tem os transístores. A capa espessa de baquelite nacarado foi transformada em marmita.
Não se pede piedade, somente respeito. Afasta-se paulatinamente das pessoas, para não ouvir a insistência chata em se fazer o que pensam não ter sido feito. Quem não sabe nunca acredita nos esforços já desprendidos. Não se fracassa pelo gosto de fracassar, nem todos fracassam por erro. Em uma queda livre se vê e se prevê tudo, mas não se pode evitar o desfecho. A boa vontade não subtrai a crueldade dos que insistem em nos tirar da cama antes de se debelar a enfermidade. Se a vida foi, em suma, um fracasso, pode não ter sido por negligência de quem a recebeu.
As cenas em branco e preto são mais nítidas e verossímeis.
Busca-se um recanto para tentar relaxar a musculatura já tensa pelas batalhas mal sucedidas, onde a sombra benfazeja nos prive de olhares curiosos, onde o silêncio possa prover a liberdade dos sons encarcerados. Mas a cada posto que se ocupa, se avizinham os sábios de toda hora, sempre a dar conselhos, exigir reação, agindo em desacordo com o que gostariam que se fizessem a si, na mesma situação. A incompreensão dó mais do que o tapa.
Não se quer ouvir conselhos, não se quer ouvir lamentos, não se quer ouvir cousas boas, não se quer ouvir consolos. Ainda se houvesse quem acolha sem dizer o supérfulo, apenas ajudasse a aquecer e o pranto a sair, que ofertasse um ombro e um abraço para acalentar das dores que já são perenes, mas sei que é pedir mais do que podem oferecer. Os ombros já cobram pedágio, os que não cobram estão indisponíveis.
Na cela da solidão voluntária a rigidez há de ceder, algum dia, permitindo que a respiração, o riso, o choro, o grito, a palavra e a própria vida voltem a correr como antes. Por agora se põe a rastejar, que de pé já não consegue avançar. Não há a intenção de perpetuar a clausura, tampouco a de se disseminar o veneno que ora transpira. Aos poucos a agonia há de romper a barreira que barra o fluxo das emoções, que presas se põe em guerra contra os hormônios.
Festivais não servem senão para aguçar a tristeza, que embora Torquemanda, é em seu equilíbrio o que se mantém, como uma lança que se torna a única muleta disponível para sua própria vítima. Mas precisa estar com a ponta para baixo.
Houve a ausência a contragosto de quem queria estar por perto e amparar, pois o sofrimento não amparado afeta o coração bem intencionado, a distância crescente dos que se ama é um cobertor que nos é puxado ao relento do inverno nórdico. A culpa que não caberia se instala, pois mesmo sendo maior, encontra âncora para se fixar. A quem reclamar? O que reclamar?
Qualquer riso é mudo e se converte rapidamente em lágrimas abafadas.
Ninguém tem culpa, na verdade ela não existe. É somente a sombra da frustração de uma vida que não aconteceu de facto e não tem sequer indícios de vir a acontecer. Então se afasta, que tristeza é uma doença contagiosa e um enfermo basta. Conhece os pesares da enfermidade e não deseja que se dissemine.
Ela passa, um dia passa, não sobrevive muito mais tempo sem novas vítimas. Por isto a distância, mesmo de corpo presente.
Se mantém em marcha, que alternativa não há.
4 comentários:
Boa Tarde Amigo Nanael !!
Tenho fracassado muitas vezes em minha vida. Algumas foram culpa minha acredito, outras jamais saberei ao certo.
Mas nem por isso elas deixam de acompanhar-me como sombras, algumas mais tênues, outras mais densas. Estas últimas são do estilo "incompreensão dói mais do que o tapa".
A ausência que me preenche, não foi a contragosto embora, mas foi ...
Esta página tenho tentado virar do livro que cá na Terra estou a escrever...
Talvez deva fazer uma "queda livre" como tu colocas, pois dela saberia o desfecho. Ou esperar que esta dor um dia passe...
Sería-me cruel querer passá-la adiante p/ outrem.
Ela tem de diluir-se junto a mim em Luz p/ minha Alma crescer e a que partiu ser de facto curada...
Abraços Amigo Nanael !!!
Aromas de Rosas...
Lilly Rose
"Julgo que ainda não me restabeleci completamente.
Das visões que me perseguiam naquelas noites compri-
das umas sombras permanecem, sombras que se mis-
turam à realidade e me produzem calafrios.
Há criaturas que não suporto. Os vagabundos, por
exemplo. Parece-me que eles cresceram muito, e, apro-
ximando-se de mim, não vão gemer peditórios: vão
gritar, exigir, tomar-me qualquer coisa.
Certos lugares que me davam prazer tornaram-se
odiosos. Passo diante de uma livraria, olho com des·
gosto as vitrinas, tenho a impressão de que se acham
ali pessoas. Exibindo títulos e preços nos rostos, ven-
dendo-se. É uma espécie de prostituição. Um sujeito
chega, atenta, encolhendo os ombros ou estirando
o beiço, naqueles desconhecidos que se amontoam por
detrás do vidro. Outro larga uma opinião à-toa. Bas-
baques escutam, saem. E os autores, resignados, mos-
tram as letras e os algarismos, oferecendo-se como as
mulheres da Rua da Lama.
Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas
mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas:
são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das
palmas cicatrizaram.
Impossivel trabalhar. Dão-me um oficio, um re-
latório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas
vou bem. Daf em diante a cara balofa de Julião Tava-
res aparece em cima do original, e os meus dedos en-
Contram no teclado uma resistência mole de carne
gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, ca
pricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida.
A noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala
de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio
longe do artigo que me pediram para o jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos reme-
xem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis
roncam na rua."
Graciliano Ramos in Angústia, 1936.
Prezado, quando a noite está mais escura é que está mais perto do dia clarear, dizia meu avô.
Estas noites da vida, eu também sei, são longas, longuíssimas, angustiantes. Os sintomas se multiplicam numa velocidade impressionante, a angústia se revela em ansiedade que é filha da depressão. Haja comprimidos, as consultas são caras, mas os médicos estão aí, hoje, pra isso, permitir que exista, razoavelmente em paz, aquele outro ser que nasceu dentro de mim, têm poucas vontades próprias e é quase sempre um visitante não desejado.
Eu tinha poucos anos quando abri a primeira página de Angústia, do Graciliano. Não avancei, era pesado demais, não passei do primeiro parágrafo e meio. Hoje é um companheiro de raciocínio, de abrigo, de fuga, de força.
Estou cá ouvindo Charles Mingus numa conversa irritante para todos exceto para aqueles a quem ruído, barulho e ecos, como eu, não são um problema, mas parte da dialética da existência.
Animem-se, alegrem-se. Existem muitos motivos aí fora aguardando nossa admiração e reconhecimento. Encontrá-los, custe o que custar, é o nosso dever.
Abraços, luz e a paz do Cristo,
Nik.
Lilly, considere-se minha filha virtual. Está adoptada.
Nick, lembre-se do que eu sou: Um Fusca. Não quebro e não páro nem que o atoleiro vire durepóx. Desistir não é opção, é abrir mão do pouco livre arbítrio de que dispomos.
E aí Papai Nanael !!!
Amigo Querido, grata surpresa encontrar-te na Web. Há muito não conhecia alguém com o "verbo" tão afinado e certeiro !!
Teus textos são-me Terapeûticos !!
Grande Abraço a Ti Nanael !!
Um Abençoado FDS !!
C/ Carinho e Aromas de Rosas...
Lilly Rose :)
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