Minhas lamúrias, bons amigos, não se resumem aos devaneios abatidos pelas balas do tempo, posto que não tiveram o alimento imprescindível dos resultados mínimos, assim tendo o vôo limitado às altitudes mais próximas. Alvos fáceis da rudeza cotidiana e sua mira perfeita. O vôo sem destino nem pouso é letal mesmo para os albatrozes, que dirá um beija-flor mínimo e adoecido.
Afirmo bons amigos, que se me abate o desânimo do peso a vergar a coluna e ferir os ombros, continuo a caminhar em passos largos. Não me convém ceder à dor e ao cansaço; não tenho tempo para eles. O tempo, aliás, nunca foi um companheiro amistoso. Lépido e jocoso quando um bom momento se anuncia, mas de uma indolência letárgica quando da despedida. Esta a se delongar até o horizonte nu.
Afirmo bons amigos, que a vida ainda não mostrou a que veio, ou à que vim. Os anos precoces que me feriram a face se precaveram; Pollyanna jaz natimorta. Nem seu suspiro me foi dado ouvir. Mas caminho ainda assim, parar não é escolha, mas desta abdicar. As traças temporais e os cupins da enfermidade espreitam os exauridos para se apoderarem de seus meios, tão logo parem para repousar. Só se repousa em vera acepção no desenlace, se houver méritos.
Afirmo bons amigos, que a angústia de ainda viver não me tolhe o sorriso, mas me custa cada vez mais ofertá-lo. Os músculos do rosto doem, eles encontram na sisudez seu estado de repouso. É no cenho contraído que este rosto oleoso preserva suas energias. Não me cobrem, pois, peço-vos, demonstrar a alegria de que não sou munido, aquela que eu demonstro é um mero e embaçado reflexo da que vocês me emprestam.
A melancolia que me toma agora não é intrusa, ela é parte de mim, de minha natureza, de minha visão de mundo, das impressões que tenho da vida. Não será ela que me levará aos umbrais mais escuros, pelo contrário, a prefiro à euforia cega que é a única alternativa. Se ambas dilapidam minha saúde, a primeira me permite refletir e evitar perdas maiores. Se melancólico, uma faca na mão é apenas uma faca, não uma arma.
Não, bons amigos, não é uma carta de despedida. Tampouco darei cabo de uma vida que me apresentaram à força. É a expressão de alguém que tem a firme convicção de terem sido bons tempos os que se distanciam. Não que sejam realmente bons tempos, talvez o sejam e eu não tenha percebido. São tempos em que eu ainda tinha esperanças de que fossem bons, e que o porvir seria melhor. Decerto que por imensa teimosia de minha parte, não vi que o caminho contrário é o que sigo. Não por meu arbítrio, mas por ser o único que me coube receber, o outro não serve em meus pés.
O arbítrio, bons amigos, não é uma opinião que se emite sem maiores conseqüências. Nem sempre me é permitido fazê-lo, e ao fazê-lo as podas ágeis que me tolhem a liberdade agem. Eu poderia, decerto, reagir e quebrar as tenazes que me prendem e dificultam a respiração, mas para tanto teria que abrir mão do caráter que tanto esmero me custou. O perderia sem ter o que lhe valha, nem mesmo metade.
A tempestade, bons amigos, é mais segura do que a calmaria falsa que me ofertam de tempos em tempos, que permite aos aduladores saltarem sobre suas vítimas. Os ventos fortes que castigam minha nau os mantêm em suas respectivas embarcações, e estas a uma distância segura. Já me acostumei à tempestade e talvez não me adapte à bonança. Já tenho cristalizada a condição de alerta, minha condição natural é a de sentido. Admito, todavia, que não é uma condição confortável, desaconselho aos aventureiros. A vida que levo não perdoa indisciplinas e não mede punições, aplicadas com vontade.
Não é por prazer, bons amigos, é por compromisso que vivo. Vivo por obrigação. O prazer me atiçou a curiosidade na juventude, mas hoje o vejo com desdém, um artigo supérfulo que não almejo e não faz parte da minha vida.
Se lhes parece árida a paisagem que descrevo, é nela, com ou sem pesares, que posso crescer e em nenhuma outra. Os jardins irrigados me encheriam de fungos e apodreceriam minhas raízes. Já não me acostumo à amenidade e não a tolero por tempo prolongado.
Mas não é, bons amigos, ruim a vida por compromisso, tampouco muito boa. É a que tenho, a de que disponho e da qual não posso abdicar senão quando findar sua missão. Admiro as cores que este mundo já não tem, os sons que já não emite e os aromas que minhas narinas ainda hoje saberiam identificar, se também não tivessem cedido lugar à fútil fantasia dos que exibem agressividade como status. Mas de tudo isto também só tenho lembranças brumosas, pois o usufruto foi uma vontade não concedida. Os molhos, o queijo e a pimenta não acompanham meu fusilli escuro.
Embora dividamos o mesmo planeta, meu mundo é outro. As paisagens glaciais de vez em quando apresentam alguma tundra. Desperdiçar recursos tem um preço elevado, pois a reposição é penosa. Não há vidros em minhas janelas, de modo que só posso visualizar o horizonte abrindo-as ou saindo de meu abrigo, mas só enquanto o vento gélido não me compromete a sobrevida. O sol jamais se levanta mais que um quarto de céu, neste meu mundo; isto no alto verão. No inverno o lábaro de ébano me propicia o espetáculo da aurora boreal, quando as temperaturas me permitem abrir as janelas e pôr os olhos ao céu.
Afirmo bons amigos, que a cíclica depressão que me acua já não assusta, a exposição excessiva e continuada a tornou impotente à minha presença, embora ela continue existindo e trabalhando. Estou acostumado a conviver com ela e sua família, trabalhando sob seus efeitos. Estou acostumado a trabalhar muito para pouquíssimo (por vezes nenhum) resultado, foi como aprendi a perseverar. A abundância também não está em meu portfólio. Na aridez de sentimentos e emoções sempre densos, aprendi a viver com o mínimo. Indisponho-me sempre que excedo esta cota.
Afirmo bons amigos, que a solidão resultante desta equação mórbida não é de toda ruim. É uma forja que me aquece até quase a liquefação, para então me golpear sem piedade e mergulhar minha lâmina em salmoura fria. O resultado é o que se espera de um bom aço, para o bem e para o mal. Reconheço que feri e firo seres amados no intuito ingênuo de resguardá-los. Mas asseguro que actos e palavras que emanam de mim, antes a mim ferem e a mim por último cicatrizam. Nisto me refugio em minha solidão inaparente e inacessível à maioria, onde as penitências e a piedade divina me curam o espírito.
Afirmo bons amigos, que não se trata de uma vida dura. É uma vida de privações, algumas voluntárias. É uma vida. Só serve para mim e para ninguém mais, e só ela me serve. Não se tira perenemente de um quartel o oficial que nele habitou a vida inteira, ele não se adapta à frouxidão de regras que apraz os civis. Salvo saídas esporádicas para breves incursões, a loucura de uma nostalgia patológica o acometeria rapidamente. Do mesmo modo que um profissional liberal convicto não se adapta à rigidez de regras e horários.
Afirmo bons amigos, por fim, que a nostalgia germinada de minha melancólica personalidade não me corrói. É um ácido concentrado para o qual me adaptei imediatamente, e sem o qual adoeceria em poucos dias. É deste ácido, não da água ou do ar, que tiro o oxigênio que sustenta minha permanência neste orbe. Não foi desta (talvez na próxima) vez que redundei em um terrestre pleno e bem resolvido. Talvez a terrestria não seja, ainda, a minha identidade, mas terá que ser a partir de algum momento. Aquilo, pois, que lhes envenenaria e lhes parece ser tão triste, bons amigos, é só o que eu tenho para me manter vivo.
2 comentários:
Oiêee!
Sem palavras. Amo o que escreves.
Beijos doces.
Ah, achei a minha foto em cima de uma lambreta. Vou escaniá-la e postá-la.
Beijos
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