13/11/2008

Drama; 1 de 3

Laura leva o filho para casa. O garoto se cansou muito, no meio do recreio já não agüentava dar um passo e os professores acharam por bem que não voltasse a pé. A lua cheia já começa a minguar em último quarto, neste fim de tarde, quando a boa Caravan entra na garagem. Para quê trocar de carro, se seu mecânico de confiança conseguiu enfiar uma injeção electrônica no GM151? Não vai gastar a poupança à toa.

Angus volta a se cansar, desta vez com mais intensidade, e desta vez desmaia. Acorda à noite, no hospital, com suspeitas de esclerose...

- Meu filho tem sete anos!

- É só uma especulação, mas o eletroencefalograma não deixa muita margem, e pegamos os sintomas em plena actividade.

O neurologista se esmera em explicar que não existe doença exclusivista, que ele mesmo já teve câncer de mama.

Uma semana depois, Angus tem um ataque, consegue gritar pela mãe, mas cai e se fere no meio-fio de granito. O diagnóstico é confirmado por dois outros médicos.

Laura é uma mulher forte, viu o pai ser levado, sem acusação formal, pela repressão e nunca mais o viu. Sustentou a mãe e a irmã caçula até se ver sozinha no mundo. Depois pela segunda vez, quando viu o marido esmagado entre um ônibus e um poste. O motorista fugiu e nunca foi encontrado. Suportou tudo para criar o filho, o fez aprender as lidas domésticas desde cedo, disciplina-o como acha que deve. Ela agüenta a notícia, explica ao menino da forma mais diplomática que pode e avisa que terá que estudar em casa, de agora em diante. Sorte? Não. Laura nunca lhe passou a mão na cabeça e se mostra uma professora rigorosa.

Vai um ano sem novos incidentes, com remédios relativamente caros. Angus monta um Maverick de papel, que pegou na internet. Modificou a pintura original para fazer um bólido. Diz que pegará uma carcaça no ferro-velho e montará um igual, quando crescer.

Angus acorda de um mês de coma. O dono da drogaria já está preso, por venda de medicamento falsificado, mas as seqüelas no sistema nervoso são irreversíveis. O garoto perdeu quase um terço da visão e aquele décimo oitavo Maverick foi o último que ele conseguiu montar sem ajuda. Precisará de uma bengala, de vez em quando. Laura se mostra firme. Impressiona a todos pela fortaleza e pela serenidade, mas por dentro se contorce de preocupação. Seu filho não terá uma adolescência normal. Receitam mais medicamentos. No caminho de volta, Angus vê um Maverick 302 exactamente igual ao último que fez. Chama a atenção da mãe para o que viu, consegue assim distraí-la de seu mundo denso. Ela sabe dispensar carinho, mas só o faz para quem julga que realmente precisa. Seu filho, no entanto, se comporta como um homem, ao menos aparentemente.

Segue mais um ano sem qualquer ocorrência. A única anomalia é Angus estar dois anos adiantado em relação à antiga turma, que se compadece...

- E a gente pensando que cê tava de boa, mano!

- "Boa" o cacete! Eu estudo o dia todo, faço exercícios o dia todo, levo bronca o dia todo. Fora que ela nunca mais me deixou comer bobagem.

Eles o confortam. Infância sem comer bobagem, para eles, não é infância. Findada a visita, Laura o põe para estudar tudo o que as horas de lazer inesperadas não permitiram. Quer mantê-lo o mais lúcido possível pelo maior tempo possível. Seu neurologista afirmou que todos os pacientes que lêem e estudam respondem melhor ao tratamento. No rádio toca "Era Bello Il Mio Ragazzo". Desliga-o na hora, já começava a marejar os olhos.

Aos poucos se torna comum ver o filho usando a bengala, aos poucos se torna comum ele não conseguir andar mais que devagar, logo o médico desconfia da gravidade dessa doença e pede exames novos, com tecnologias novas e se põe a estudar descobertas novas. Viu aquele menino nascer e a última cousa que quer é enterrá-lo. Laura aceita de bom grado a solidariedade dos próximos, mas rejeita até com rispidez as manifestações de piedade. O rádio de alguém, no Vaca Brava, toca "Lady Laura". Aperta mais a mão do filho, mas não muito, ele ficou sensível à dor.

A polícia interfere para que Laura não mate um dos médicos que deram o diagnóstico. Descobriram violações no tomógrapho que aumentam muito as chances de acusar doenças graves, estranharam ele ter trocado de carro tão depressa. Um fiscal da Vigilância Sanitária diz que é comum, como o caso, médicos receberem comissão pela receita de drogas controladas...

- Seu Sérgio, meu filho tomou medicamento para esclerose por dois anos! Será que tem jeito de reverter o quadro dele, se parar de tomar aquilo?

O pharmacêutico de formação pensa um pouco, lembra do trabalho de formatura e conclui, com o médico da família, que foi justo isto que degenerou a situação do rapazote e, lamentam, pode ser irreversível. Dias depois uma nova tomographia revela os danos graves. Mas ela não vai ficar parada, vendo a banda passar. Manda um e-mail para a irmã, hoje em Berlim, para que informe de qualquer novidade na área, e recebe uma reprimenda. A caçula a espinafra por ter escondido o caso, soube por jornais do escândalo do médico, mas nunca pensou que o sobrinho estivesse doente. Manda no dia seguinte artigos que são entregues ao único médico em quem Laura confia. A luta dá frutos e o quadro estabiliza.

Os estudos? Os amigos de Angus voltam a consolar o garoto...

- Putz quiparalho! Tua mãe é lôca, mano!

- Isso é coisa pra gente ver no vestiba!

Laura surge por trás, com o lanche e sugere que, em vez de resmungar, que aproveitem o adiantamento do amigo para se darem bem na escola. Eles acatam a idéia. Na manhã seguinte, Leandro dá uma notícia preocupante. Nem ele, nem nenhum dos colegas do mundo inteiro que consultou, sabe o que Angus tem. A medicação errada fez uma confusão de sintoma tão grande, que ninguém mais arrisca dizer que tratamento deve ser seguido. Além de áreas internas e importantes demais estarem envolvidas na lesão. Por enquanto, continuarão com a medicação e as actividades de praxe, mas alerta para que não subestime o menor sintoma, qualquer tremedeira, a mínima formigação, e mantenha Angus longe de lâminas e pontas.

Graças à mãe firme e disciplinadora, consegue chegar à puberdade sem maiores revezes, contando até com a presença da tia que nunca tinha visto na vida. A coleção de Mavericks de papel impressiona, não pela quantidade, mas pela personalização e pela qualidade da montagem, hoje com co-autoria da mãe. Aliás, se perguntam se um bom padrasto não seria de ajuda para ela cuidar do filho...

- Mas que idéia mais estapafúrdia!
- Por que? Se eu te levo comigo pra Alemanha, tu não fica solteira nem que queira! Já se olhou no espelho? Já viu o pitéu que tu és?
Não se acha. Nem se veste como uma mulher bonita, na verdade nem quer ser, quer manter os homens longe para se dedicar ao filho sem ser perturbada.
Continua...

2 comentários:

Patricia Daltro disse...

Gosto dos seus contos por você saber misturar com dosagens, quase precisas, o lirismo com o a melancolia. Virei acompanhar o Drama em 3 atos.

Nanael Soubaim disse...

Obrigado, amiguinha. Respeito as opiniões contrárias, por isso mesmo valorizo as como a tua.