04/10/2008

Aeromoça

A turbulência é grande, a nave estremece como se fosse se dissolver no ar. E é o que acontece. A aeromoça (como faz questão de ser chamada) consegue atar o último passageiro e as chapas do teto se desprendem, o vácuo a suga antes que se dê conta do que aconteceu.

Leva algum tempo para perceber o que está realmente acontecendo, está iniciando uma queda de quase três mil pés. A princípio chora, se desespera como se alguém fosse socorrê-la, como se o avião fosse dar meia-volta para tentar salvar sua vida. Mas ele se afasta a seiscentos quilômetros por hora, buscando altitudes menores, com o comando se esgoelando para pedir auxílio à torre. As comissárias de bordo não fazem questão de avisar da tragédia.

Cai em si. Ninguém vai salvar uma simples funcionária, para a qual existem milhares de candidatas para preencher a vaga que deixou. Ainda mais uma chata de caroço que insistia em ser chamada de aeromoça. Que merda! A gente não pode ser educada com os passageiros? Só porque não fazia careta quando me pediam uma caneta à bordo? Tá, eu nunca fui baladeira e companheira de manguaça, essas coisas. Isso deve pesar contra mim.

Vai pensando, meditando e praguejando enquanto a velocidade aumenta a 9,806 m/s². Sabe que estaria à salvo, na cabine da tripulação, se não tivesse se lembrado daquele bocó que levou uma revista pornô para o banheiro. Ele teria se lascado, acha que teria sido bem feito ao fedelho mal criado, mas seu senso de dever falou mais alto. Exactamente como lhe ensinara a sua mãe. Ah, droga! Agora ela chora desatadamente. Como ficará a sua mãe quando souber? Foi por causa dela que ingressou na carreira. Vanda era aeromoça, nos anos 1960, 1970 e 1980. Mas naquela época as cousas eram diferentes, se lembra bem de uma viagem que fez com ela e o pai à Lisboa, em 1978. Todas sorridentes, como enfermeiras que precisavam transmitir algo de bom aos pacientes. Aeromoça era algo glamouroso, conheceu várias pelo mundo, com uniformes que copiou e colocou em suas bonecas. Estão até hoje na estante, a mais nova tem o uniforme que usa agora. Droga! Droga! Droga! Droga! Droga! Droga!!!!!! Ela não queria ficar rica com isso, não queria viver imensos amores em cada país, nem mesmo escrever um livro quando se aposentasse. Só queria ser aeromoça. Conhecia a fundo as demandas da profissão, quando iniciou sua carreira, há menos de um ano. Mas que surpresa desagradável teve. Se sentiu uma arquiteta com doutorado, trabalhando com peões que não sabem fazer uma parede que não seja de tijolos furados.

Se pergunta o porquê de isto estar acontecendo. Sempre foi honesta até o talo, se dedicava aos passageiros como se realmente fosse uma enfermeira. Enfermagem, aliás, faz parte de sua formação, tal qual sua mãe, a melhor aeromoça que a antiga companhia aérea já teve. Sua mãe é seu ídolo, trabalhava com tpm, cólicas, joanetes, o que fosse. Ainda que com o semblante mais sóbrio, sempre tinha um sorriso para os olhos suplicantes de seus passageiros. Ser aeromoça demandava classe, elegância e boa educação. Seguiu todos os seus exemplos, tudo mesmo, à risca. Mas os tempos não são aqueles e a impessoalidade dominou quase tudo. Numa época em que a fedelhagem dos fóruns de internet rechaça quem demonstre cordialidade e camaradagem a todos os participantes, em que os carros rígidos e bem ajustados são chamados de resistentes, em que memórias sórdidas de uma prostituta (que se fez sem necessidade) são best-selers, em que ninguém mais sabe fazer piada sem palavrões e ofensas, em que uma brincadeira com um amigo pode render processos por alguma entidade neurótica, as suas qualificações não tinham mesmo o espaço de outrora.

Agora eu me pergunto, por quê? Por que eu me preparei tanto, se transar com o comandante é a única forma de subir naquela birosca, aquela garagem de paus-de-arara aéreos? Bem feito pra mim! Bem feito! Fiz tudo certo, deu nisto: vou me espatifar no chão daqui a pouco, vou virar ração em pasta pra cachorro. Eu sou burra, bur-ra... Mas não me arrependo de nada.

Começa a parar com as lamentações, pois o fim é inexorável. Se lembra do beijo que recebeu de uma criança autista, ao fim de uma viagem. Os pais da menina ficaram pasmos, completamente atônitos com aquilo, a psicóloga dela exigiu três testemunhas para acreditar. Acha que não fez nada de mais. Foi atenciosa, respeitou o mundinho daquela pequerrucha e conseguiu seu respeito. Volta a chorar, mas agora de alívio, pois esta lembrança honrosa traz outras, e outras, e mais outras. Não é ela a burra, são os chefes que não enxergavam e não remuneravam a contento a jóia que tinham em seu quadro.

Mas agora se lascaram! Ah, ah, ah, ah, ah, ah! Minha mãe vai poder comprar o condomínio inteiro com a indenização! Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah! Vai poder mandar todos aqueles xaropes pra fora e encher os apartamentos com nossos parentes. Irra! A Paula vai ter casa própria quando casar! Até que morrer não é tão ruim assim. Mas será que dói? E por que tá demorando tanto?

Aproveita a demora para, em um lampejo, pegar seu celular. Liga-o. A recepção está extraordinariamente boa. Pela primeira vez não amaldiçoa o inventor daquele aparelho. Liga para a mãe. Avisa que aconteceu um imprevisto e que não chegará em casa a tempo para o noivado da Paula. Se puder mandará mensagem (por um médium, quem sabe) e diz que ficará bem. Se despede da forma mais amorosa que consegue e desliga. Agora sim, chora copiosamente. Pela gente que deixará e, se o alfaiate Zé estiver certo, não verá por muitos anos. Se lembra de tudo o que fez de bom na vida, percebe que supera de longe suas traquinagens.

Começa a rezar para, não pedir, mas agradece pelo que pôde fazer de bom no pouco tempo de vida que teve, por não ter se rendido aos ataques dos colegas radicais de extremo rancor contra passageiros, por não ter deixado de fazer o que realmente queria e por ter sido uma aeromoça. A-e-ro-mo-ça. Foi para isso que se esmerou.

Olha para baixo, agora o chão está próximo. Que conveniente, bem o fundo do Instituto Médico Legal. Faz uma manobra para não ver e não sofrer ainda mais. Ajeita o broche na lapela, a echarpe azul e branca, coloca a boina contra o peito e acabou.
Nem doeu. Agora vai embora, que não precisa mais de nada daquilo.

4 comentários:

Luma Rosa disse...

Fiquei imaginando se pensaria em alguma coisa se estivesse participando de algo tão trágico. Penso também que não deve passar esse filme que todos dizem, afinal, dizem que perdemos totalmente a noçao do tempo e que tudo acontece rapidamente.
Gostei da crônica e retratou muito bem a aeromoça. Boa semana! Beijus

Nanael Soubaim disse...

O tal filme existe, Einstein explicou bem a questão do tempo, que os magos antigos já explicavam por parábolas.

Anônimo disse...

Muito bom o texto, agora resta saber se uma situação de emergência como esta dá pra pensar em tantas coisas assim... ;)

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Nanael Soubaim disse...

Denrtro do avião havia uma emergência. Já fora dele a situação era de morte decretada, não havia o que fazer.