Esther troca receitas e figurinhas com as outras mães, enquanto espera pelo início da reunião de pais de alunos, quando chega a directora da escola. Sarada, antenada, bronzeada, liberada e outros "adas" saltam aos olhos. Calça de malha preta bem justa, camisão com a estampa "Girl Power", óculos escuros, tênis que custaram mais do que todo o restante da indumentária, enfim, parece dez anos mais jovem do que é. Esther, por sua vez, parece ter saído dos anos 1950; vestido xadrez sem mangas com cintura marcada e sandálias baixas, cabelos curtos e volumosos, falsas pérolas no cólo e uma cor bem mais discreta. A compleição falsamente frágil e o olhar sereno não denunciam seu poderio matriarcal, nem as agruras que suportou com a dignidade de uma rainha, durante os seis primeiros anos de casamento, que também já esteve por um fio. Dona Mirtes, de bermuda jeans e uma camiseta com a estampa de Chê Guevara, entrega a última receita trocada. Sempre comentou o quanto essa directora é eficiente, mas também que não gosta muito de donas de casa, não sabe o porquê.
Quadra cheia, todas sentadas, burburinhos encerrados, a directora começa a falar. Solta as saudações de praxe, dá o calendário de praxe, fala das dificuldades de praxe e praxeia como de praxe. Chega a hora dos tópicos mais aprazíveis, como os testes vocacionais. Esther se espanta com a quantidade de alunos que não fazem a mínima idéia do que querem fazer da vida, ao contrário de seus filhos. Ah, seus pimpolhos nunca tiveram moleza, mas os mimos maternos foram proporcionais à dureza imposta, Sarah quer ser ilustradora e Jacob arquiteto. Pensa que os dois poderão até trabalhar juntos, pois um terá a técnica e a outra o talento para promover a produção. A voz da locutora fica mais grave e os devaneios passam...
- Mas muito me preocupa a quantidade de meninas que não sabem o que querem fazer! Ao que me parece, elas não estão recebendo a orientação adequada em casa, porque é justo onde algumas delas querem ficar! Querem viver às custas de um homem, em vez de trabalhar!
Agora ela acertou no fígado. Esther é dona de casa por opção, vê isso como um sacerdócio que abraçou de boa vontade. Mirtes sai de fininho, quando vê no rosto da vizinha a sombra de seu gênio. É uma mãe exemplar, cuida das finanças da casa como se fosse mágica, seus filhos estão sempre bem arrumados, o marido sempre alinhado, ela mesma sempre impecável e a casa, esta sempre como se fosse um comercial de margarina. Mas a imagem de submissão passa longe dessa mulher. Ela mesma plantou uma muda de marmelo para ter bons correctivos para a família, manuseia rodo e vassoura com uma agilidade marcial, detendo eventuais fugas de seus rebentos antes que saiam do seu alcance, até o mastim Israel sabe pelos olhos quando é seguro se aproximar de sua senhora. Enfim, ela é a soberana de sua família e não se ouve contestação, enquanto as outras mães enfrentam o inferno da adolescência rebelde sem causa. Mas ela dá a contra partida, exige disciplina e dá o exemplo. É uma mulher bonita de encher os olhos, sabe andar com elegância, comer com classe, se levantar com dignidade de um tombo. Não xinga, age. Pois essa "directorazinha atrevida está pedindo e vai receber"...
- Não se ofendam as frustradas aqui presentes, mas aspirar prendas domésticas, é querer ser prostituta de um homem só...
Esther se levanta. Mirtes começa a rezar. Esther avança com a calma mais falsa e traiçoeira do mundo, a directora só a percebe quando ela sobe ao palco e, antes que peça para voltar ao seu lugar, recebe um gancho no maxilar que a desacorda...
- A tua mãe talvez tenha sido prostituta de um homem só, posto que não se preocupou em te ensinar o respeito ao próximo, mas aqui somos todas trabalhadoras.
Olha para as outras mães, toma o microphone e usa uma de suas armas, o tom de voz com o qual dá aos filhos o primeiro aviso...
- Amigas, lamento ter interrompido essa revoltinha fútil que vocês estavam absorvendo tão placidamente. A discussão é o futuro profissional de nossos filhos? Então vamos conversar de mãe para mães. Eu sou dona de casa, a maioria de vocês me conhece, às demais sou Esther Gutemann, mãe de Sarah e Jacob, os melhores amigos que seus filhos podem ter. Escolhi essa carreira de livre e espontânea vontade, sou pharmacêutica de formação. Trabalho vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, mais hora extra a cada quatro anos. E querem saber? Eu amo isso. Reconhecimento? Não, eu não espero. Férias? Eu sabia que não as teria quando Sarah me acordou pela primeira vez, às 02h43, para mamar. Salário? Eu já trabalhei fora, mas quando Joseph conseguiu o emprego que um homem de verdade como ele merece, decidi me concentrar nos meus filhos. Eu acordo cedo e não tenho hora para dormir, vejo no escuro um grão de poeira fora do lugar, sei de cor e salteado o que há e o que falta na despensa, sei de todas as visitas médicas e odontológicas de cada um de nós, inclusive do nosso cão ao veterinário, pelos próximos doze meses. É, eu sei que é uma vida dura, mas mais dura sou eu. Não pensem que mantenho este corpo e esta pele nas academias. Não, minhas amigas, esta forma física é fruto do trabalho doméstico. Só que eu preciso representar a minha família, sou a embaixadora e cartão de visitas da casa. Por isso mesmo tenho truques que vou dividir com vocês, para não estragarem as mãos e os cabelos durante a labuta. Como ia dizendo, ser mãe é um sacerdócio, não é para qualquer um. Por isso metade da população nasce homem, e a outra não atinge os cem por cento de adesão. Aprendi a ser dona de casa com minhas ancestrais e estou ensinando Sarah. É uma missão de suma importância, pois somos nós, mães, que educamos ou estragamos nossos filhos. Eu não vou deixar uma empregada ou a escola educar meus filhos, é função minha. Se eu falhar, eles também falham. Vocês estão enfrentando a tal crise da adolescência, não é? Pois eu não sei o que é isso. Há coisas que um bom psicólogo conserta, mas as outras precisam ser cultivadas, como a disciplina, o respeito pelos outros, a responsabilidade, o gosto pelo trabalho, a honestidade, a paciência e o amor à família. Por favor, sem hipocrisias. Não sou governista, militarista, direitista-esquerdista, terra-a-vista ou coisa que valha. Sou mãe, dona de casa, estou formando dois cidadãos de fazer inveja aos suecos, é isso que uma dona de casa faz. Não precisa ter a dedicação exclusiva que eu tenho, mas precisa se dedicar. Por melhor que esteja a novela, o drama da televisão não vai afetar a sua vida, o da sua filha vai; por mais colorido que esteja o shopping center, os problemas do seu filho podem acinzentá-lo se não forem cuidados. Para nós, adultos, os dramas dessas crianças podem parecer bobagem, mas para elas é muito importante. Isso desde que aprendem a falar, não só quando começam a procurar problemas.
Eu sei o quanto cada uma de vocês é desvalorizada. Eu sei o quanto os homens preferem o objectificado, até que levam um par de cornos e reclamam da sorte. Eu sei muito bem o quanto este mundo machista e degenerado desrespeita a nós mulheres. Mas acreditem, boa parte da culpa é nossa. Eu já disse que somos nós que educamos ou estragamos nossos filhos, pois não estragamos só pelos mimos, mas também pela omissão. Se vocês não os educam, o mundo insensível e materialista lá fora vai fazê-lo à sua maneira, sem se importar com os estragos. Outro erro crasso que muitas cometem é querer competir com os homens. Por Moisés, isso é ridículo! É um general receber ordens de um recruta novato. Algumas chegam ao extremo, como esta pessoa aqui deitada, e se tornam tão agressivas e masculinas quanto eles. Esta pessoa que agora ronca feito uma motosserra afogada, é um homem de vagina. Homens não sabem educar, com raríssimas exceções, nem a si mesmos. Imaginem um mundo educado por eles: materialismo, imediatismo, desconsideração para com o próximo, busca por prazer físico a qualquer custo. Viram isso tudo em alguma manchete de jornal? mendigos queimados, bad-boy-olas quebrando boates e miando fino nas delegacias, uma juventude que acha que ser sincero é ser rude, que despreza quem trata bem o tempo inteiro, chama de falso quem não tem o que maldizer de alguém. Jacob já foi expulso pelos colegas, durante a educação física, porque apazigua os ânimos nesta escola, foi um trabalho danado em casa. E quando tudo isso começou a se dar? Não estou ouvindo? Começou quando nós passamos a agir pela lógica masculina do cada-um-por-si-e-todos-contra-todos. Falta a mão da mulher na sociedade de hoje. Competir o tempo todo é patológico, minhas amigas, mas essa juventude de agora não aceita se não for assim.
Eu não sou uma cortesão em minha casa, sou a Senhora de minha casa. Eu mando, a família obedece, é assim que tem que ser. Não precisávamos ter abandonado isso para ter nossas conquistas, muito pelo contrário, somos perfeitamente capazes de trabalhar fora (como já fiz) e manter a glória de nossa feminilidade à pleno vapor. Vamos, repitam comigo: fe-mi-ni-li-da-de. Feminilidade não é fragilidade, da mesma forma que prendas domésticas não é um eufemismo para prostituição. Eu conversava até ontem com a Dona Mirtes, o quanto essas actrizes novas estão feias! Você olha para elas e vê uma agressividade, que aprece que têm medo de serem mulheres, né, Mirtes?
- Nem me fala, menina, parece até homem capado! O meu sobrinho, o Nêgo, gritou que tavam mostrando uma actriz pelada e o Valti correu pra sala... e broxou. Falou que até a vassoura de palha do quintal é mais mulher, precisava ver. Umas não têm carne, outras é tudo empelotada, que horror!
- Ou seja, parecem homens. Mães, não tenham vergonha das prendas domésticas. Ninguém deve ser obrigado a assumir, mas quem assumir que o faça com amor. Três décadas sem essa profissão nos renderam pelo menos quatro gerações de pessoas egoístas, insensíveis, obcecadas pela beleza (é, deturparam a palavra) e juventude, vovôs que se recusam a envelhecer com dignidade e fazem plásticas como quem faz maquiagem. Essa "felicidade" artificial custa caro! E não resolve. Querem mesmo que seus filhos tenham um mínimo de chance na vida? Assumam-nos. Punir é desagradável, mas às vezes é necessário. Acordar às seis da manhã não é sacrifício coisa alguma. Menino deve saber cuidar da casa sim senhoras, ou não saberá dar valor ao que vocês fazem. Não perguntem aos seus maridos se eles querem jantar fora, simplesmente marquem e pronto, vocês têm o orçamento da casa e sabem o que podem gastar. Aprendam a diferenciar sensualidade, sexualidade e vulgaridade, porque as moças não estão sabendo, e os garotos... Bom, dois bilhões de neurônios a mais só servem de peso morto mesmo. Não, ninguém precisa se vestir como eu, isto aqui é um capricho meu e uma praticidade na hora de ir ao sanitário, mas não é isso que me torna uma dona de casa. Se vocês forem as donas de suas casas, ficará muito mais fácil serem mães de seus filhos, que saberão melhor o que querem ser na vida. É uma ocupação bonita, que precisa de pulso, mas não é um bicho de sete cabeças. E então, vamos às dicas? Mirtes, vamos deixar esta pessoa dormindo enquanto passamos nossas receitas de beleza. Nada de coisas caras, só truques domésticos...
10 comentários:
Muito obrigada pelo comentário Nanael!
Mto bom!
É de fato "a modernidade" vem entortando o mundo. a liberdade da mulher acho que está subindo a cabeça!
pessoas tem que ser criadas com carinho e por pessoas, não profissionais!!!
Precisamos de mais pessoas no mundo e não personagens!
ah. e muito obrigado pelo comentário!
;)
Belo texto. Parabéns! e obrigada pela visita ao meu blog. Volte sempre que puder. Farei o mesmo. Adorei seu blog.
Abraços grandes.
Voltei prá dizer que você está em meus favoritos.
Abraços.
Sou grato pelos protestos aqui prestados. Faz mais de um mês que publiquei este texto, não estive em boas condições, mas agora estou planejando a quinta onirisséia, espero estar à altura de vossas gentilezas.
Caramba velho... eu vi que vc comentou em um post meu lá no onipresente.eti.br...
Daí passei aqui pra ver seu blog...
velho..... posts MUITO MUITO grandes...
foram os primeiros que não fiquei com preguiça de ler....
muito bom cara... voltarei sempre aqui... volte ao onipresente!!! será sempre bem vindo
Adoro o nome dos seus persongens.
Esther, Sarah, Jacob e, pra terminar: Mirtes. Adoro.
Que bom que gostou do mimo. Você merece e o blog, claro, também. Só não deixe de repassá-lo, ao menos a 3 outros blogs de que gosta. Tem muita gente boa, não é? rsrsrs...
Beijos grandes.
Boa noite Nanael, tudo bem?
Espero que sim!
Estou lendo este post por curiosidade, já que você deixou o link lá no Mundo de Eddie. De agora em diante vou ficar de olho no seu blog... rsrs.
Com relação a este post, olha... não me entenda mal. Eu não concordo com tudo o que você escreveu. Na verdade, as duas personagens centrais representam o extremo de cada um dos estereótipos: A mãe e a feminista. Se eu tivesse que escolher... não ficaria com nenhuma! Procuro andar pelo caminho do meio...
Para ser honesta, eu enlouqueceria se tivesse uma mãe como essa Esther. Já pessou, uma mãe que enxerga poeira no escuro e manuseia um rodo com habilidade marcial? Que medo! A Deusa que me livre...
Estou mais para Morgana Le Fay: Nem mãe, nem feminista. Somente o que eu quiser ser e quando me for conveniênte, mesmo que depois eu veja que foi tudo um erro.
Bom, é isso. Um beijo e ótima noite!
Sem grilo.
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