Este texto é mais uma homenagem à Audrey Beathan, uma criança com mais de vinte anos que me devolveu um pouco da alegria que eu tinha perdido muito precocemente; também ao meu amigo Kanangô, que me deu motivos para não mais menosprezar os filmes de hoje... Agora só os detesto.
Não existem apenas sonhos individuais. Ao contrário das alucinações, que emanam do mais obscuro rincão do ego de cada um, os sonhos podem ser coletivos e o cinema é a mais contundente representação deles.
Quando um evento público consegue causar algum tipo de torpor, ou ao menos distrair as massas de seu cotidiano, torna-se um sonho coletivo. Actualmente a televisão tomou o trono, daí se compreende porque as pessoas têm tido cada vez mais pesadelos. Um sonho somente, entretanto, não é suficiente para aliviar o sofrimento de uma população. Também se fazem necessários remédios de tarja preta, comida leve ou (de preferência) a REALIZAÇÃO, ao menos parcial, do que esse sonho coletivo prometeu.
ONDE TUDO DEU ERRADO?
Não sei. Mas com certeza não foi absolutamente tudo, tudinho da silva, ou toda a civilização teria entrado em colapso. Imaginem seis bilhões de pessoas azedas, infelizes e dispostas a dar cabo de si e dos outros, por não terem sentido para suas vidas! Faria o bairro mais violento do Brasil parecer um paraíso. Algo deu certo.
ONDE ALGO DEU CERTO?
Foi logo no início. Quando os irmãos Lumiére fizeram a primeira sessão, as pessoas, após fugirem do trem (ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah) descobriram uma aventura na qual não corriam riscos desnecessários, a não ser de se apaixonarem pela arte nascente. Poderiam participar de romances, conhecer gente nova, lugares inusitados e toda uma sorte de possibilidades que ainda hoje não esgotaram... Notaram como a língua portuguesa tem palavras estranhas? Esgotar... Esgoto... Faz sentido, mas é estranha.
Claro que neste mundo tudo tem seu lado ruim, mas este a imprensa faz questão de mostrar e exagerar, então me aterei às partes boas. Como Greta Garbo. Ah, vocês jovens não sabem o que é uma actriz! Era aquele mulherão aparecer na tela e qualquer cochicho desaparecer. Ela vendeu o sonho da mulher poderosa e emancipada no período entre guerras, uma ousadia que logo despertou a ira dos conservadores. Disciplinada ao extremo, abandonou o cinema quando teve sua primeira bilheteria abaixo da expectativa. Achou que era tempo de parar, ainda jovem. Mas soube respeitar os sonhos que vendeu e tomou chá de sumiço, até nos deixar em 1990. A imagem que todos têm dela é a da sueca inatingível, cujo olhar por si mesmo emana uma ordem à qual não se pode resistir. Bem, ela era assim na vida pessoal. Isso a tornou um tanto distante nas relações pessoais, mas foi sincera. Sabia que estava vendendo sonhos, não sua vida pessoal, então não dava entrevistas, não fazia charme para photógraphos, enfim, se portava como a deusa que conseguiu fabricar. Acabou se tornando realmente uma deusa pois quase ninguém a viu velha. Isso foi ponto de honra para a moça reclusa e atraente.
Falando em deusas... Grace Patrícia Kelly. Gênio inversamente proporcional à sua constituição frágil, não esperou o papai arranjar um casamento vantajoso na Philadélphia e foi logo trabalhar. Começando de baixo, mas sem parar para esperar pelo príncipe encantado. Um dia se tornou princesa. Mas princesa de verdade, que trabalhava com o marido nos negócios do principado, mais tarde engajou em uma causa nobre e criou uma fundação em prol das crianças pobres, que ainda hoje funciona sob a batuta da filha, a princesa Caroline. Me perdoem os amigos lusitanos, mas por cá respeitamos os nomes próprios. Para quem adorava detratar sua imagem, era ignorado o facto de ela ser mãe de três adolescentes, tendo uma delas a alcunha de "A Criança Terrível", quem é mãe já está compreendendo o que digo. Grace se destacava não só pelo talento, mas por sua plástica irrepreensível, um rosto que ninguém se cansava de olhar e um comportamento público de grande refinamento. Grande apreciadora de homens mais velhos, hoje talvez chocasse por isso, mas na época era sinônimo de juízo preferir homens maduros, tanto que se casou com um.
Trabalho também não incomodava a belga Audrey Hepburn. O Anjo das Crianças, que ilustra este texto. Seguiu o exemplo da amiga loura e foi mais longe. A fidalga foi um dos maiores ícones de classe e elegância do século XX. Bem educada de berço, bem instruída, talentosa, excelente voz, postura de uma rainha. Deixou o cinema por muito tempo para se dedicar aos filhos, o horror para as feministas mais azedas. mas nunca deixou de militar, viajava aos países africanos, fez o mundo perceber que estava deixando alguém de lado.
Agora aos sonhos, como se essas três já não tivessem sido em vida. As distintas damas em questão fizeram trabalhos de fazer os productores de hoje se esconderem de vergonha, se eles tivessem. Muito romanceadamente, elas mostraram que o mundo não é um paraíso, que mesmo os mais abastados choravam e que essa abundância, irônicamente, poderia consistir na ruína do elitizado. Sendo coerentes com suas propostas, elas e a maioria de suas colegas de olimpo, convenciam as pessoas de que se poderia ter esperanças se o trabalho viesse no pacote. Pois não se conhece época de maior esperança do que aquele período de poucas décadas. As pessoas começavam a ver a contradição tanto do conservadorismo, como a segregação que os ianques tinham legalizada, quanto no apego às novidades, que Charles Chaplin mostrou de modo inequívoco em "Tempos Modernos". As previsões para o futuro eram as mais optimistas da história. James Dean mostrava que os espinhos eram muitos, que a falta de vigilância e a intolerância doméstica poderiam ser letais, mas foi ele o endeusado, não a atitude de seus personagens.
E o cinema se uniu aos arquétipos, tornando-se um neótipo. "Bonequinha de Luxo", "Janela Indiscreta", "O Poderoso Chefão", "Cidadão Kane", "O Maior Espetáculo da Terra", "Casablanca", "E O Vento Levou"... Não haveria espaço neste blog para citar só os que eu tive a alegria de assistir. Por isso mesmo posso assegurar a superioridade qualitativa dessas obras.
Um trabalho bem feito era comum, não se ouviam exclamações quando ele aparecia. Tanto em ficção quanto em bases de factos reais, as cenas cinematográphicas fazem emergir os medos e os anseios que a vigília mecanicista oprime, tornando até mais fácil o trabalho de psicólogos e psiquiatras. Basta perguntar a uma pessoa quais os seus filmes preferidos e o porquê de preferir estes, logo os olhos brilham e a expressão facial, antes neutra e normopatológica, muda completamente. O camarada acanhado e obediente revela seu lado autoritário, a moça rebelde e independente revela a Branca de Neve que ainda sobrevive em seu coração, o conservador extremista exteriora suas taras e fantasias mais loucas, enquanto o brutamontes confessa que queria fazer balé.
Não é nada de extraordinário, é psicologia. Extraordinário é o recurso estar quase inexplorado pela maioria dos profissionais. Seria arterial na ajuda aos mais reclusos pacientes.
Eu adoro desenho animado. Adoro as obras de Tex Avery. Daí um bom profissional logo descobriria que não precisa ter medo de minha cara fechada, bastando ter respeito pela casa.
Imaginem um bom musical, como "Cantando na Chuva". Há quem chore ao ver Gene Kelly dançando na rua. Chora e aluga o filme toda semana. Masoquismo? Um pouco. Mas estar cantando debaixo daquele aguaceiro remete, principalmente, ao nascimento; "Como ele pode estar tão feliz por nascer se eu achei uma completa desgraça?". Enquanto não entender o que realmente sente com aquela cena, vai continuar chorando e não aproveitando o melhor do filme. Mas eis que, eureka, um dia ele se vê sob uma tempestade, com a roupa ensopada e começa a cantar feito um demente "I'm sing'n in the rain..." ele vê que o nascimento, apesar de sofrido, pode sim ser muito bom. Só que depois ninguém entende como ele melhorou tanto de humor. E daí? Que aproveitem a nova fase e deixem o dem... digo, o rapaz cantar e dançar.
Senhoras e senhores profissionais de saúde mental, vos faço este singelo apelo, usem o cinema de qualidade para ajudar no tratamento de seus pacientes. Eles e vocês só têm a ganhar.
4 comentários:
Ter citado as três musas/deusas e ter deixado a bela Rita de lado me faz pensar que é mais chegado às refinadas damas do que às mulheres-rasa-quarteirão. De qualquer forma, são eternamente belas, não produzidas para assim parecerem.
Sobre a chuva, é uma seqüência tão bonita capaz de me trazer tantas coisas boas à cabeça que nem vou entrar nesse assunto (pode ser deselegante fazer um comentário maior que o próprio post). Mas penso que até Alex, com seus druggies e sua loucura, entendia o que Gene cantava naquele momento. Também adoro Tex Avery e tudo mais. Só queria entender, se o cinema é um bom vinho, até que safra você consome?
Não esqueci Rita, só me ative às que (de facto) fazem mais o meu gênero.
Um bom vinho fica pelo menos cinco anos maturando, mas no caso do cinema, atenha-se à safra 1980, com raras excessões.
Obrigada por ter passado lá no meu blog, sinta-se sempre convidado a voltar!
bom fds!
Seu texto é um primor. Obrigada pela visita.
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