27/11/2019

O ventre frio de um coração morno


Let her be what she is...

            Uma princesa que não quer saber de relacionamento “amoroso”, não demonstra interesse por ninguém e foca em suas obrigações para com seu reino. Seria um pesadelo para seu país, se sua irmã não estivesse tão apta e inclinada a fornecer descendentes para a sucessão.



            A apresentação desta princesa aos seus poderes foi rude, tão rude que a traumatizou. Descobriu logo cedo que suas vontades seriam fácil e imediatamente satisfeitas, mas essa descoberta se deu ferindo quem mais amava. Não é preciso ser profissional de saúde mental para saber o que viria depois, ela carregou a culpa adquirida na tenra infância até a vida adulta, se castrando e se tolhendo, sentindo-se responsável por todos à sua volta.



            Ela deu um rumo positivo ao seu trauma, mas ele continuava a ser um trauma e cedo ou tarde cobraria seus tributos. Tornou-se uma rainha eficiente e habilidosa, bem como uma nobre amada por seu povo e amplamente capaz de sacrifícios por terceiros. Sua capacidade de resignação e resiliência a tornaram uma mulher abnegada e disciplinada, tanto quando um ser humano afetuoso e capaz de se colocar na pele do outro. Enfim, uma verdadeira clériga no exercício de suas funções. Bem, esta é a parte boa da história…



            A parte ruim é justamente a estrutura que suporta toda essa virtude. É formada por metal forjado e fortemente refrigerado que, se dá uma solidez extraordinária, também vibra e reverbera ao menor impacto, podendo ferir as partes mais sensíveis da estrutura suportada, como o baú onde o trauma está guardado. Traumas são como nitroglicerina. Tão focada em manter o mundo em ordem, ela se esqueceu de ordenar seu próprio mundo. Seu coração tornou-se frágil e instável. Instabilidade que era compensada pelo intelecto superdesenvolvido e pela imensa capacidade de sacrifício pessoal, mas mesmo esses recursos têm seus limites.



            Um dia sua fama chegou a ouvidos indesejáveis, que suas atribuições diplomáticas vez ou outra a obrigam a aturar. Um par de ouvidos deses decidiu tirar o máximo proveito que pudesse de nossa bela e competente rainha, que não demorou a revelar sua inabilidade em lidar com assuntos íntimos, muito menos com terceiros, menos ainda com estranhos. Sua capacidade em identificar maus executivos não estava sincronizada à atrofiada capacidade de identificar más pessoas… e ela sofreu! Sofreu tanto que a nitroglicerina explodiu, e fez a estrutura vibrar ainda mais, aumentando mais a dor e com ela, o poder da explosão.



            Ela viu seu poder ferir novamente e viu-se como um monstro. As feridas causadas e sofridas quando infanta voltaram a abrir e causar as dores de quando sofreu os cortes. Isolou-se voluntariamente no frio âmago de sua finalmente recomposta racionalidade, e nesse exílio deu-se conta de que realmente não precisava relacionar-se como queriam que o fizesse. Cercou-se de infraestrutura e proteção para se dedicar a curar-se e a não mais ferir. Encontrou paz no período em que pôde usufruir de seu retiro, servindo-se dele para se autoconhecer e se reestruturar… mas não foi tempo suficiente. Aqueles que tinha em seu coração também a tinham em seus corações, e foram buscá-la.



            Ela precisou voltar, mas não estava pronta. Caiu novamente no jugo dos armadores hábeis na forma das palavras, forma que usaram para ludibriar e camuflar as claras perfídias que suas atitudes demonstravam, fazendo a princesa apiedar-se de si mesma em um ciclo venenoso de retroalimentação. A intenção de levar a óbito para apossar-se do legado da rainha, entretanto, fê-los subestimar um amor que, em seu ciclo perpétuo de egoísmo e puberização das emoções, eles simplesmente não conheciam. Assim que a ferida que lhe era imposta foi estendida aos que ela amava, a nitroglicerina deu lugar ao plutônio e a fúria da indignação sincera fez seu afã em proteger os seus, em uma explosão de poder coja extensão só agora ela conhecia, mas por isso mesmo ainda não conseguia controlar a contento.



            Ela feriu. Ela matou. Viu com terror a facilidade miraculosa com que seus desejos eram executados em sua totalidade, ônus embutido de modo inaparente aos bônus de ser uma rainha regente. Ao invés de se embebedar no licor alucinógeno desse poder, como seus agressores o faziam rotineiramente, a rainha usou-o no exercício de seus deveres reais e defendeu seu povo, seus amigos e, especialmente, sua amada irmã, que ao lado de seu improvável amado dar-lhe-á a sucessão tranqüilizadora à sua pesada coroa. É por essas pessoas, não por si, que ela se dedica sacerdotalmente à seara que abraçou, deixando para o poente de sua vida o retiro permanente que seu coração tanto almeja. A privação conjugal não a incomoda mais.

            Ela transformou sua vida em um sacerdócio, e é como uma clériga que ela vive. Assustador para muita gente, mas a quem a vida a dois perde sentido é uma decisão até certo ponto simples. O amor ao próximo, quando se torna um hábito, faculta outras forças de "afeição", e a sexual é quase sempre a primeira a virar história, quando a pessoa se decide a mudar suas prioridades. Se entregar a uma causa sem esperar por retribuição, é o exacto oposto do que praticam os amantes dos prazeres baixos. Não é preciso se trancar em um mosteiro, vestir-se com um lençol da cabeça aos pés, fazer toda sorte de votos restritivos ou o que valha; é um tipo de maturidade que exclui naturalmente o que não serve mais, como o intestino, que não precisa da tua vontade para isolar as toxinas e separá-las dos nutrientes. Tudo isso, após a decisão tomada e levada a termo, acontece naturalmente.



            A quem sabe ler ponto, ficou claro que a imagem de Elsa não é meramente ilustrativa.



            Não. Ao contrário dos que se revoltaram com o final romântico de Samurai Jack, e ignoram seletivamente a história de Moana, alardeavam, Elsa não era amante de Ana, assim como nunca demonstrou interesse abaixo da cintura por ninguém. Dizer que ama uma pessoa, não significa um convite para o motel. Dar a vida por alguém não é sinônimo de favores sexuais, ou de qualquer outra natureza, prestados. Aqueles que mais dizem pregar, e mais se atribuem a virtude do amor desinteressado, são os primeiros a rechaçar seu exemplo e duvidar de sua existência. Mesmo os garotos que se esmeraram em fazer artes picantes, muitas de lesbianismo entre Elsa e Ana, tiveram mais respeito pelas personagens do que os outros. El Pateta ainda tentou alegar que o filme dava sinais claros de lesbianismo e que por isso Elsa era obrigada a ter uma namorada… viu o que quis e o que permitiu sua visão de baixo-ventre.

           Não, não haveria problemas se ela fosse homossexual, a Disney sempre foi suficientemente competente para não chocar seu público além do necessário e cenas tórridas estariam descartadas. Por que então há problema em ela não ser? Por que houve problemas em Samurai Jack não ser? Vão querer obrigar Moana a ser, só porque ela não abriu as pernas para aquele louco varrido?

Nenhum comentário: