12/04/2013

Perdidos no tempo




A casa é ampla, arejada, cheia de plantas ao seu redor. O estilo é meio bucólico, do tempo em que os goianos ainda estavam aprendendo a viver na cidade... Convenhamos, esse aprendizado jamais foi concluído.

Há a porta bipartida na sala, com portinholas para se ver com mais discrição, quem está chamando ao portão. Um recurso relativamente barato e estranhamente ignorado, em uma época de histeria pela insegurança pública. Ficam quase sempre abertas.

No jardim sempre está a dona da casa, a cuidar como tem feito nos últimos quarenta anos. Apesar de todos os lutos e provações que a idade lhe impôs, e de ter um ar tão bucólico quanto a casa, é uma mulher sorridente, talvez celebrando por ter sobrevivido a tudo.

Foram morar no bairro quando ainda era um lugar tranqüilo, com pouco trânsito, que tinha hora certa para começar e terminar. Mas isso faz muito tempo, muito tempo mesmo! Era época em que o silêncio era tamanho, que de longe identificavam o carro, só pelo ruído do motor. Fora, claro, que a temperatura média anual era menor, ajudava o clima de tranqüilidade. Hoje praticametne não há mais inverno na cidade.

O lote é grande, de antes de a especulação imobiliária se instalar na capital. Nos fundos há uma horta diversificada. Há uns doze anos os filhos os convenceram a aceitar uma piscina, pequena, simples, de fibra-de-vidro, mas uma piscina que acabou ajudando na fisioterapia do pai. O gramado, a sombra do maracujá, enfim, tudo ajuda a deixar a temperatura uns três graus célcius mais fresco do que no restante do bairro.

O interior é o esperado de uma casa feita nos anos cinqüenta, que tem o ano de construção em relevo, na fachada: 1957. As paredes são grossas, sólidas, mas sofreram várias intervenções em função de instalação eléctrica e hidráulica. nada que descaracterize a arquitetura. O forro paulista já foi trocado, por conta de uma goteira que levaram anos para solucionar. Quando viram, era uma vigota empenada, que empenava ainda mais na época da chuva, e assim abria um espaço maior entre as telhas.

Os cômodos são amplos e todos ainda têm as janelas originais, bipartidas de madeira e vidro. Com a parte de vidro aberta, para dentro, a de madeira pode ficar fechada, têm aberturas para ventilação. O piso é de elementos de cimento decorado, vermelho escuro com losangos amarelos, hoje dificílimos de encontrar. Há algumas improvisações artesanais, que os próprios moradores fizeram; até que não ficaram muito diferentes dos outros.

Na estante, em um quarto transformado em biblioteca, há uma encoclopédia de três volumes sobre artesanato, comprada no início dos anos setenta, que a dona da casa ainda utiliza regularmente. Menos, ainda utiliza a máquina de costura.

Eles temem pela violência, sim, mas a juventude saudável ficou arraigada demais para se esconderem de qualuer estranho que olhe para sua direção. O muro baixo ganhou uma grade vermelha alta, mas foi só. O velho Opala sedan 1972 verde ainda está lá, com seus bancos inteiriços, pronto para levar motorista e cinco passageiros, exposto à admiração dos passantes que souberem fazê-lo. Os netinhos o adoram.

Decerto que a persistência tem seu preço. Eles pagam sem reclamar, mas é alto. Todos os vizinhos já perderam contacto. Suas casas foram demolidas e deram lugar a edifícios. A casa tornou-se um vale entre gigantes de concreto armado, com sombras incômodas de Junho a Setembro durante boa parte do dia. Fora qu a concentração populacional acabou com a diversão de identificar os carros só pelo ruído do motor.

Na realidade a casa tornou-se uma cápsula temporal no bairro. Na realidade, permitir um vão para o vento passar e dispersar a poluição, constirui uma recompensa íntima para eles. na realidade, mesmo com os contras, são felizes. Uma filha ainda mora consigo, os outros três os visitam com muita freqüência, de vez em quando dormem com suas famílias nos quartos da residência, ajudam no que podem, praticamente moram na casa.

Eles têm internet "banda larga", se é que existe isso no Brasil, sem fio. Têm tevê por assinatura, um gerador diesel para compensar a inépcia estatal, a casa é equipada com o que há de moderno. Mas tudo isso convive com os quadros, cujo mais novo tem vinte e cinco anos, pendurados nas paredes da ante-sala e da sala. O recado é claro, aquilo não é só uma construção de tijolos, é um lar.

Conseguiram manter a casa movimentada, com vida, mantendo do lado de fora a neurose de um mundo que pensa que é moderno. Um dia aqueles edifícios serão desmontados, já há planos para condomínios fechados de sobrados, para daqui a cinco anos. Os moradores estão indo embora tão rápido quanto chegaram. Quando isso acontecer, sabem que boa parte da tranqüilidade d'outrora será reestabelecida, e será suficiente.

A casa do texto é fictícia, mas existem centenas delas pela cidade, ainda hoje resisitndo à deterioração da qualidde de vida que um dia tivemos.

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