30/09/2011

Nobiliarquia republicana

Lilith se põe a organizar os pacotes, para facilitar o trabalho dos voluntários. Poderia estar se divertindo, curtindo a vida, curtindo couro, enfim, poderia estar fazendo algo de cunho pessoal e individualista, mas está ajudando. Tem de tudo naquela muvuca, batista, presbiteriano, católico, anglicano, luterano, muçulmano, judeu, ateu, budista, wiccano, guardião do pergaminho, zoroastrista... Ninguém naquele recinto é mais do que voluntário.

Chegando a hora de enviar tudo, aparece alguém que acha ser alguma coisa, ela ouve um sujeito retorizando a respeito de sua condição social, todo inchado, com a gravata balançando a cada vai-e-vem que usa para parecer imponente...

 - Portanto, por minha eminente posição nesta sociedade, por meus relevantes serviços prestados ao Estado, me vejo no direito de ser chamado de doutor, e assim sou tratatado por meus pares.

 - Quem é o senhor, posso saber?

 - Senhor Doutor Bruno Furterário, para o seu governo. Quero saber de quem posso ter satisfações destas actividades, senhorita...

 - Senhora Lilith Talassa. Se o senhor não for da polícia ou qualquer autoridade, ninguém aqui lhe deve satisfações.

 - Mas eu sou autoridade! Autoridade moral. Já ocupei vários cargos públicos, tenho trânsito livre nas espheras do poder, sou influente e famoso no meio social.

 - Para mim é um ilustre ninguém. Se não tem o que acrescentar, faça o favor de dar licença, que estamos ocupados.

 - Você não ouviu o que eu disse? Não lhe diz nada o meu nome?

 - Que está envolvido com a dilapidação do erário e ajudou a arruinar esta cidade, que já foi sinônimo de qualidade de vida?

 - Mais respeito! Eu deveria esfregar na sua cara todos os meus diplomas, homenagens e títulos que já recebi, mas isto a humilharia demais.

 - O que você quer aqui, afinal?

 - Vocês estão fazendo um serviço social que deveria ter colaboração de uma instituição oficial. Nosso emérito secretário recebeu o ofício e estava se preparando para mandar um memorando ao governador, quando soube que já tinham começado a trabalhar sem ele ter designado um representante!

 - Cara, como eu odeio politicagem! Nossa voluntária mandou o ofício há seis meses!

 - Oras, e você acha que um Secretário de Estado fica o dia inteiro de papo por ar, sem fazer nada? Ele tinha muito mais assuntos a tratar!

 - Por isso mesmo começamos a trabalhar, já que tudo mais é tão mais importante do que a ação informada com seis meses de antecedência. Carol, podem continuar com o serviço que eu resolvo essa parada aqui.

- Negativo! Parem agora! É uma ordem! A imprensa oficial precisa registrar...

 - Ah...

A interjeição toma conta do galpão. Agora sabem porque o secretário se desesperou em mandar aquela mala sem alça, ao saber por terceiros que já estavam trabalhando para as doações natalinas, com a antecedência que um evento desta monta requer...

 - Então você veio aqui só pra parar os serviços e poder bancar o papagaio de pirata!

 - Que insolência! Isto vai lhes custar as verbas do convênio!

 - Que convênio, pilantrão? A gente age por conta própria, com recursos próprios, com ou sem apoio de malandros de colarinho branco.

 - Malandro?? Você não sabe no que está se metendo, sua atrevida!

 - É, não sei mesmo. Me conta?

 - Eu sou gente superior, moro em condomínio de superiores, tudo o que conquistei me levou até aqui, junto ao nível social de meus privilégios. Venho em nome do Senhor Doutor Excelência o Secretário de Assistencialismo Social! Portanto, tenho autoridade de Secretário de Estado. Exijo, portanto, nas atribuições a mim outorgadas, que me trate por Senhor Doutor, que é o mínimo de respeito que a ralé me deve, sob pena de providências cabíveis! Eu tenho influência, posso colocar vocês todos na cadeia!

Ela o observa de cima a baixo, boceja, neneia a cabeça, olha para seus companheiros e lhe volta um olhar de piedade...

 - Então é assim que vocês agem com quem pensam que não pode se defender? Ok, te chamo de doutor, mas com três condições. Mostre seu título de doutorado, com a tese aprovada; prove que "doutor" é pronome de tratamento, porque ninguém é obrigado a me chamar pelo meu título; prove que sou obrigada a te chamar assim. Caso contrário, eu te processo por falsidade ideológica.

 - Ah, não me venha com essa! E como fica a tradição? O costume da região? A aceitação popular do que já é tido como normal? Sou um doutor da sociedade, agraciado com honras pelos relevantes serviços prestados ao Estado, cidadão honorário de dezessete cidades goianas, com meu nome nas atas das principais reuniões da equipe do governador, sou a nata da sociedade. E você, quem é?

 - Fala logo e cala a boca desse palerma!

- Tá... Sou a Condessa Lilith Talassa, bilionária, constructora de navios, estou ajudando a segurar a barra da crise européia enquanto vocês posam de bacanas para colunistas pagos, e de vez em quando venho ao Brasil para ajudar gente do país onde nasci, sem pedir reconhecimento nenhum por isso.

 - Nunca ouvi falar...

 - Porque eu trabalho, muitas vezes em causa pública, coisas que vocês desconhecem. Agora dá licença que temos muito o que fazer, o fim do ano está chegando e tem gente precisando de ao menos uma alegria pra ver que a vida compensa. Desinfeta, tá. Carol, vamos voltar pro trampo.

 - Mas, fala, cê sabe quem é ele, não sabe?

 - Sei, só falei aquilo pra sacanear ele mesmo. É um dos principais resposáveis por transformar o transporte público modelo de Goiânia, em um desfile de paus-de-arara sem horários certos. De boa, duvido que esse cara saiba o que é um condado, subiu na vida usando os outros como escada, no vácuo da politicalha. O cara quer ser tratado como nobre, quando até na Europa a nobreza já significa ter mais deveres do que direitos. Eu tenho um título nobiliarquico, da época em que a Grécia era uma monarquia, já é quase meio milênio de nobiliarquia da família, mas ser condessa não refresca meus olhinhos lindos. Eu dou duro na condução dos negócios da família, tive até que vender um cargueiro quase sem lucro nenhum, para não ser levada na enxurrada de emrpesas que pediram concordata. Coisas que esses... Essa elitizinha egoísta e medíocre, viciada em mamata política como quem se vicia em crac, não concebe.

Ele ouve e sai pisando duro, jurando vingança, mas não volta. No seu lugar, um mensageiro com uma minuta de desculpas do secretário, que descobriu que ela tem poder de fogo e pode revidar duramente uma represália, ao contrário dos coitados que já padeceram em suas mãos. Conseguem concluir os trabalhos sem novos incômodos, e sem a persona non grata do secretário com sua comitiva publicitária.

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