17/10/2008

Tristeza assumida




Caminhava à luz da Lua Cheia, sem preocupações e sem ansiedades. Feliz. Um pouco triste, é certo, mas tristeza não é sinônimo de infelicidade.


Durante a infância foi uma criança alegre e despreocupada com a vida, afinal só teria sua formação cerebral (e portanto sua ligação com o corpo) completa pelos seis ou sete anos. brincava, corria, caia, se machucava, levantava e corria de novo. Foi uma criança normal. Se é que uma criança pode ser chamada de normal.


Com o passar dos anos foi tomando uma sobriedade intensa, muito maior do que os adultos achavam salutar para a sua idade. Se há algo que detesta até hoje, é compararem com qualquer outra pessoa, ainda que para a melhor.


Levaram a criança triste (como ficou conhecida na rua) para um psiquiatra com mais títulos e congressos do que células no corpo. De pronto diagnosticou esquizofrenia, sem nem ter tido muita conversa com a parte mais interessada. Passou medicamentos e aconselhou uma vigília rígida sobre seu comportamento.


As drogas acabaram dando, pois toda droga dá, efeitos colaterais. Até hoje tem os cabelos fragilizados por isso.


A vigilância foi um factor de irritação profunda, principalmente quando descobriu uma câmera escondida no banheiro. Em poucos meses viram suas imagens em um site de pedofilia. Os técnicos que instalaram a parafernália ganharam bem pelas imagens de sua mais privativa intimidade.


Um dia decidiu vestir a fantasia de adolescente. Seriam só seis anos. Seis anos e poderia sair de casa, sem dar satisfações, passar a agir à sua maneira e não ter que agüentar as cobranças para que exibisse alegria.


Ainda não era aquela cousa caricata dos adolescentes, mas já parecia á família, mais normal. Quanto sofrimento! Logo percebeu que ninguém notava a diferença entre um sorriso e uma exibição de dentes.


O passar dos anos foi penoso. Toda aquela gente superficial e vazia lhe dava náuseas. Todo aquele discursos pseudointelectual fazia um corte nos pulsos parecer razoável. Não se poderia esperar demais de gente com a sua idade, mas esperava muito mais do que isto de sua própria pessoa.


Conheceu cantores e grupos de antes de seu nascimento. Músicas tristes, melancólicas até, mas alguma muito animadas. Passou a saborear as obras ás escondidas, para não ter mais que dar satisfações a um psiquiatra com cara de tarado. Uma de suas preferidas passou a ser "Israel" nos vocais do Bee Gees. Aos poucos as músicas célticas, medievais, as antigas de Roberto e Erasmo, et cétera. Sentia-se bem. Ficava triste, sim, mas sentia-se muitíssimo bem. Conseguia se equilibrar e colocar as idéias em ordem.


Enquanto os "amigos" se casavam cedo, não raro à contragosto, se envolviam em barbáries jamais vistas por seus pais, se desencaminhavam completamente, sua tristeza lhe garantia a serenidade necessária aos seus propósitos. De campeonato de transa por noite a campanha pela obrigatoriedade da castidade, seus "amigos" se enveredaram por todo tipo de caminho, mas sempre em alas muito radicais, quase sempre irracionalmente radicais.


Decidiu estudar psicologia por conta própria, para saber se o que tinha era realmente nocivo. Acabou se envolvendo mais do que imaginava, logo passou a tomar "drogas" mais pesadas, como philosophia, arquetipismo, línguas mortas e outras.


Sua conclusão foi tão simples que se surpreendeu. A tristeza não é de todo ruim. em níveis baixos, como o seu, pode ser chamada de introspecção. Essa introspecção protegia sua sensibilidade aguçada de um mundo que lhe parecia ser muito grosseiro e agressivo, lhe permitiu viver até então sem se molestar, mantendo o respeito próprio.


Os estudos voluntários acabaram por ter um efeito colateral, pois toda "droga" tem. Não viu a passagem dos anos. Os seis anos se foram como se tivessem sido seis meses. Apesar da sobriedade intensa, da imensa antipatia para com quase tudo o que as pessoas louvam nesta época, era feliz. Na véspera de completar dezoito anos, foi à costureira buscar o vestido longuete azul marinho que encomendara, vestiu-o e chamou os pais para uma conversa séria. Não parecia uma jovem, parecia ser mãe da própria mãe. Primeiro avisou que, apesar de nem pensar em se converter, estava estudando a fundo e simpatizando muito com o judaísmo, então não os acompanharia mais às missas cheias de gente engomada que dão cheques de cinco reais à paróquia. Pelo menos não se sentia mais obrigada a fazê-lo, então que não contassem com sua presença. Agora avisa que não vestiria mais a máscara de jovem rebelde-sem-causa-mas-socialmente-aceita que vestia até agora. Nada tendo contra a juventude descompromissada, não fazia e nunca fez parte dela. Não queria ir á balada, não queria beber até cair para ver como é, não queria experimentar o que sabia que faria mal só para "saber" se gosta, enfim, sua cabecinha era muito diferente.


O ultimato amedrontou seus pais de sobremaneira, amanhã poderia ou não haver uma festa de dezoito anos, se a respeitassem do jeito que é. Caso contrário, já tinha para onde ir logo nas primeiras horas do primeiro dia de sua maturidade. Os fez lembrar das fortunas e dos prantos que nunca precisaram gastar por sua causa, dos filhos inesperados que não arranjou e dos cafagestes que nunca trouxera para dentro de casa.


Não foi preciso sair de casa, o recado foi bem dado. É uma moça feliz, muito feliz. Quem disse que precisa ser escancarada? Quase todos os sorrisos que vê exalam desespero, não que não hajam os sinceros, mas dentes brancos não são garantia de felicidade. E está feliz, muito feliz do jeito que é. A tristeza assumida e sob controle a faz parecer uma rainha.

2 comentários:

Kristal disse...

Querido Nanael, estou viva e bastante bem.
Passei uma longa temporada em Dubai, onde me tornei a favorita de um sheik absolutamente divino. Como não sou mulher de ficar socada em harén, ele me instalou em uma encantadora ilha artificial. O problema foi que me tornei sua prisioneira - uma espécie de escrava sexual de luxo (e põe luxo nisso!). Tive que ser boazinha com uma dúzia de seguranças para conseguir fugir de lá.
Você sabe que sou expert na arte de enlouquecer os homens, então me mandei e já estou de volta ao meu apartamento no Leblon.
Sinto uma certa insônia, não sei se tomo champagne com barbitúricos ou se ligo para algum ex-namorado.

Hoje a noite eu vou à boîte.

Nanael Soubaim disse...

Mil vidas em uma. Não tenho certeza de haver uma boite à tua altura, minha cara.