10/01/2008

Quando vi o Titanic


Não se impressionem com o título, não sou tão velho assim. Me refiro ao famoso filme que consumiu uma jamanta de dinheiro para contar uma estória (o romance impossível) e uma história (o naufrágio mais famoso do mundo) em uma só película. A Melzinha pediu que eu escrevesse, para o quê convidei as professoras Fabiana e Lisa e professor o Fio para darem continuidade ao tema. Vamos lá.

Quando vi esse filme, estava na sala de casa, com a fita passando no video cassete... é, naquele tempo não tinha devedê para qualqer um, tinha que ser em fita magnética mesmo. A reconstituição de época foi o que mais me impressionou, e também foi o mínimo que poderiam ter feito pela fortuna gasta. Figurino virtualmente perfeito, a escandalosa separação de classes logo na entrada do navio, aquele carro (que não identifiquei) sendo içado à bordo, enfim, pelo menos um pouquinho de belas imagens eu vi que teria pela frente.

Um pouco de melodrama também era esperado, a bélle époque estava no auge que só seria quebrado pela Primeira Guerra Mundial. Bem... Bélle Époque para os europeus ricos, o resto do mundo estava um rebuliço só, que desembocou na revolução russa e tudo mais. Ainda assim a produção justificou seus custos, dando realismo à fantasia. Quando a nave se partiu, popa e proa afundaram separadamente (como é na vida real) e geraram turbulências no mar gelado (como é na vida real) que sugaram para o fundo quem estava por perto, mesmo os que tinham fôlego sucumbiram, pois estavam cercados por água gelada e não conseguiram reagir quando o turbilhão se desfez. Foi certamente o pontapé para Hollywood voltar a fazer filmes acima da linha do medíocre.

O texto poderia terminar por aqui, mas não seria o eu se asssim se desse. Um filme que valha à pena sempre me dá material para reflexão. Primeiro a arrogância: "Nem Deus afunda o Titanic". Não foi necessário, bastou um pedaço de gelo para isso. Foi encontrado na chapa do casco um teor de enxofre muito acima do normal; o enxofre, no aço, causa fragilidade quando o material está frio. Houve falha grave no controle de qualidade. Talvez a tragédia pudesse ter sido evitada se não fosse pela arrogância, esta que causou um descuido só tolerável se feito por leigos.

Segundo: a inoperância dos sistemas de contenção. Seja qual for o motivo, as comportas não foram fechadas, o que permitiu à água invadir todo o gigantesco navio. Fechadas, permitiriam que flutuasse com segurança até Nova Iorque. Mas lembremos que era a Bélle Époque, o "suicídio por amor" estava muito em voga. Alguém queria se ver livre de seus problemas e viu no naufrágio uma chance, sem se importar com o destino dos outros. Se foi esse o caso, o capitão se tornou um suicita e um genocida ao mesmo tempo.

Terceiro: não foi o primeiro filme sobre o tema. No mesmo ano um filme alemão (O Último Baile, se não me engano) narrou muda e muito romanceadamente o naufrágio do Titanic. Os efeitos especiais eram meramente demonstrativos, coisa que qualquer um faz actualmente, mas o figurino de época é imbatível, até porque foi naquela época que tudo aconteceu. Muitos outros fizeram a mesma coisa, nenhum com o sucesso do filme tema deste texto. Mas prefiro os documentários.

Quarto: a diferença temporal. Naquele tempo as pessoas, se quisessem ter um pouco de liberdade, tinham que lutar mesmo, às vezes no sentido literal da palavra, pois a desobediência poderia custar-lhes suas vidas; ainda que o assasino fosse todos os domingos à igreja rezar. Dava-se muito valor a cada conquista pois cada uma custava caro. Acredito piamente que falta isso, hoje em dia. Falta uma pitada de dificuldade de verdade, não me refiro à injustiça, mas às dificuldades do dia-a-dia; girar uma manivela para descer o vidro do carro, se levantar para trocar de canal, mastigar um alimento mais consistente para se nutrir, caminhar um mísero quilômetro para ir a qualquer lugar em vez de esperar uma hora pelo ônibus, et cétera. Tudo ficou fácil demais. Até sexo ficou fácil demais; difícil é conseguir não ter tudo isso, pois te empurram goela abaixo, te fazendo se sentir um idiota se não quiseres. Resultado: nada mais satisfaz, as pessoas estão sempre insatisfeitas, o que é porta aberta para os vícios.

Quinto: em decorrência do anterior, as pessoas tinham mais paciência. Alguém que não esperasse uma semana para receber uma carta era afoito, hoje estranham se aceitamos esperar até o dia seguinte por um e-mail. Todos querem fazer tudo ao mesmo tempo, acabando por não fazer cousa alguma que preste. Andar a cem por hora em uma viagem é suplício, querem andar a duzentos para chegar em meia hora. Paisagem? Blé! Se quer é "curtição", aproveitar(?) tudo de uma só vez, mesmo sem saber realmente o porquê. Por que ficar meia hora ao pé do fogão se a pizza chega rápido? E já vem com pratos descartáveis que entupirão o aterro sanitário, que fica longe de casa, portanto não vejo, portanto não me importo. Ficamos muito mal acostumados, isso é porta aberta para conservadores radicais e perda paulatina da liberdade individual.

Quando aparecer um filme de época ou da época, preste atenção nos hábitos. Não nos tabús, nos hábitos cotidianos. Os antigos têm muito o que nos ensinar, eles não cometeram somente erros. Os vilões do filme eram e sempre foram minoria, ou os macacos já teriam tomado conta de tudo desde a Idade Média. Nós é que temos o mau hábito de dar mais crédito aos maus do que aos bons. Porque, se não aprendermos com os erros deles e também com seus acertos... Talvez já seja meio tarde, pois coisas bem piores que aquele naufrágio já acontecem diáriamente e já achamos normal. Ficamos mal acostumados. A infância precisa de um limite para terminar, mas ela é necessária até o fim.

Bien, os passageiros do Titanic sabiam que a carne que consumiram não era feita em máquinas de lanchonetes, que seus pratos vinham de ceramistas e metalúrgicas, que a lã que vestiam não dava em árvores. Sabiam que cada coisa tinha uma origem e, portanto, também um destino. Por isso mesmo tinham mais intimidade com o mundo e o aproveitavam muito melhor do que qualquer um de nós. Eu sei que usar aqueles vestidões de vários quilogramas é terrível, mas não foi disso que falei. Falei do valor a cada pequena coisa, do aprendizado que pequenas dificuldades oferecem de graça, da vida saudável que o excesso de ofertas já não nos permite ter sem que paguemos caro por ela, um tratar com cortesia como hábito arraigado e outras ranhetices típicas minhas. Nossos antepassados sabiam disso, só não poderiam prever que usaríamos tão mal o fruto de seu trabalho. Hoje pouco resta do navio verdadeiro, em menos de oitenta nos será só uma lembrança, espero que o mesmo não se dê com o que nossos avós queriam nos dar, pois isso não se compra no shopping center.

6 comentários:

Melissa de Castro disse...

Eu adorei, Nanael!
Só você mesmo pra fazer todas essas relações a partir de um tema. Seus textos sempre acrescentam muito além daquilo que esperamos.
Um beijo!

Isadora Penholato disse...

Olá Nanael!
Realmente, seus textos são surpreendentes. O que era para ser um simples "meme" do Titanic, virou um texto com uma moral maravilhosa.
É tão estranho ver o que o mundo virou. Pessoas que moram na capital não sabem como se tira leite duma vaca, ou como nasce um abacaxi. Coisas simples que não muda muita coisa no sentido da nossa vida, mas que no fim, nos aproxima do mundo.

Infelizmente, acho que tudo piorará nos próximos anos...

Fabiana disse...

Parabéns, o seu texto ficou muito bem amarrado. O professor aqui és tu.

Edu disse...

Caríssimo Humberto...

Como sempre, fantástico.

Anônimo disse...

Pleno de significados. Um texto inspirador!
Adriane

Nanael Soubaim disse...

Agradeço pelos bons protestos, queridos leitores. Tudo o que escrevo aqui é de coração.
P.S: Benett, meu filho, pode mandar que sou eu mesmo.