15/12/2007

Quando criança...


Quando criança, eu sabia que o Oriente Médio estava em guerra, sabia o que era inflação, que os políticos eram odiados, que os militares faziam vistas grossíssimas para a corrupção, que as pessoas morriam e que se precisava trabalhar para ter dinheiro.

Quando criança, eu ficava atento aos noticiários. Via manchetes de atropelamentos, de secas prolongadas no Nordeste, tinha consciência da poluição e de seus efeitos, que as pessoas trocavam gente por dinheiro e que tudo quase sempre ficava por isso mesmo.

Quando criança, eu sabia que haviam pais que não gostam de seus filhos, filhos que odeiam seus pais, de famílias que se desmanchavam na luta pela (quase sempre minguada) herança deixada, que era comum haver uma festa quando um parente abandonava a casa e que não tardavam a encontrar um ocupante para o seu quarto.

Eu gostava de desenho animado. Aprendia a me comportar com as philosophias deles, que eram baratas, mas que funcionavam muito melhor do que as longas e enfadonhas teorias empurristas das escolas actuais. Eu estudava para poder passar de ano.

Eu não me preocupava demais com o futuro, tinha esperanças de que alguma coisa aconteceria para mudar o quadro apocalíptico que eu previa. Acreditava quando diziam que dias melhores viriam, que o passado não servia mais, et cétera. Mas gostava das reprises de "Os Três Patetas", Carlitos, Jerry Lewys, entre tantas. Me divertia com aquelas roupas e aqueles carros antigos.

Eu gostava de desenhar, de ir para a escola, era voluntariamente educado e solícito, ainda que me tratassem com desprezo. Eu sabia que um dia ninguém mais daria importância aos sentimentos alheios, no andar da carruagem. Mas tinha esperanças de que poderia ajudar a mudar isso, pelo menos um pouco.

Eu gostava de brincar sozinho, de imaginar um mundo onde haviam problemas, mas no qual os mesmos eram tratados imediatamente. Nunca de bancar o herói indestructível, tanto que os outros garotos não gostavam de brincar comigo, pois também não aceitava isso deles. Mas eu não esquentava muito, logo estava novo para outra, mas sozinho.

Apesar de ter os pés tão firmes no chão, eu gostava de sonhar acordado. Fazia projectos, esperava ter vida própria quando adulto, uma casinha de muros baixos, uma furreca para passear... Ainda conseguia ficar à parte do mundo horroroso que estava se formando. Adolescentes ainda se encrencavam porque procuravam diversão, não porque queriam causar sofrimento. Bandido ainda tinha medo da polícia, não a população. Mas o embrião da Falange Vermelha já se formava, bem debaixo da negligência estatal. Mas eu ainda consegua ficar à parte do mundo sombrio que se formava. Até porque, se eu falasse de meus temores, ninguém acreditaria. Era criança, achavam que com um pirulito as minhas preocupações seriam eliminadas.

Hoje sou adulto. Um adulto triste. Os conflitos do Oriente Médio se alastraram e atingiram o Ocidente, o fim da inflação galopante não trouxe alívio social, a Terra está reagindo com violência à agressão do último século, acha-se normal mandar pais de família para a miséria para ficar mais competitivo (e ninguém boicota a empresa por isso) em países que usam mão-de-obra escrava, enfim, só vejo alguma beleza quando olho pelo retrovisor.

Eu sabia que isso iria acontecer, que as pessoas menosprezariam uma boa idéia se ela demandasse um pouco de reeducação pessoal, que ser gordo deixaria se ser sinônimo de saúde, que as pessoas pagariam para obedecer capangas de boates, que muitas máscaras cairiam e nem assim os traseiros enormes sairiam do sofá da sala de televisão.

Eu sempre fui uma criança retraída, melancólica e até bucólica, avessa às visitas e insuportavelmente conciliadora. Nunca gostei de photographias, o anonimato me dava mais conforto do que a notoriedade. Ainda que não se tenha dado o devido valor, era obediente e sempre assumia meus actos. Não queria me tornar como o mundo que estava se formando, tinha que me corrigir desde cedo.

Ainda gosto de desenhar, de rever os desenhos antigos (pois os de hoje, pelamor da bicicreta-véia-zangada) pela enésima vez, gosto de desenhar, escrever, de visualizar um mundo com problemas e soluções postas em prática. Não gosto deste mundo que, apesar dos avanços, tem habitantes mais mesquinhos e egocêntricos que os que se foram. Ecologia virou moda, sem isso a militância seria medíocre, bem como as ações sociais. Eu via lotes vazios aos montes e não aceitava que tanta gente precisasse de uma ponte ou uma marquise para dormir. Qualquer um poderia ver que aquilo não se sustentaria.

Nem tudo mudou em mim. Sou um adulto retraído, avesso à notoriedade, não gosto de photographias, adoro aquelas reprises e ainda tenho previsões sombrias.
Quando criança, contudo, eu tinha esperanças de estar errado.

3 comentários:

Priscila Andrade Cattoni disse...

Feliz 2008!

Nanael Soubaim disse...

Todas as bênçãos se ponham em teus caminhos.

Anônimo disse...

"Eu sempre fui uma criança retraída, melancólica e até bucólica, avessa às visitas e insuportavelmente conciliadora. Nunca gostei de photographias, o anonimato me dava mais conforto do que a notoriedade. Ainda que não se tenha dado o devido valor, era obediente e sempre assumia meus actos. Não queria me tornar como o mundo que estava se formando, tinha que me corrigir desde cedo."

Esta, sou eu.