Desde o suicídio do neto de Elvis tenho testemunhado uma avalanche de jovens repentinamente atormentados pelos mesmos pensamentos autodestrutivos. Inclusive, em especial, por lutos recentes e muito caros, principalmente quando os que os cercam não compreendem e tampouco respeitam esses lutos. As pessoas não compreendem que no vale profundo de um luto, a última coisa que uma pessoa precisa é ter sua dor reduzida a um capricho; ainda que seja, é a única coisa que não deve ser feita. O luto de um depressivo, aliás, pode ser a única coisa que o mantém do lado de cá da vida, porque ao lamentar e velar intimamente sua perda, estará se apegando ao fio da lembrança da vida que se foi. Ainda que esteja no passado, aquilo É uma vida e é nisso que o jovem se apoia para manter-se na sua própria. Se não tiver algo de bom ou mesmo um silêncio acolhedor para oferecer, apenas retire-se sem abrir a boca.
Aos jovens hora em desespero, ávidos por um alívio em seus pesares, ofereço minha experiência e palavras práticas de como lidar com isso. Eu não tenho discursos prolixos e palavras espirituais para este caso, porque sei por experiência que às vezes elas são um tiro pela culatra, e não sou crentelho nem espiritonto para tentar forçar o deprimido a olhar os lírios do campo de Jesus! Aleluia, salve, salve. Me baseio no exemplo prático de Audrey Hepburn e na sabedoria maternal que ela deixou, que no final das contas é um legado maior do que sua gloriosa carreira. Foi no Congo Belga, durante as filmagens de "Nun's Story" que ela vislumbrou seu real papel no mundo, papel que levou até o fim de uma vida que muitos acreditavam que seria mais curta. Não, não farei um texto sobre celebridades, fiquem sossegados.
Quando alguém se doa a quem REALMENTE precisa, e isso exclui paixões, mesmo que com a imensa dificuldade que eu conheço de ainda estar atado ao luto doloroso, está também tecendo o primeiro fio de salvação que o manterá vivo, simplesmente porque agora há um motivo mais do que razoável para isso. Ainda que repita a si "Eu sei que depois desta ajuda eu não vou resistir em matar", o acto de se doar torna a pessoa mais receptiva a doar-se novamente, e com isso torna também mais apta a enxergar assuntos e pessoas que realmente precisam de sua atenção. É como artes marciais, que torna o corpo e a mente mais aptos e desejosos de ir além, quanto mais se pratica, até o ponto em que todos os movimentos são feitos naturalmente e o aprimoramento se torna cada vez mais rápido e consistente.
Não é preciso ter recursos financeiros para se doar, na verdade sequer é preciso ter coisas a doar. Na maioria das vezes, tudo de que uma pessoa precisa é sentir que alguém sabe que ela existe, e nem sempre é um pedinte maltrapilho que precisa disso. Às vezes, sob o tailleur bem cortado, sob o penteado bem feito, sobre os sapatos de fino design, está a criatura de espírito mais desgastado e desesperançado do mundo. Sim, os mais pobres precisam de nossa ajuda, e quase sempre na forma de pão; demo-los e saciemo-los. Entretanto, umas moedas dadas com um olhar sereno e bondoso, já que estamos na era dos mascarados compulsórios, dá ao cidadão negligenciado mais fibras para se apegar à vida do que aquela nota de vinte que fora simplesmente jogada a ele; muitas vezes a diferença entre comprar o que comer e gastar tudo numa garrafa de destilado. E dando de bom coração as poucas moedas que pode dar, sentindo-se mais necessário e mais necessidade de fazer mais, mais alguns fios são tecidos no seu apego à vida, não simplesmente à sobrevivência.
Não estou copiando isso de um livro de auto estorvo, falo de minha experiência e do cabedal recebido de pessoas que me fazem parecer um tolo egoísta. E vejam só, graças a esse hábito de doação eu já excedi a cota de textos que esperava escrever durante o ano todo. Mas vamos voltar à rica dama de espírito mendicante, porque às vezes é para receber atenção que elas despendem grandes vultos em salões de beleza. Não, não é crime e NÃO é errado gastar com estética, o problema vem quando a aparência é um contrapeso ao vácuo interior. Infelizmente as pessoas AINDA acreditam que ter recursos materiais imuniza contra a depressão, mas eles podem ser um tiro pela culatra, bem na testa, directo à pineal. Se aquela dama perceber que pode mudar a vida de outrem, a estética será um adereço e não uma psicotrópico, mas ela não perceberá isso enquanto for elogiada por sua beleza e seus recursos. Quando o elogio for por sua postura e por sua companhia agradável, ainda que esta se dê em princípio por protocolo social, algo começará a mudar, e o autor terá tecido mais uma fibra em seu benefício próprio.
Compreendam que dar o primeiro passo não é fácil, não é simples e NÃO É INDOLOR! Mas precisa ser dado. A dor vem da condição cristalizada de luto misturado com auto piedade, que cedo ou tarde trava a vontade de viver de modo praticamente irreversível. No começo tudo parecerá ser em vão, suas modestas contribuições parecerão ser inúteis e seus esforços, por mais que tente, infrutíferos. Mas é só impressão. A sua condição de deprimido, e digo isso de dentro de uma condição de depressão extrema praticamente ininterrupta, te deixará imenso em uma ansiedade que fará cada segundo parecer um ano, cada grama parecer uma tonelada e cada indivíduo parecer uma multidão. É como se um liliputiano enfrentasse Godzila, mas é tudo mera impressão, um subterfúgio da depressão para sabotar sua recuperação. Não é inimigo pior, porque não se pode simplesmente afastar-se dela, às vezes nem se pode curar, porque pode ser a depressão justo o que te mantém de pé. Mas em vez de ir para o abismo, a decisão de se doar te leva para o lado oposto, e a depressão torna-se sua aliada. De tristeza crônica, que de vez em quando ainda fará estragos, tornar-se-á um facilitador para introspecção e meditação.
Eu sei, tudo seria menos penoso se a família NÃO ATRAPALHASSE, mas ela atrapalha e nem sempre há como deixá-la, até porque às vezes é ela quem mais precisa de sua doação, e a covardia não faz parte dos procedimentos de um depressivo reverso. O que aconselho nesse caso é criar seu canto e seu momento de depressão. Exponha sua carranca, mostre seu mau humor, não censure seus resmungos, que embora sejam socialmente desagradáveis até para nós mesmos, são o mal menor com o qual conseguimos lidar melhor. Afinal, precisamos estar fortes e centrados para a missão a que nos propusemos, e nunca se sabe quando alguém precisará de nossa humilde ajuda. Se posso dar um conselho, e já paguei caro por ele, é abster-se de "causas" que apregoam o coletivo e desprezam o indivíduo, porque grupos assim são grandes impulsionadores de suicídios. Fazer a pessoa acreditar que sem "a causa" ela não é nada, cedo ou tarde a fará ver que nada construiu, acreditar que realmente não é nada e que a alternativa ao grupo (político, ideológico ou religioso) é a morte. E novamente, se a família não atrapalhasse tanto a maioria dos casos, ninguém cairia na conversa desses grupos, que virtualmente não existiriam. Grupos que formam coletivos para amparar cada indivíduo, esses sim merecem sua atenção e eventualmente sua adesão.
Com o tempo, a perseverança e a prática, a dor do luto se transforma em empatia pela dor do outro, que já não é então "o outro", é o seu irmão; mesmo que às vezes se tenha vontade de torcer-lhe o pescoço, é absolutamente natural. A cada eclosão de sua dor virá a lembrança de que outros também penam suas dores, e que um simples emoticon na caixa de mensagens pode ser suficiente para essa dor ser suportada. Não espere por gratidão, espere por correspondência. Se a pessoa for minimamente rude ou arrogante, lamento, mas não estará pronta para ser ajudada. Toda semente que jogar naquele solo, morrerá seca. Concentre-se em quem, se não dá respostas privadas, pelo menos te trata com respeito em conversas públicas. Parece pouco, mas às vezes é tudo o que se faz necessário. Assim, quando maior for a sua dor, maior será o empuxo para doar seu tempo, suas palavras, talvez algum recurso material. Aquela conversa de que "se alguém não começar, nunca será terminado" é a mais pura verdade, um chapéu com poucas moedas chama mais atenção do que um vazio. Assim como uma pessoa que recebeu uma ínfima dose de ânimo, chama mais atenção e está mais pronta a ser auxiliada do que quem já tiver perdido toda a vontade de viver.
Repito que tudo isso é cabedal próprio, de quase meio século expiando neste mundo rude e cínico. Não sei se há compêndios acadêmicos dedicados a isso, sei que funciona. Funciona a ponto de eu já ter testemunhado um traficante se regenerar. E o que eu sou? Um velho funcionário público ferrado e sem ter onde cair morto... se bem que... depois de morto, que me importa o que vai acontecer com o corpo? Às favas! O facto é que eu era um nada ainda menor do que sou hoje, mesmo assim ajudei uma comunidade a bancar a pedra filosofal. E fiz isso dedicando minutos do meu tempo a uma carinha triste, um suspiro de descrença, um bombom barato dado de surpresa, um aperto de mão em um trabalhador braçal que não teve tempo de voltar pra casa, coisas simples. Com isso se teceu uma teia cujos fios evitaram que aquele indivíduo caísse em definitivo no abismo. Sim, às vezes precisei ser duro, casca-grossa, mas tudo dentro dos limites do necessário, sem exceder um grau sequer.
Isso se incorporará aos seus gestuários, como se incorporou ao meu. E sempre que vejo uma criança necessitando de ajuda, vem à minha mente "É obrigação do mundo ajudar crianças em dificuldades, todo resto é luxo", frase dita e levada a termo, até o último suspiro de vida, pelo Anjo das Crianças Audrey Hepburn, que se esmerando em curar a dor do próximo, viu suas próprias e profundas feridas se cicatrizarem com o passar dos anos. Eu atesto, porque como vocês eu tenho as minhas, e elas já estariam infeccionadas se eu tivesse escolhido o caminho oposto, de me fechar em meus lutos e igorar os do próximo. Ainda que ciente de que eu sou pequeno, feio e sem perspectivas sólidas, sei que absolutamente nada disso me impede de dar a alguém o bálsamo de que disponho. Não salvarei o mundo, isso é uma ambição louca que somente os aloprados que se levam à sério têm. Eu foco em fazer o que precisa ser feito, no momento em que precisa ser feito, dando meu melhor o tempo todo, até que o que eu puder ter feito, feito estiver.
Parece árduo? Não é tanto quanto parece, não é um paredão a ser escalado sem cordas e picaretas, é uma escada. Uma escada que aparentemente não tem fim, com sua estrutura varando as nuvens, mas é uma escada, com degraus que podem ser alçados um de cada vez, no seu tempo, no seu ritmo, com as pausas que necessitar para se refazer, mas sempre com a firme decisão de avançar e aliviar a dor do seu irmão. E de dor, amados, eu sei bem que vocês entendem como ninguém. Vocês sabem reconhecer e sabem que, às vezes, apenas dizer "obrigado, bom dia" por ter-se lhe dado passagem, mesmo que não tenha realmente dado passagem, que tenha sido pego de surpresa pela sua necessidade de passar, pode ser o suficiente para que aquela pessoa adie por ais um dia, apenas mais um dia os planos de dar cabo de si, e um dia a mais pode ser o prazo que a providência necessária seja tomada. E um gesto como esse terá sido toda a providência de que vocês necessitam para viver mais um dia e, como Audrey, protelar os maus prognósticos por muitos anos.
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