Clara Nunes |
Dizia-se nos anos 1980 que o
estrangeiro gostava mais do brasileiro do que o próprio brasileiro. Elke
Maravilha ia além ao afirmar que, segundo seu pai, brasileiros não gostam uns
dos outros. Tudo isso é verdade, seguramente não toda ela, mas é. Antes de
culpar os outros países por isso, devemos lembrar qual é a educação que o
brasileiro recebe desde a mais tenra idade, que inclui philosophias torpes bem
exploradas por Machado de Assis. Uma delas é o tal “jeitinho”, que implica
basicamente em burlar as regras de modo simpático, para que não pareça ser algo
ruim, mas é. Outra é a máxima do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, na
verdade isso se aplica mesmo quando sobra farinha, então muda-se para “a
farinha é minha e ninguém tasca”, depois faz-se caridade dando migalhas aos
outros, posando de bom samaritano. Tudo isso se reflete na política e na mídia,
que não têm como agir sem o aval de seu público, mesmo que implícito ou
involuntário, mas involuntário não significa fora de sintonia; colocar as
lentes da religião, da ideologia, das convicções ou mesmo de meras opiniões com
rótulo de “verdade” ajuda a aceitar aquela imagem horrorosa que está bem à
frente, mas que as distorções ajudam a tornar no mínimo aceitável; às vezes
fazendo a Sofia do Nazareno ter ares de Ava Gardner. O brasileiro tem orgulho
de coisas absolutamente supérfluas, como futebol, ou mesmo erradas, mas não dá
a mínima para o que seus compatriotas fazem de útil, como tecnologias altamente
versáteis que saem de nossos laboratórios públicos e privados. Mas mesmo essa
distorção de caráter pode ser desviada para algo bom, como a empatia.
O mesmo vale para os orgulhos
nacionais, para os quais o brasileiro de chinelo, regata made by slave e calção
“abajur de quenga” bate no peito e exibe a banguela em um sorriso largo. Um
deles, em uma relação de amor e ódio epático, é o SUS. Eu lamento informar, mas
ele NUNCA foi pensado para atender a toda a população, ou não seria tão
perverso na hora de conceder aposentadorias. Foi pensado para a propaganda
estatal do governo fascista de Vargas, e acabou dando mais certo do que o
esperado, ainda assim MUITO aquém do que seria necessário a uma rede de saúde
totalmente financiada pelo erário, com alguns pontos de referência e
excelência, utilizados para alimentar nossa fantasia de saúde pública. Sim, a
idéia é boa, mas o conceito está longe de ser realmente bom, porque foi pensado
para ser centralizado, sob as rédeas do ministro, com uma burocracia gigantesca
que consome grande parte dos recursos. Entretanto, estando a população de
acordo com o financiamento dessa saúde subsidiada, e foi aqui que Obama pecou
crassamente com sua proposta em seu país, uma estritura descentralizada, enxuta
e bem gerida de saúde pública é algo próximo do paraíso. Feitas consultas
públicas para alterações importantes, mesmo que informais, algo expressamente
proibido pelos idealizadores do serviço, bem como o estudo de boa vontade das
queixas e sugestões populares, o SUS, ex INPS (para quê mudar nomes, senão para
propaganda própria?) beneficiaria até quem não se utiliza dele.
Ainda nos anos 1970, dizia-se que as
porcarias enlatadas do estrangeiro sufocavam a música nacional, o que era
mentira, pois na época os músicos eram quase deuses para seu público, eram
explorados sim por outros brasileiros, que os amarravam em contractos sinistros
que, em caso de saída do selo, praticamente impediam o artista de trabalhar.
Daí nasceu o ECADE, que só serve para arrecadar e amarrar tanto a produção
quanto a execução e a reprodução musical. Bem, hoje sabemos que podemos fazer
lixos que fazem o lixo deles parecer música erudita, e se tornou mais um
“orgulho nacional”, de gente que bate no peito para exaltar sua miséria
generalizada, não importa quanto dinheiro tenha. Ah, claro, morar em áreas de
risco, dominadas por facções criminosas, se submetendo a ser fantoche midiático
desses grupos, também virou motivo para… orgulho… com quilômetros de discursos
prolixos e cheios de referências para exaltar e eufemizar tudo isso… estão
chamando gato selvagem de bichado geneticamente alternativo, como se isso
tornasse seguro sua posse doméstica. Sejamos honestos de verdade, morros
íngremes e desprovidos de infraestrutura não são lugares para pessoas viverem,
e ninguém está (cof, cof) lutando para tirar aquelas pessoas de lá e
realocá-las em lugares dignos, quem sabe até imóveis públicos não utilizados,
simplesmente porque Elke estava certa, eles não se importam com essas pessoas,
não dão a mínima para elas, estão se lixando até que uma tragédia aconteça e
possam fazer palanque de seus caixões. O que isso tem a ver com a música ruim?
Dê uma olhada nas letras de apologia ao baixo-ventre e à violência contra a
polícia, que o filho de um amigo policial adorava há até não muito tempo… Mas
ninguém chama o Batman, quando precisa de ajuda.
Com tudo isso, apesar de tudo isso,
a despeito de todas as conseqüências com trema que é o jeito certo de escrever,
o país tem virtudes sim. Sabiam que a Vale está testando a primeira locomotivatotalmente eléctrica, sem fio, alimentada apenas por pesadas baterias, fabricada
aqui mesmo com tecnologia nacional? Pois sim, é um veículo de manobra, não para
longas viagens, mas ainda assim seus 4400cv dão-lhe um poder de tração
invejável, força bruta absurdamente grande, muito além do mais poderoso trator
de esteiras do mercado. A configuração é prefeita para economizar com
infraestrutura de longas, caras e dispendiosas torres de alimentação, além de
ser imune a eventuais cortes de fornecimento. Ainda cito o bruto e quase
indestrutível Agrale Marruá, nascido da finada Engesa, pensado para a vida
militar, que faz o legendário Land Rover Defender parecer um frágil SUV de
boutique, tamanha confiabilidade e aptidão para o fora-de-estrada. Temos tecnologia de ponta no
Brasil, sufocada por tudo o que escrevi nos primeiros parágrafos, que poderia
nos tirar fácil e rapidamente do buraco financeiro em que estamos desde o fim
do império. O que resta então ao pesquisador, ao empreendedor e ao artista
sério, é buscar ajuda e oportunidades lá fora; inclusive em lugares que a
intelectuália retorista abomina. Nem vou me aprofundar no uso de
biocombustíveis e nos motores multicombustíveis, área em que somos o ÚNICO país
que leva a termo E tem sucesso na aplicação da tecnologia, isso já inclui a
aviação experimental. Neste caso, são os outros países que estão fazendo corpo
mole. Preciso falar da Embraer? Não, não preciso. As dificuldades pelas quais passa, passarão, ela passarinho a jacto.
São coisas que a mídia faz de conta
que não existem, e quando mostra é de forma tão superficial quanto tendenciosa,
se preocupando mais em tornar os responsáveis celebridades, do que informar e
incentivar a população à ciência e ao desenvolvimento tecnológico. Vamos deixar
claro que, apesar de o povo idolatrar celebridades, não dá a menor bola quando
elas falam sério, só querem delas ouvir bobagens sem sentido para mero
entretenimento. Entenderam agora a fuga de cérebros? Tudo isso alimenta
estereótipos, como os de que o Brasil se resume ao Rio de Janeiro e que ele
fica dentro da floresta amazônica. Felizmente alguns estrangeiros se decidiram
a conferir até que ponto isso é verdade, e estão fazendo questão de mostrar ao
mundo que é tudo falso, inclusive os estereótipos sobre a pessoa do brasileiro,
desfazendo as generalizações perversas que denigrem, mas são fáceis de vender.
São, embora haja até russos saracoteando por aqui, especialmente americanos e
coreanos, que muitas vezes até fixam residência, não raro em definitivo. Alguém
há de perguntar qual a novidade, posto que temos imensas colônias estrangeiras,
no Brasil, inclusive a maior colônia japonesa do mundo em São Paulo. A
diferença está nos seguintes pontos, um minutinho que já explico!
Primeiro que quase todos os
imigrantes dessas colônias já jazem. Vieram em outras e remotas épocas, noutros
contextos e por outros motivos, estavam demasiadamente preocupados em
sobreviver para se aprofundarem na cultura de cada Estado em que se fixaram.
Também sofreram o trauma das condições de trabalho precárias em um país que se
acostumou a fazer as coisas nas coxas, literalmente, o que é inaceitável para
povos de países onde o trabalho é não só levado a sério, mas uma honra para
quem o abraça. Apesar de falarem das belezas e potencialidades em
correspondências, que podiam levar meses para chegar aos destinos, se
debulhavam em saudades da terra natal, muitas vezes explicitando o desejo de
retornar em definitivo; a maioria não o conseguiu. Mais ou menos como
degredados romantizando um paraíso perdido, que no fundo sabiam que não era,
mas a visão romântica agia como um bálsamo e nutria as esperanças, encorajando
ao trabalho árduo para permitir o retorno em condições melhores do que as da
partida.
Segundo que o turismo internacional
recreativo só se tornou acessível depois dos anos 1950, e mesmo assim aos
poucos, e é esse tipo de viagem que dá início ao aprofundamento de interesses
em indivíduos por países estrangeiros. Gente disposta a sair do roteiro de
Hollywood só começou a proliferar recentemente, ainda ais com espírito
desarmado e disposição a se misturar aos nativos. Mesmo assim, como a maioria
de vocês já se deu conta, leva anos para surtir efeitos consistentes e
duradouros. Alie-se a isso o advento muito recente da internet, e ainda mais
recente a proliferação de canais pessoais com alcance relevante. Foi só de
então em diante que esses estrangeiros começaram a falar com propriedade
daquilo que viram e viveram. A maioria absoluta, embora não feche os olhos para
as mazelas, é muito elogiosa, especialmente no tocante ao tratamento humano que
nossos compatriotas lhes dispensaram, e falo especialmente dos americanos,
segundo alguns dos quais o Brasil simplesmente os fez mudar para melhor, como
pessoas. E não se limitam a rasgar seda, eles divulgam em seus países nossas
culturas, nossas peculiaridades e especialmente nossa culinária. Um deles
chegou a servir coxinhas em Manhattan, com explicações devidas e saneando os
mitos que seus pares tinham a nosso respeito. Mesmo no estigmatizado continente
africano estamos arregimentando simpatizantes, gente que vê vídeos sérios sobre
o Brasil e fica de queixo caído, pois pelos noticiários se davam conta de que
seríamos uma ilha tropical devastada, mas vêem nosso poderio econômico (apesar
de tudo) e militar, a imensa diversidade de climas, culturas e paisagens, e
passam a ter pena de quem apenas tentar se meter a besta conosco. Ainda entre
eles, são muito elogiosos quanto à maneira com que foram tratados, em
detrimento de ditaduras em que infelizmente precisam, de vez em quando, fazer
escala nas viagens de retorno. Mesmo os portugueses fazem caras de perplexidade
e assombro, quando descobrem o que perderam quando deixamos de ser sua colônia.
Mesmo sem virem, eles estudam com
afinco e ficam perdidos em meio à grandiosidade do que encontram, especialmente
nossos hinos, e alguns estranham termos mais de um, arrancam suspiros pela
competente composição. Isso se soma à estupefação quando descobrem que samba é
apenas um dos ritmos que temos, e que há mais de um tipo de samba, portanto
também mais de um tipo de carnaval, portanto mais manifestações culturais
públicas do que suas emissoras seriam capazes de mostrar em um ano inteiro.
Quando podem vir, descobrem que uma vida humana inteira não bastaria para
conhecerem tudo, ao contrário do que acontece na maioria dos países, minúsculos
se comparados ao nosso território. Alguns minúsculos mesmo para os padrões
europeus; ou seja, para qualquer país é uma péssima idéia tentar invadir o
Brasil.
Na realidade se deu uma explosão de
brasilismo que está se alastrando rápido, praticamente todos os gentílicos que
o podem, estão exportando uma imagem positiva aos seus países, até mesmo chineses.
A quantidade de estrangeiros que fazem boa propaganda do Brasil lá fora,
consertando o serviço porco da Embratur, que só mostrava bunda e caricaturas
baianas de Carmen Miranda, cresce mais rápido do que eu consigo acompanhar.
Eles falam bem, alguns chegam a ser generosos com nossos patrícios, ajudando
como podem e divulgando seus pequenos negócios para potenciais clientes
conterrâneos que vierem depois, o que é particularmente valioso nesta época de
crise profunda. Notei particularidades de alguns gentílicos que falam muito de
seus países;
Os moçambicanos em especial são
extremamente curiosos e entusiasmados, como o Aurélio. Eles agem como crianças, no bom sentido,
esmiuçando tudo o que podem e aceitando com humildade, nossas correções e
sugestões. A simpatia e a simplicidade de linguagem, e a mania de falar “mano”
como interjeição para tudo, já arrebanhou fãs e até amigos entre os seguidores
brasileiros… uhm… será que Moçambique é um pedaço perdido de São Paulo? Alguns
deles ficam pasmos quando descobrem que há negros no Brasil. Basicamente, há
pessoas por lá que pensam que só existem negros na África… pois é. Eles querem
aprender tudo o que puderem, são divulgadores perfeitos e engajados das coisas
do Brasil, então peço que sejam solícitos, eles saberão agradecer revertendo a
péssima impressão que as instituições carimbaram em nossas testas.
Os americanos querem se enturmar,
fazer parte da nossa bagunça e se sentirem brasileiros, por mais espantoso que
isso possa parecer; isso é um poderoso antídoto contra os estereótipos que a
mídia dissemina. Eles gostam de usufruir de nossa hospitalidade, que para eles
é coisa de outro mundo, com elogios rasgados para os mineiros, e fazem questão
de alardear para o mundo inteiro que somos o melhor tipo de pessoa do mundo…
não, não é piada. Eles vêm e fazem questão de retribuir aos brasileiros que vão
para lá. Eles tentam nos fazer ver o lado mais sombrio dos Estados Unidos logo
de cara, mas com isso só conseguem fazer os nossos ficarem tão encantados
quando eles ficaram aqui, pois logo em seguida nos apresentam aos melhores
lugares para brasileiros, inclusive redutos brazucas no quintal do Tio San;
eles são mais piegas do que admitem, e nós conseguimos extrair isso comendo
pelas beiradas. Nosso idioma é uma armadilha para eles, especialmente por causa
dos verbos. Por exemplo, eles têm “you”, para esta palavra temos tu, te, ti,
você, vocês, vós, lhe e lhes, piorando a confusão quando descobrem que o nosso
português não é parecido com o de Portugal, como o cinema lhes dizia ser. São
de longe os mais numerosos obreiros desta senda. Vale à pena conhecer o canal
do Tim, o mais brasileiro dos americanos.
Os coreanos quebram o estereótipo de
frieza e distância social que atribuímos aos ocidentais, fazem questão de
proximidade e de experimentar nossa culinária. Às vezes chega a ser hilário,
mas na maioria delas eles surpreendem. É sério, eu vi coreanas fininhas comendo
feito um pedreiro que fez hora extra, sem almoço, e a barriga continuava
chapada! Garçons olhavam incrédulos sem saber aonde tinha ido tanta comida, e
estou falando de coisas como feijoada, farofa, dobradinha, churrasco raiz,
entre outras tonelagens estomacais. Como é de regra, eles acham o nosso café
forte demais. A eles chama atenção em especial o baixo número de fumantes, que
nós achamos alto, isso já rendeu um vídeo inteiro da Coreaníssima. Ela, aliás,
é precursora de uma série de coreanos que se dedicam a conhecer e falar do
Brasil, eles já se deram conta de que juntando todos os compatriotas, ainda não
conseguirão conhecer tudo, viajar mais de 1000 km dentro de um único país é
estranho para eles, mesmo acostumados com o gigante chinês bem ao lado, mas a
imagem que tinham daqui era de uma ilha tropical,,. Pois é., dona Embratur...
Os russos são figuras! Estranham
tudo a ponto de parecer que desceram em outro planeta, mais ou menos como
“Moscou! Encontramos vida alienígena, não temos certeza de que seja
inteligente, mas é divertida”. Como os demais, o nosso idioma intrincado os
confunde muito, mas nossos hábitos chegam a ser bizarros, alguns chegam a
perguntar se temos problemas bucais crônicos, pela freqüência tremada com que
escovamos os dentes. Eles, reis da excentricidade, nos acham malucos! Oh, honra
suprema, tidos como esquisitos pelos mestres da arte! A dramaticidade com que
falam pode assustar os desavisados, mas só terão sido gentis; eles são
dramáticos em tudo. Um mito que ainda têm na Rússia é que somos uma ilha
tropical na América Central, choca quando chegam, descobrir que mal cabemos na
do Sul… e que temos colônias russas no Brasil! E que sabemos localizar a Rússia
no mapa! Então eles tocam de roda feito crianças descobrindo a casa nova,
querem conhecer a tudo e a todos, demonstrando uma incrível capacidade de
entrosamento. É bom lembrar que o idioma pode gerar constrangimentos; por
exemplo, “olá” soma como Ola, diminutivo de Olga, e Rui soa como “ruy” que
significa literalmente “pênis” … Tomando cuidado com perguntas delicadas, mas
sem hesitar em fazê-las, a convivência é até festiva.
Estes foram apenas os principais e
mais freqüentes exemplos, e impressões que me deixaram, não haveria páginas
suficientes. Eles deixam claro que o Brasil não é para amadores, não é para covardes e, principalmente, não é para invasores. O certo é que são pessoas comuns, não ONGs ou autarquias que agem sob ordens de sabe-se lá quem com sabe-se lá que propósitos, que vão
nos ajudar a sair do buraco, e essas pessoas já assumiram a seara em um trabalho
de formiguinhas pelo mundo inteiro… que tal as formigas daqui cooperarem?
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