27/08/2020

Zezinho e a pandenóia

 

                                                                           Norman Rockwell

       Zezinho se senta à mesa da lanchonete em que é cliente desde, bem, desde que era pequeno, porque criança ele ainda é. Aguarda com a paciência que seus maduros oito anos lhe ensinaram a ter, mas da qual é bom não abusar, até vir o milkshake de chocolate com mel. A garçonete asperge um pouco de álcool no tampo de madeira reaproveitada, ele faz aquela cara de quem quer acender um isqueiro, ela põe a taça na mesa e ele se acalma, então saca o canudo que cedo ou tarde vai virar peça de algum brinquedo que ele mesmo fará, põe uma ponta na bebida e tira com cuidado sua máscara com a frente malvada do Cadillac 59 estampada, suga o primeiro gole e então fica feliz… mas por pouco tempo. Logo ouve o som insistente e irritante daquele esguicho fazendo “fish! fish! fish” logo atrás, se vira e vê um sujeito atarracado insistindo para o garçom borrifar várias vezes cada milímetro da mesa, repetindo “tem certeza de que matou o vírus?” ou “acho que ele pode se esconder numa fresta e pular, olha ali”, continuando com “ALI! O VAPOR DO ÁLCOOL NÃO ENTROU ALI!!!!” até empestear todo o ambiente com vapores etílicos. É um custo acalmá-lo quando alguém abre uma janela para dispersar o cheiro, ele alega que os vírus vão entrar.


        Na mesa ao lado uma adolescente tira e põe a máscara a todo momento, para comer o sanduíche, no final das contas a máscara fica com as bordas cheias de maionese, ketchup, mostarda e sazón, mas não tem problema, ela encharca com álcool e acende o isqueiro, então tira uma nova da bolsa, de dentro de um saquinho esterilizado e faz tudo de novo. Na mesa ao fundo alguém conseguiu uma máscara articulada, que se abre com a boca em um efeito medonho, mas funciona na hora de comer o sorvete, apenas tem o cuidado de ninguém mais perceber, para não ser politicamente incorrecta em tempos de enfrentamento da pandemia causada pela Covid 19 do Novo Coronavírus. Ao balcão um rapaz asperge álcool em cada ingrediente do sanduíche, esperando evaporar e aspergindo de novo, vai que o vírus ressuscita, nunca se sabe; o gosto horrível que fica é um preço módico na luta total contra a pandemia da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus! Diga não à contaminação!


        Uma adolescente com roupas desengrenhadas, também borrifando um álcool de cheiro estranho, com uma máscara com folhas de canabis, chega apontando o dedo para ele, acusando-o de ser o assassino da fauna marinha, por causa do canudo. Ele responde educadamente que reutiliza e recicla, que não se pauta pelo mau comportamento público do brasileiro, mas ela continua com seu discurso exaltado exigindo que ele use um canudo de aço inoxidável, ouvindo “Que consome megawatts de energia para ser produzido e é embalado com plástico suficiente pra produzir uns vinte canudos”. O discurso de abolição dos polímeros dura até ele apontar em suas roupas e na tintura de cabelo a quantidade de plásticos que ela usa. Sem se dar por vencida, alega que quela é a verdade dele contra a verdade dela, no que ouve “Eu não sou Deus, minha opinião não vira Cadillac 59 só porque eu quero, então eu não chamo isso de verdade, o mesmo pra sua”. Ela simplesmente tenta pegar o canudo, ele passa o dedo na língua e passa no ombro dela, que corre desesperada tentando se desinfectar. Zezinho suspira, lamenta, pensa “este lugar já foi melhor freqüentado” e volta ao seu lanche.


        Entra um sujeito franzino de óculos, portando uma cara de pesca bem longa. Ele evita tocar e ser tocado, parece que flutuaria para não tocar o chão, se pudesse. De máscara, protetor de rosto, boné, mangas longas, bota de cano alto sobre as calças e luvas, ele chega ao balcão pedindo o que tinha encomendado, com o dinheiro no anzol com uma caixinha estranha logo acima. O balconista pega o dinheiro, confere e pendura a marmita, caixinha libera álcool aspergido e o cidadão vai embora como se fosse derreter ao menor contacto. Deixa cair uma nota de cem, mas prefere sair sem tocá-la, já está contaminada com vírus, bactérias, bacilos, retrovírus, adenovírus, amebas, parasitas, fungos tóxicos, síndromes e atestados de óbito prévios. A faxineira varre a nota para dentro da área de funcionários e some, abandonado não é roubado.


        Suspira fundo e tenta se concentrar em seu acepipe preferido. Volta à sua solidão voluntária para saborear lentamente o milkshake, uma sugada de cada vez, ouvindo baixo o tema principal do Super Homem. Eis que aquele homem atarracado decide ir ao banheiro e borrifa tudo por onde passa, inclusive Zezinho, que se indigna e tem “Cala boca que cê tá errado, a pandemia existe e o corona mata sim! E põe essa máscara senão te denuncio”. Zezinho pensa “Dou um boi pra não entrar numa briga” e aguarda. Quando o sujeito volta, finge que espirra e o deixa desesperado, se borrifando até tomar um banho de álcool, reclamando de tudo e borrifando mais a mesa que usa. Olha para Zezinho e borrifa no milkshake dele também, no que o garoto pensa “mas nem uma boiada me tira dela”. Chama a garçonete, pisca e diz “Vocês limparam a parte de baixo das mesas?” e o desaforado fica de butuca. Ele olha por debaixo do tampo e vê tudo seco, então começa a borrifar e Zezinho continua “Sabia que algumas bactérias estão ficando resistentes ao álcool?” e ele começa a jogar goles de álcool sob a mesa, vê suas mãos empoeiradas e as encharca também, borrifa nos braços e vai subindo até chegar à camisa, logo tem mais álcool nele do que no tanque do Opala do pai de Zezinho, que pede outro milkshake a assiste a tudo com olhar de triunfo.


        Chega o milkshake novo e o desaforado já foi embora, com medo de contrair câncer de escamas. Agora ele põe Silêncio de Beethoven em baixo volume e saboreia seu lanche. Olha com carinho para a bebida, quando vê um ponto vermelho sobre a mesa se movendo rapidamente na sua direção, olha para frente e vê uma mulher com um termômetro infravermelho. Ela testa sua temperatura e depois sai pela lanchonete testando todo mundo, testa até a dos banquinhos, para se certificar de que foram higienizados, pela temperatura mais baixa. Senta-se de termômetro empunhado, como se fosse uma arma, encarando todo mundo. Ele pensa “Não, isso não está acontecendo”, funga um pouco e volta a sugar, então vê aquele ponto de laser de novo sobre sua mesa e diz “Moça, estou tomando um milkshake, posso? É bebida gelada, claro que a mesa e eu estamos mais frios”. Ela faz seu pedido, mas ainda o encarando, como se o que ele disse fosse uma confissão de ilícito, Zezinho suspira e completa “Moça, essa coisa aí mede a temperatura, mas não informa a causa! Se eu estivesse contaminado, isso não daria um teste diagnóstico, e também não mede a temperatura de vírus e bactérias! Tô falando aqui e um monte de micro-organismos (prestou atenção às aulas de ciências) tá saindo pela minha boca de caçapa, do mesmo jeito que saem do seu nariz de tartaruga ninja quando espira! E eles estão vivos”. Ela pára, pensa, olha o salão e começa a ver germes gigantes se avolumando nas mesas e no balcão, se desespera e sai correndo. Zezinho vê a banana split que ela nem tocou, olha para o balconista, pensa na própria mesada e assume a conta, pede que a traga. Pensa também em seu trato digestivo ao ter que ingerir tudo aquilo.


        Entra no recinto uma figura alva e esguia com seus curtos cabelinhos louros estilo Joãozinho, com seus olhos verdes serelepes vasculhando o ambiente. A máscara com logos da Varig não esconde a identidade da menina de óculos finos, que já está mais alta do que ele; é Mariazinha, por cuja simpatia recebeu muitos ataques e acusações de racismo. Ele se levanta bruscamente, chamando sua atenção e ataca “Mademoiselle, sua banana split já está paga” fazendo-a corar e rir daquele jeito que só ela sabe fazer. É a criatura por debaixo daquela adorável aparência que faz seu jovem coração reger rapsódias. Ela aceita o convite e ele, que esperava desfrutar de momentos de solidão, aceita de bom grado uma invasãozinha tão adorável. Falam com brevidade dos dissabores de hoje, que no caso dela vêm se arrastando pela semana. Suas jovens vidas têm recebido apresentações rudes e precoces do mundo adulto.


        Enquanto consomem seus acepipes e se acalmam no decorrer da conversa, aquele sujeito atarracado chega com um policial. Ele aponta para Zezinho e dispara “Ele não acredita que estejamos diante do enfrentamento da pandemia mundial da Covid 19 causada pelo Novo Coronavírus e que o distanciamento social seja uma prática avalizada pela Organização Mundial da Saúde para conter a onda de contaminações diante do novo normal”. O policial faz cara de “hein”, Mariazinha faz cara de “ã” e Zezinho faz cara de “PQP, QUE P@##@ É ESSA”. O acusador arreganha um sorriso de triunfo debaixo da máscara cheia de cerquilhas e palavras de ordem, certo de que haverá punição exemplar e será aclamado como herói da saúde pública, enquanto borrifa tudo ao redor, mas o policial retruca “mesmo que seja verdade, o que não me parece, o Brasil ainda não tem crime de opinião previsto em lei”. Ele fica indignado, a pressão sobe e o tom também, o que lhe rende uma prisão por ameaça e desacato, então Zezinho, com o canudo na boca para poder exibir o sorriso de quem riu por último, dá tchauzinho e volta à sua afável companhia.


        Eles trocam olhares e, de repente, uma bolha mágica os isola do resto do mundo e os dois aproveitam a solidão compartilhada em paz.

Nenhum comentário: