Em primeiro
lugar deixo claro que existe um abismo imenso entre os discursos das salinhas
fechadas e a realidade, simplesmente porque mesmo o estudo mais
bem-intencionado, que a maioria não é, não consegue abranger todas as nuances
de um tópico, na verdade a falta de ensaios não permite sequer observar o
básico. É, por exemplo, muito simples atravessar o Atlântico em um veleiro
altamente equipado, monitorado e cercado de precauções, isso alimenta uma
narrativa de ser possível cruzar os mares sem poluição, pois lá estaria a prova
cabal de que os aviões e os gigantescos navios cargueiros são dispensáveis. Mas
eu digo sempre que ideologia é dogma, e é só nisso que se baseia uma narrativa
dessas. Os custos (sim, custos, não existe gratuidade no universo real) seriam
astronômicos e as perdas seriam imensas, obrigando a aumentos de produção
simplesmente para reposição, fazendo qualquer saco de batatas custar o mesmo
que custa um estoque industrial custa hoje. Acreditar nessas conversas é, na
melhor das hipóteses, inocência de que pensa ser consciente, mas não passa de
gado.
Comece
pensando na tua vida real. Os seus pés são o único meio totalmente natural e
ecológico de transporte, todo o resto é conversa para boi dormir. Uma bicicleta
demanda extração, processamento a altas temperaturas, manufatura sofisticada e
logística muitas vezes complexa para ser entregue ao consumidor. Em muitos
casos, mas muitos mesmo, o trajeto e a disponibilidade de tempo, fora as
intempéries, podem contraindicar o uso de um veículo aberto, especialmente não
motorizado. Então procure ajuda psicológica para qualquer indício de culpa a
esse respeito, ela só serve para alimentar o ego de pseudointelectuais que se
levam a sério demais. Há cálculos para estimar se determinado meio de
transporte é o mais adequado ao seu caso, e capacidade de proteção do veículo é
um dos componentes; pedalar de madrugada, sob frio ou chuva, em lugares ermos,
por longas distâncias e com hora certa para chegar, não deveria estar em seus
planos.
Outra
dificuldade está na falta de infraestrutura do transporte público. Goiânia
espera há mais de trinta anos pela linha de metrô pela qual pagou, e a linha de
trem, que cortava a cidade de leste a oeste e poderia ajudar a atenuar o
problema, não existe há uns quarenta anos. Esse drama seguramente se repete em
muitas cidades médias e grandes pelo país, não só em metrópoles. Não adianta
protestar contra tudo isso que aí está gritando “Quero melhorias com tudo de
graça” porque nem pagando caro o Estado tem feito o que deve, sequer o básico.
Lembro ainda que nem todas as cidades subsidiam o transporte público,
provavelmente a maioria não o faz. Assim a arrecadação não tem planejamento
para esse tipo de gasto e nem terá, porque todo o orçamento já está
comprometido mesmo antes de ser votado pelas câmaras de vereadores, estas que
consomem em supérfluos boa parte do erário; ou seja, podem esquecer, mesmo que
os prefeitos quisessem um auxílio para as tarifas, e não me refiro aos gastos
com “gratuidades” não viria tão cedo. Simplesmente se recusar a adaptar-se para
“obrigar o estado a fazer sua parte”? Jura?? Teu esqueleto será encontrado por
arqueólogos na mesma posição. Então temos um gargalo que reduz as escolhas
reais de transporte.
Some-se a
isso o fator capilaridade, que o itinerário rígido das linhas de ônibus
precisam ter para contenção de gastos, manutenção da segurança e padronização
dos serviços, em trajetos e horários, precisa ter. Isso pode obrigar o usuário
a caminhar por alguns quilômetros, ou mesmo pegar várias linhas de ônibus para
chegar ao seu destino; é por isso que em algumas cidades o cidadão passa
literalmente horas no trajeto, no anda-pára-anda quase sempre repleto de curvas
e trechos retrógrados, casa-trabalho e trabalho-casa. O tempo para percorrer de
dez a quinze quilômetros pode ser maior do que o necessário para ir de Goiânia
a Brasília em velocidade moderada. É essa falta de capilaridade que mais faz o
usuário tirar seu veículo da garagem. Às vezes, senão quase sempre, esperar
meia hora ou mais pelo próximo ônibus não é uma opção. Às vezes, como em caso
de enfermidade, o transporte público pode simplesmente não ser uma opção.
Apelos pró climáticos e preservacionistas ficam em segundo plano quando a vida
e o bem-estar estão em xeque. Apontar o dedo e tentar incutir culpa, só piora
tudo.
Não que o
uso do veículo particular não deva ser, mas utilizar o transporte público
demanda um planejamento a que nossa população não está acostumada a fazer, e
que as circunstâncias habitualmente sabotam; tal qual é com as finanças
domésticas. Apesar de em tese os ônibus e trens, estes onde os há, tenham
horários fixos, estão sujeitos a incidentes e acidentes de percurso, eles podem
se atrasar significativamente a comprometer seu compromisso. Mesmo que haja um
ponto de ônibus ou estação de metrô bem em frente à sua residência, no mesmo
lado da rua até, o transporte não estará lá te esperando para quando precisar
dele. Mesmo nos países onde esses serviços funcionam bem.
Por partes:
•
O transporte público pode e deve ser utilizado.
Na maioria dos casos de uso INDIVIDUAL, ele é suficiente. Onde há metrô e trem
urbano existe uma vantagem que seus usuários nem imaginam o quanto faz falta, e
os que não têm nem imaginam o quanto ajuda. Apesar das desvantagens de demora e
desconforto geral, os ônibus têm mais capilaridade e uma flexibilidade que os
trilhos não permitem, o motorista pode simplesmente pegar um desvio se perceber
algum problema, ou for informado com a devida antecedência de um congestionamento;
ao menos DEVERIA ser informado. Mesmo os alardeados “BRT’s” sofrem com isso
porque, apesar do corredor dedicado, cedo ou tarde eles também passarão por um
cruzamento, então a vantagem desaparece. Saber que pode ser necessário pegar
mais de uma condução é o ônus, o que pode gerar gastos de tempo e dinheiro que
podem pesar no fim do mês, fora o problema da violência crônica em que estamos
imersos. Então o uso recreativo deve ser muito bem planejado e, claro, não pode
ser freqüente.
•
A bicicleta é o meio mais vulnerável de
transporte que existe. Skate e patins são muito compactos e praticamente não
atrapalham, se precisar pular em uma emergência, já a bicicleta te obriga a
ficar em uma posição muito passiva em acidentes e assaltos, tentar simplesmente
pular dela pode ser um tiro pela culatra, sua perna pode se prender no quadro e
o eventual ferimento se agrava. Há ciclovias pelo país, mas as cidades que as
têm são exceções, e mesmo as que têm não as têm em quantidade e qualidade
suficientes. As pessoas já se esqueceram de que bicicletas um dia foram
obrigadas a serem emplacadas, como as motos, mas mesmo hoje são obrigadas a
utilizar equipamentos de segurança altamente necessários que quase ninguém tem,
e às quais as autoridades municipais fazem vistas grossas; como farol,
retrovisores e refletores. Evitar pedalar antes da alvorada e depois do
crepúsculo é meia apólice de seguro de vida, o que nem todos podem fazer, daí a
necessidade desses acessórios obrigatórios de segurança. “Bicicleta eléctrica”
é uma mina de ouro, o povo cobra o preço de uma moto pequena por uma
bicicletinha que mal roda 30km a baixa velocidade. É mais negócio comprar uma
boa bicicleta simples e pedir a um técnico para colocar uma boa bateria e um
bom motor de furadeira, que tem peças de reposição em caso de necessidade.
•
A motocicleta ainda é a menina dos olhos dos
muquiranas. Um veículo que leva duas pessoas e ainda pode fazer até 70km/l em
velocidade de cruzeiro, em uma rodovia, com custos ínfimos de manutenção, é
tudo o que Tio Patinhas sonha. Mas, não tanto quando a bicicleta, é um veículo
muito vulnerável, e mais do que aquela muito visada por criminosos. A economia
generalizada combinada a um desempenho invejável no trânsito pesado sustenta
suas vendas. As opções são fartas e a maioria dos mecânicos consegue colocar
suas mãos na maioria delas. Para mero transporte, os gericos Honda Pop e seus
genéricos bastam. Mas as vantagens delas são também seu calcanhar de aquiles,
porque mesmo as maiores, mesmo uma Amazonas ou uma Goldwing não se presta para
uso familiar; quem casa quer casa, quem parir quer carro.
•
O grande vilão dos ecoxaropes, o carro
particular mais humilde e rústico só pede uso comedido e responsável para ser
sempre o amigo de todas as horas. Temos que ter em mente que um carro é uma
máquina altamente complexa, especialmente os mais modernos, e qualquer falha na
manutenção pode custar caro, tanto em dinheiro quanto em tempo de espera, no
caso dos que têm mecânica importada; são mais do que vocês imaginam. Mas com
tudo em dias, até mesmo um Opala seis cilindros pode ser exequível para uma
família, ainda ais que esse motor quase não quebra. A desvantagem é a
dificuldade em encontrar estacionamento em dias úteis, às vezes até em
feriados, especialmente se for uma cidade turística, então vão mais gastos com
estacionamentos privados. Um erro que as pessoas cometem muito é comprar um
subcompacto, como o Mobi, pensando em economia para a família, se esquecendo
que com o caro lotado o motor vai queimar muito mais combustível e todo o
conjunto vai sofrer mais e se desgastar mais cedo; carro leve, cada ocupante ou
mala faz mais diferença no rendimento. Se a família for de dois adultos e dois
adolescentes, já não basta um ovinho de rodas com motor de dentista, é preciso
algo mais espaçoso e pesado, com vários cavalos a mais, o consumo final pode
ser até mais baixo do que o do pequenininho super básico. Quem sabe realmente
dirigir, sabe do que estou falando.
•
Não posso deixar de fora os aviões. O novo bode
expiatório dos radicais de extrema alienação pseudointelectual tem dado com
seus flaps nas caras deles. Transportar gente e insumos médicos a grandes
distâncias em pouco tempo, é só com eles mesmo. Os custos operacionais são sua
única desvantagem, o que inclui a infraestrutura necessária à operação, como
longas pistas para pouso e decolagem, embora alguns poucos modelos possam
decolar entre dois semáforos. A urgência e a intransponibilidade de alguns
relevos por água e terra são o que os torna indispensáveis. Se tem pressa e a
distância é longa, nem tente acelerar teu carro, vá de avião.
O mais
sensato, porém, é que seu planejamento possibilite utilizar mais de um modal e
mais de uma modalidade de transporte, especialmente para quem mora longe do
destino. Usar seus pés por um ou dois quilômetros se inclui nisso. A
disseminação desse hábito desafogaria um pouco o trânsito e baratearia suas
opções por vagas, bem como tornaria o transporte público menos lotado. Como ter
dois bons veículos ainda é um luxo no Brasil, uma boa opção é deixar o carro
próximo ao centro nervoso da cidade e usar o ônibus mais conveniente para o
restante, se não for possível carregar uma bicicleta no carro; na moto é quase
impossível e dá multa pesada. Da mesma forma, esqueça o veículo muito pequeno
se morar sozinho não for o seu caso. Um carro maior consegue levar todo mundo
sem muito aperto, o que inclusive desafoga o transporte público, deixando-o
para quem realmente não pode arcar com o carro próprio. O Smart não saiu de
linha à toa, ele é bom, mas tem utilidade muito limitada.
Tenha sempre
em mente que a sua parcela de realidade pode não ser, e quase sempre não é
compatível com a do outro. Pouca gente tem uma garagem com espaço pra uma picape
ou um (eeeek!!!) SUV grande, da mesma forma as necessidades de transporte de
uma família quase sempre são incompatíveis com o amor de alguns com carrinhos
de dois lugares, ou mesmo com a aversão de certas pessoas ao automóvel. O facto
de ter funcionado para o SEU caso, não significa que dará certo para outros, e
de jeito nenhum o será para todos. Se chegar a alguém que está tentando suprir
as próprias necessidades, apontando o dedo e entoando um discurso acusatório,
não importa o quão nobre seja (quase nunca é) a sua causa, ela terá ganho um
inimigo.
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