02/08/2016

Emilia e Marcela



Gladys Cooper

- Não era isso que você queria, Marcela?


- Era.


- Por que essa cara, então? Passou a vontade?


- Depois que se morre, não adianta muito receber medicamentos.


- Credo, que comparação! Você queria era ter isso, não era?


- Não... Ter isto era um meio de conseguir o que eu queria.


- E o que te impede de conseguir? Nunca é tarde!


- Vai me servir de quê agora, Emília?


- Então não era ter ao menos um momento de regozijo que você queria?


- Não, não era. Essas coisas não me importam.


- “Não importam” como? Não te dão tesão na vida, é isso?


- Não é isso, Emília! Eu nunca procurei gozo, nunca foi meu foco. Eu sou insensível a esses prazeres, entende?


- “Insensível”?


- Não é por desprezo ou ingratidão que eu não dou risadas naquelas festas, aquela euforia não me contagia. Eu volto a cair rapidamente nas minhas elucubrações.


- Você não é velha para ter seu sonho. Nunca se é!


- Sou para o que eu queria. Eu queria uma tradição. Não se consegue isso em menos de quarenta anos. O resto simplesmente não me convém.


- Você está sendo exigente demais.


- Talvez, mas é só o que me serve. Vocês me apresentaram de tudo até agora, às vezes na marra, só conseguiram aumentar minha rejeição.


- O que porventura tiver perdido, pode ser reposto.


- Tempo não pode ser reposto. O que eu tenho pela frente não basta, não tenho mais o viço e a esperança necessários.


- Você fala como se não gostasse de viver.


- Não gosto. Tenho obrigação de levar isto até o fim e levarei.


- Que triste, Marcela! A maioria das pessoas brilharia de felicidade em ter essa oportunidade, mas você não consegue nem enxergá-la!


- Oportunidade para quê, Emília? Chegar ao portão do palácio e morrer assim que ele se abrir? Desculpe, mas estão me dando migalhas após consumirem o banquete que preparei.


- Você perdeu o gosto pela vida, Marcela! Nada mais te alegra!


- Tudo parece ter gosto de pão velho e mal armazenado. É assim que eu sinto a vida, Emília. Eu não posso simplesmente fechar os olhos e comer alimento estragado, fingindo que está bom. Quando ele estava bom, vocês não me permitiram comê-lo.


- Acreditávamos que você gostaria das outras ofertas.


- Não gostei e não me nutriram.


- O que podemos fazer por você, então?


- Vocês podem fazer algo?


- Se soubermos, talvez possamos.


- Se souberem, façam. Eu não faço a mínima idéia.


- Você não é velha.


- Nem jovem.


- Não viveu paixões, aventuras, não viveu sua mocidade para atenuar essa sensação.


- Eu não fiz caca para os outros limparem. Acha bonito se destruir a própria vida e a alheia por prazer em transgredir?


- Não, não é isso! Você não conseguiu se interessar, já entendemos... O que vai fazer de sua vida?


- Importa?


- Importa.


- Eu não sei. Vou tocar.


- Posso te acompanhar?


- Desde que não me atrapalhe.


- Talvez encontre algo ou alguém. Um dia você terá sua redenção.


- “Um dia” não existe, “Um dia” é promessa, promessa é véspera de traição.


- Você não gosta de alimentar esperanças?


- Não às custas do alheio. As minhas foram consumidas pela subsistências das suas.


- Eu sempre acreditei que a esperança fosse a última a morrer.


- E foi.


- Você está viva, Marcela.


- Meu olhar é o de um ser vivo, Emília?


- Por que insiste em me chamar assim, minha filha?


- Desculpe, mãe... Eu não sei actuar fora do palco.

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