10/08/2016

Deus me livre do bem intencionado



 
Art by Vladimir Kazak

Eu tenho mantido distância de pessoas bem intencionadas, elas tendem a ser as mais cruéis e insensíveis com suas vítimas. Elas não reconhecem que estão fazendo mal a alguém, não admitem a mais remota hipótese de as suas ações serem perniciosas, sempre amparadas em suas boas intenções e sua preocupação para com os mais vulneráveis, com o país ou seja lá que escudo elejam.

No discurso elas estão sempre preocupadas com todo mundo, em defender os fracos e oprimidos, muitas vezes acreditando realmente que se o mundo não seguir suas regras, vai simplesmente se desmanchar. Essas mesmas pessoas costumam refutar e até rejeitar com vigor regras alheias, tachando de “cagador de regras” os que simplesmente dizem por que diretórios se orienta. Regras que não forem as suas são sempre mal intencionadas.

Deus me livre dos bem intencionados, porque eles não suportam a idéia de estarem enganados. Radicalizam, querem colocar o mundo inteiro sob suas asas, quando não seus grilhões, argumentando que isto é o único caminho possível para a humanidade, que os outros são absolutamente todos a via da ruína e da extinção da espécie. Recorrer a quem pratica o que afirmam detestar, não lhes soa nem um pouco contraditório, porque as intenções são boas, então o resultado também será.

Não que ele não goste de quem alegue proteger, ele gosta, mas acredita que isto é justificativa para determinar até como uns olharão para os outros, para terem sua liberdade plena e garantida de concordarem com suas boas intenções. Ele simplesmente não enxerga que está fazendo mal, por isso é facilmente influenciado e manipulado por canalhas que adoptem o mesmo discurso.

Fica muito difícil dizer “Não” a um bem intencionado, porque ele se cerca de discursos agradáveis, tem certeza de quem são os heróis e os vilões do contexto, se empenha em adular aquele e combater este, abraça com carinho seu protegido até sufocá-lo, consegue facilmente te fazer sentir-se culpado por não aderir à sua causa. A facilidade e freqüência com que se magoa é tocante, para quem não o conhece direito, ele se faz de vítima de suas vítimas de forma muito convincente.

O lado mais negro, no sentido moral do bem intencionado, é que ele se sente muito facilmente traído por quem não o segue. Isto te torna um ignorante ou um canalha, em ambos os casos, incapaz de expressar o que pensa em público, estando sujeito a repressão e censura, mesmo que o bem intencionado seja contra esses expedientes de controle. Para ele, não há contradição alguma em deter e isolar em nome da liberdade.

O bem intencionado tem milhares de rótulos no bolso da memória, todos concebidos previamente para serem aplicados com eficiência e precisão. Se alguém se comporta como ele julga ser um mal intencionado, há uma centena de rótulos com bula explicativa para ele poder grudar na testa, basta escolher, e AI de quem se opuser a essa rotulagem, torna-se traidor de sua causa e inimigo de seus protegidos. Ele não quer conhecer quem tiver julgado, quer simplesmente neutralizá-lo, pois trata-se de uma ameaça a tudo em que acredita e venera.

É muito difícil saber se ele é lobo ou cordeiro, mas quase sempre é um kelpie, porque se apresenta como um mimoso pônei falante que vai levar seus convidados em segurança, mas os derruba e se revela um monstro gigantesco, para devorá-los vivos em seguida, porque este mundo é muito perigoso para as pessoas que precisam de proteção, se estiverem vivas elas podem morrer.

Deus me livre e guarde de quem se declara bem intencionado, porque enquanto uma mão está em posição de súplica pelos desvalidos, a outra está em prontidão com uma arma pronta para a degola. A facilidade com fala de um mundo de paz e amor é a mesma com que se livra de escrúpulos, não hesita em ser temido e odiado para manter o controle dos que alega defender.

Por dizer sempre a verdade, mesmo que esteja mentindo, o bem intencionado é habilidoso em conseguir aliados, que sob as brumas de seus discursos prolixos não conseguem enxergar os perigos de que porventura forem alertados. O bem intencionado é facilmente convencido, às vezes pelo próprio ego, de que é o salvador do mundo, que a única forma de preservar a paz, a liberdade e a livre expressão, é pela força, pela repressão e pela censura. Ele tem um cabedal imenso de literatura, mas se baliza sempre pelas conclusões de outros bem intencionados; é uma bola de neve ensangüentada.

O bem intencionado pode até ter boas intenções, por isso é comum nunca utilizar suas próprias referências, às vezes nem mesmo as constrói, sempre tem uma alheia para se justificar, e em quem colocar a culpa se tudo der errado.

Deus me livre e guarde do bem intencionado.

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