02/03/2016

Um dia... Um dia... Um dia não existe

EMILIO FIASCHI (1858-1941) - VEILED FEMALE NUDE

  No começo era só um incômodo, mas incômodos são comuns e generalizados, então lhe deixaram por sua conta, deveria ser capaz de lidar com ele. E era, até certo ponto. Com o tempo adaptou-se a esse incômodo, na esperança de obter a ajuda prometida. Andava quase normalmente, só com um pouco menos de agilidade e um pouco mais de cadência, para suportar melhor.

  Vieram ver e viram que estava agüentando com trema, porque não tinha escolha mesmo. Com tantas urgências e vendo que se virava bem, novamente lhe deixavam por sua conta, pedindo que suportasse dignamente o mal, que crescia com o tempo, a falta de socorro e a necessidade de arcar com os compromissos da vida; mesmo um animal em seu habitat tem os seus, precisa comer e se proteger, no mínimo.

  O incômodo aumentava e impunha mais limitações, já andava devagar e mal subia as escadas. Sem entender sua situação, lhe era cobrado que esticasse um sorriso, que dançasse, que fizesse piadas, que não deixasse transparecer tamanha ingratidão para com a vida. Mas o mal estar era grande. Quando voltaram viram o agravamento do quadro, mas havia uma emergência grave, bem mais grave para tratar, deram alguns conselhos, uma frase de motivação e se foram. Um dia poderiam ajudar, não agora.

  Agora havia dor. Mal conseguia se mexer. tratava com dificuldades dos assuntos de seu escopo, às vezes até de outros sem notar que o fazia. Lhe era agora cobrado que relaxasse e aproveitasse a vida, que agradecesse por não estar pior, que se enturmasse e tirasse selfies entusiasmados para o mundo ver o quanto era feliz. Feliz? A dor latejava e ia fundo, com o tempo dificultava até a respiração. Viver já era doloroso.

  Quando voltaram, impressionados com sua resistência, insistiam para que suportasse só mais um pouco, que um dia as coisas melhorariam, que a dor passaria, que a vida é bela e a vaca e amarela. Havia mais um caso grave, este não poderia esperar de jeito nenhum! Se foram e novamente estava por sua conta, tendo agora que escolher bem o modo como andava, se deitava e até como respirava, um reflexo de subsistência mal calculado e a dor voltaria mais forte.

  A primeira lágrima escorreu e só faltou apanhar, porque sua vida era bela, tinha admiradores, era inteligente, todo mundo queria estar em seu lugar, não estava agradecendo o suficiente pelo que tinha... Mas a dor agora, muitas vezes, era paralisante. Se encolhia em seu canto, longe dos olhos alheios, para a solidão acalmar sua mente e ajudar a suportar o sofrimento. Doía muito, e não era mais em pontos específicos, doía-lhe o corpo inteiro. Disseram que um dia a ajuda chegaria e não teria mais dor, mas o dia não chegava.

  Voltaram e viram sua situação, a insensibilidade que lhe cercava e, de longe, aquelas lágrimas escorrendo. Palavras de consolo, conversas motivacionais, elogios pela postura, mas havia outra emergência para atender, seu caso, pela força demonstrada, poderia esperar. Um dia voltariam, não teriam mais emergências graves como as de agora e curariam de sua dor. Um dia.

  Curou-se por si. A dor ainda estava lá, o incômodo ainda estava lá, sua pessoa ainda estava lá, mas não era a mesma pessoa. Um dia não veio, um dia não aconteceu, um dia não existiu. Um dia voltaram e viram uma criatura esguia, elegante, altiva, mas completamente insensível ao que se passava ao seu redor. Saudaram, não tiveram resposta. Chamaram-lhe pelo nome, mas parecia que não estavam lá. aproximaram-se e tocaram-lhe o ombro, mas tampouco isso denunciou sua presença.

  Agora tinham uma emergência de verdade! Pegaram seu material, os instrumentos, os emplastros, os analgésicos, os chás e as preces que sempre traziam. Nada fez efeito. Nada sequer atravessava sua pele pálida e fria. As massagens naquele corpo rijo e uniforme, que vivia parecendo ter morrido, pois movia-se, eram como acariciar o mármore. Começou a caminhar indiferente às suas presenças, tinha afazeres e já estava na hora de arcar com eles. Andar elegante, linear, quase como em passos lentos de balé clássico. A dor era muito intensa, mas já a suportava. Respirar sem verter prantos foi um aprendizado longo, logrou êxito, mas houve um preço.

  Queixavam-se agora de sua indiferença, sua distância, sua arrogância, sua ingratidão para com os que sempre estavam próximos, mas já não ouvia suas lamurias. Tinha urgências para tratar e só a elas dava ouvidos. Urgência não poderiam esperar, a dor que esperasse, se quisesse.

  Um dia não reclamava mais de dores, nem de incômodos, nem do frio, nem de nada. Um dia viram sua figura sumir no horizonte, lânguida e fantasmagoricamente, sem se deter. Queriam agora, muito, que voltasse a chorar e pedir ajuda, algum dia.

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