29/07/2021

A vez dos pequenos fabricantes

 

Chevrolet Caprice 1992.

Eu já falei aqui várias vezes sobre os altíssimos custos de se fabricar um automóvel, da imensa demanda necessária para justificar o desenvolvimento de um modelo novo, de o quanto os melindres do mercado consumidor podem ser letais para um carro que tinha tudo para ser um sucesso de vendas. Pois bem, meus amigos, as coisas não mudaram, não nos moldes tradicionais. Os famigerados SUVs continuam hipnotizando gente que se deixa levar por apelos baratos e ignora os perigos desses trambolhos sobre rodas, deixando os carros tradicionais de verdade com demandas tão baixas que sua produção está se tornando dia a dia mais desvantajosa, a ponto de alguns terem dado prejuízo até saírem de linha; basta ver o opulento e saudoso Impala e o espaçoso familiar Caprice. Diga-se de passagem, espaço interno é um dos maiores pontos negativos dos trambolhos SUV.

 

Justamente por ser tão caro e demorado começar um carro do zero, os pequenos fabricantes quase sempre se valeram de comprar plataformas já prontas das grandes montadoras, às vezes isso incluía pacotes tão cheios (com chassi, suspensão, mecânica, rodas, painel e até acessórios originais) que esses carros de baixa produção, chamados fora de série, às vezes eram apenas Fuscas com carrocerias diferentes e acabamento geralmente melhorado; exceto os bugues, que quase sempre não têm acabamento nenhum. Os primeiros modelos da saudosa e agora renascida Puma são o exemplo mais contundente, ela comprava toda a parte de baixo com mecânica e aparatos essenciais dos Volkswagen refrigerados a ar, se dava o trabalho de encurtar o chassi pois os Pumas eram bem menores, então colocava seus carros em cima. O resultado era um conjunto mais leve e aerodinâmico, que conseguia desempenhos bem superiores aos dos originais.

 

Durante a era de ouro, em que a Puma quase chegou a fazer parte da ANFAVEA, essa estratégia assegurava não só a manutenção dos custos em níveis aceitáveis, mas também reduzia prazos já que o carro vinha praticamente pronto para receber a carcaça, aumentava a confiabilidade com uma mecânica consagrada, seduzia o cliente com a possibilidade de encontrar mão de obra em qualquer lugar do Brasil e na maioria dos outros países, permitia desfilar com os anêmicos 52 cavalos originais ou acelerar com mais de cem cavalos preparados de fábrica, enfim, era uma zona de conforto incrivelmente sólida, tudo porque o fabricante começou e usou por muitos anos uma plataforma que era utilizada por muitos outros pequenos constructores. Só tardiamente começou a fazer sua própria plataforma, mas isso é outra conversa não tão bem-sucedida. Cem cavalos para a época era muita coisa.

 

De quebra a Volkswagen tinha um pequeno abatimento de custos, pela escala de produção de uma plataforma que já era vitoriosa e já estava paga há décadas, principalmente porque seus clientes nem de longe eram concorrentes, pois atendiam mercados de nicho que simplesmente ainda hoje não interessam às grandes montadoras, é uma demanda pequena e muito pulverizada em vários interesses distintos, para uma produção em larga escala. E esses fora de série ainda serviam de laboratório, testando na prática a mecânica da montadora em situações que os carros de linha normalmente não enfrentam. Na verdade hoje mais do que na época, dada a monotonia de modelos e a completa falta de estilo. Daí outro motivo para eu ter raiva da VW! BURRA! BURRA! BURRA!

 

Bem, como se fosse novidade, as plataformas modulares estão voltando à pauta, desta vez pensada para os carros eléctricos, mas não há lei que impeça alguém de tirar a parte original e trocá-la ou então complementar com uma mecânica a combustão. Alguns fabricantes oferecem modelos altamente modulares, que podem ser transformados rapidamente e atender a várias necessidades sem que o cliente precise comprar mais de um carro. Para quem não tem uma empresa grande com necessidades padronizadas específicas, poder trocar a carroceria com relativa facilidade é uma boa idéia, embora isso não seja trabalho para leigos e não dispense um mínimo de ferramental, mesmo que seja o caso de apenas acoplar e desacoplar peças, que seriam pesadas para uma pessoa só.

 

Também há empresas interessadas em fabricar só a plataforma, ou seja, o assoalho com motor e baterias. Neste caso específico o complicador aumenta, porque o cliente teria que produzir sua própria carroceria e agregados, e hoje em dia é muito difícil homologar um carro, por conta dos testes de segurança e dos equipamentos mínimos exigidos. Entretanto, para um pequeno fabricante, por mais baixa que venha a ser a produção, isso é excelente! Uma empresa disposta a atender a baixa demanda ainda existente por sedãs e peruas poderia se valer dessas plataformas, que se atingirem um nível de produção razoável ainda garantirão a manutenção e reparos mais prontos e fáceis. Não é trabalho para amadores, mas não é um bicho de sete cabeças para um profissional, ainda mais se esses pequenos fabricantes se valerem do máximo possível de componentes fornecidos a outros fabricantes, focando esforços no design e no acabamento.

 

Mas quem seriam os compradores desses sedãs, hatches e peruas? Provavelmente os frotistas seriam os maiores clientes, junto com as locadoras. A Hertz queria assumir a fábrica do Cruze em Ohio, mas a GM negou afirmando que a demanda da locadora não era suficiente para manter a produção, o que foi mais uma burrice, já que eles se dispuseram a assumir os riscos. Depois viriam os governos e taxistas, para quem os trambolhos que estão na moda são contraproducentes, com consumo e custo de manutenção maiores do que os dos carros de verdade, além dos preços muito maiores para veículos que vão cumprir com as mesmas funções. Por último os felizes clientes fiéis dos carros de verdade, hoje órfãos e praticamente com a faca no pescoço para comprarem aqueles trambolhos, se quiserem um carro novo.

 

Ter um público fiél não significa ter demanda para uma linha de montagem tradicional. Com essa nova chance para os pequenos fabricantes o problema seria resolvido, embora mesmo a redução dramática de custos ainda assim não baste para tornar modelos de baixa produção tão baratos quanto seriam, se saíssem de uma Toyota da vida. Digamos, um sedã médio, de uns 4,7 m de comprimento com o básico de acesórios, poderia sair por mais de R$ 90.000,00 para o consumidor final, dependendo do volume da produção, mas ainda assim seria uma opção que virtualmente não existe mais para uma demanda que ainda existe, apesar de reduzida. Mas enquanto um modelo de larga escala não possa mais ser pensado, em todas as versões de carroceria, para menos de um milhão de unidades, os de baixa demanda podem se programar para cinqüenta mil unidades para toda a vida do modelo, antes de ser remodelado ou substituído por um novo.

 

Já o restrito mercado dos carros de lazer, como conversíveis, pequenos coupés, bugues e afins, voltaria a ter uma garantia de qualidade que as gambiarras a que foram legados raramente permitem, por um custo de produção abaixo do proibitivo. Para quem ainda prefere os carros a combustão, e é muito, mas muuuuuiiiito mais gente do que vocês podem imaginar, o sucesso desse negócio não tardaria a fomentar novos fornecedores, que na América e na Ásia ainda seriam poupados da pena capital por fabricarem plataformas a combustão, ainda que precisassem hibridar. Aliás, um motorzinho eléctrico com cerca de 10% da potência do principal em um eixo que não tem tração, já ajuda muito, não precisa gastar os tubos e deixar o carro pesado para as coisas funcionarem. Com o auxílio de um bom designer pode-se pegar um desenho já consagrado, fazer retoques suficientes para evitar processos por plágio e começar a empreitada. É um caminho íngreme, mas se a pessoa estiver devidamente preparada e motivada, pode conseguir seu recanto no mercado automotivo.

 

O lado B dessas plataformas modulares é justamente o consumidor final, o cidadão que quer fazer um carro exclusivo ou vestir essa plataforma com uma estrutura já existente. Embora não seja coisa de outro mundo, montar um carro, mesmo com peças já prontas de fábrica, requer conhecimentos mínimos, ferramental próprio e uma dose de experiência que varia com a complexidade do que se pretende. Uma montagem mal executada renderia no mínimo desconfortos e dores de cabeça, como entrada de água e poeira por vedação deficiente, ruídos irritantes e persistentes por fixação e/ou instalação mal pensadas, sobrecarga ou mal funcionamento por falta adequada de funcionamento da parte eléctrica, até mesmo peças de acabamento saindo na mão do ocupante. Isso no mínimo, porque um projecto mal feito pode gerar danos estruturais graves em uma simples curva em velocidade um pouco maior, ou com carga plena, por falta de rigidez da estrutura, daí para um acidente fatal não falta muito. E eu estou falando apenas da parte funcional.

 

O risco de o comprador simplesmente odiar o resultado final também é grande, por falta de noções de design e por escolher estilos que simplesmente não conversam entre si sem a intervenção de um profissional experiente. Imagine gastar cem mil reais, mais um ano de trabalho no mínimo, e querer mastigar os próprios cotovelos ao se afastar um pouco e ver o resultado. Muita gente sonha com uma réplica de Lamborghini, muito mais gente fica com cara de “que diabo é isso” quando vê o resultado de meses de trabalho árduo e dispendioso. Em vez de um Gallardo o coitado descobre que fez um “Gargalhardo”. Por isso aos aventureiros individuais sem grande expertise, recomento importar um kit car de um bom fabricante para vestir suas plataformas, já avisando que não temos fabricantes de kit car no Brasil; constrangedoramente, nas minhas pesquisas por sites nacionais eu quase que só encontrei kits para carrinhos de cachorro-quente e picolé. Por outro lado uma carroceria pronta para montar evita os dissabores e reduz os prazos, garantindo que a pretensão de uma boa réplica será alcançada. O custo, por ser um pedido simples, será alto, mas menor do que os gerados por contratempos de uma execução insatisfatória.

 

Também por conta da forte indústria de kit cars no exterior, especialmente nos Estados Unidos, um pequeno fabricante hoje teria muito mais chances de sobreviver e prosperar, seria virtualmente apenas ajustar e montar as peças. Ainda que a produção seja muito baixa, de poucas unidades por ano, a necessidade de um estoque e um contracto assinado para fornecimento já asseguram insumos a preços menores, ainda mais com um povo que gosta de negociar. Com o tempo esse pequeno fabricante poderia desenvolver seu próprio design, quem sabe atender pequenos mercados profissionais com veículos mais funcionais do que esportivos, gerando volume e reduzindo os custos unitários, isso aceleraria a circulação de capital e enrobusteceria a empresa. Pronto, o que era um hobby e tinha se tornado um simples ganha-pão, agora traz prosperidade à família.

 

Uma opção seria comprar os kits para montar como prestador de serviço, deixando toda a responsabilidade legal para o cliente, assim não se configuraria plágio, para todos os efeitos o seu cliente comprou o kit e contractou seus serviços para a execução do projecto. Hoje se compra um kit Aventador de boa procedência por menos de dez mil dólares, para exemplificar uma das réplicas de maior demanda. Há os que imitam carros pré-guerra, mas são mais utilizados em competições, já kits de sedãs, peruas e utilitários de verdade virtualmente não existem, demandariam projectos específicos e custos mais altos para clientes que não estão interessados em gastar e esperar demais, então só se justificam se houver demanda para uma linha de montagem. O lado bom é que uma vez conseguida uma boa clientela, como prefeituras, locadoras e empresas de táxi, a produção estaria assegurada por um bom tempo com essa demanda. Via de regra, esses clientes são bastante exigentes com custos de manutenção e confiabilidade, quesitos bem atendidos pelas plataformas eléctricas e as que usam mecânicas tradicionais. Usar um carrão americano tradicional como modelo, com algumas reestilizações, já atrairia a simpatia dessa clientela. A grande vantagem de uma banheira dessas, que pode passar dos 5,6m de comprimento, é que não desperta cobiça, isso inibe o uso indevido pelos funcionários, especialmente os mais jovens, e desperta pouco ou nenhum interesse de meliantes. Claro que tentar copiar o Opala e fazer uma estilização para evitar problemas com a Chevrolet também vale a pena.

 

Um ponto que quase todos se esquecem é que não basta saber fazer bons carros para lograr êxito neste ramo, trata-se de um mercado extremamente complexo, com mais detalhes e nuances do que um graxeiro está disposto a ficar atento. É preciso primeiro saber como conseguir que o seu carro consiga sair à rua e voltar para casa, sem que a polícia o leve embora. O Brasil tem uma burocracia tão absurda, idiota e onerosa quanto sua legislação tributária, por isso é preciso ser um bom administrador ou contractar um para o serviço, o que está fora das possibilidades de um fabricante de fundo de quintal; Vamos estudar, meus amigos, centro de gravidade baixo não legaliza o carro. Saber lidar com as pessoas e conciliar interesses é de suma importância para quem quer viver desse ramo, porque a cadeia produtiva é gigantesca e vocês vão encontrar todo tipo de criaturas estranhas e bizarras, com quem terão que travar negociações que podem ser bem longas; entenderam agora a necessidade de um bom estoque?

Ainda que terceirizando, para tudo caber no orçamento de uma fábrica recém-nascida, É necessário ter o amparo de um contador, um engenheiro mecânico como responsável técnico, uma empresa para descarte e destinação dos resíduos, e se for o caso de um administrador experiente. Resolvido esse problema, minha sugestão é não economizar com matéria-prima, mão de obra e design. Mesmo que vá realmente pegar um Opala para embasar o seu carro, o serviço de um designer competente manterá a identidade e a invejável harmonia de proporções do clássico, fazendo-o parecer uma evolução e não uma cópia mal retocada. Ter personalidade própria, mesmo se for vender para frotistas, ajuda muito a convencer o cliente. Espero não ter assustado vocês, mas é sempre necessário mostrar o quão íngreme e tortuoso pode ser um caminho. Não é só para o mundo automotivo, qualquer ramo econômico vai espalhar armadilhas no seu caminho, muitas delas estarão camufladas no ambiente ou serão apresentadas como boas oportunidades.

 

Não é demais repetir isso, para não ter dores de cabeça, na hora de regularizar, consulte e estude bem a legislação:

Especial: Veículos de fabricação artesanal têm normas fixadas pelo Detran-SP | Governo do Estado de São Paulo (saopaulo.sp.gov.br)

Veículo Artesanal - (Resolução nº 699, de 10/10/2017) (caterg.com.br)

Como legalizar um carro artesanal - Revista Hot Rods

Notícias:

Acredite! Esse Karmann Ghia Conversível é inteirinho em fibra de vidro | Maxicar - Carro antigo, pura nostalgia.

Conheça o XBus, carro elétrico que pode virar picape, furgão e até motorhome - Canaltech

Plataforma modular transforma carros antigos em elétricos de 600 cv - Quatro Rodas (abril.com.br)

Este carro elétrico pode ser montado em casa como Lego em menos de 1 hora | Mobiauto

REE demonstra sua inovadora plataforma de carros elétricos do futuro - Stylo Urbano

 

Links úteis:

KIT BUGGY - BUGGYMANIA

HOME | fibracar

Kit Car List of Auto Manufacturers

Delahaye USA - Recreating the Most Beautiful Cars in the World

Dur-A-Flex Racing (duraflex-racing.com)

Order a Kit - Factory Five Racing

Concept 57 | Corvette Central

Regal Roadsters LTD

Build Your Own Car - Roadster, Hot Rod, & Supercar - Factory Five Racing

2 comentários:

Xracer disse...

Mai um post fabuloso, analisando em muitos aspectos o desejo, a demanda e possíveis opções de carros que gostamos muito e estão desaparecendo, como areia entre os dedos ! Por isso que sigo e leio todos os posts aqui desse Blog ! Faco uma sugestão de post sobre os hábitos infantis (cultural) dos brasileiros no transito, desde motos de pequeno motor com escapamentos irritantes e estridentes a agressividade nas ruas e a absurda inépcia das autoridades de transito em implantar controle de trafego que vise a fluência do Transito e não apenas multar e fazer faixas exclusivas de ônibus que ficam vazias e inutilizáveis 90% do tempo. Um forte abraco Nanael !

Nanael Soubaim disse...

Sugestão recebida e acatada. Farei o texto.