Em primeiro lugar, o
Brasil não é a capital de Buenos Aires e não faz fronteira com o Panamá.
Chocado? Sim, eu sei, todos aqueles apaixonados discursos de faculdade,
repletos de boas intenções com o lema “O meu lado é sempre bom, o outro lado é
sempre mau” te levaram a ter esperanças de um mundo melhor. Mas mesmo os mais
bem intencionados podem estar errados, podem até mesmo ser cruéis. Afinal, há
quem em nome de Allah mata crianças com requintes de crueldade, não é mesmo?
Quem acredita ser O BOM sempre tem mais chances de ser o verdadeiro mau da
história. Então vamos elucidar alguns pontos.
Buenos Aires não é
um país, é uma cidade. Na verdade é a segunda metrópole da América do Sul, só
perdendo para a exagerada e quase gigalopolitana São Paulo. Surpreso? Pois
sim, ela não fica na América Central. Não, também não é a capital do Brasil, é
capital da Argentina, que faz divisa com a fronteira sudoeste brasileira. Não
sei se te contaram na faculdade, mas não é de bom tom confundir Argentina e
Brasil, a rivalidade entre os dois países não é só histórica, é histérica. Eles
divergem tanto e em tantos pontos, em todos os níveis, que seus cidadãos não
raramente pisam em ovos para tratar de certos assuntos com o outro gentílico.
Os dois povos
convivem até muito bem, se recebem bem um na casa do outro, mas evitar assuntos
como política, futebol e história bilateral, já evitou tragédias. Entendam,
como todos os países do mundo, ambos temos nossos podres e algumas arestas
contundentes do passado ainda estão por ser aparadas. Argentinos têm sangue
mais quente e temperamento mais arisco, brasileiro é mais rancoroso, embora não
admita. O mesmo, com menor intensidade, vale para os outros vizinhos do Brasil,
que é o único país de toda a América a falar português. Todos os outros falam espanhol e alguns
idiomas indígenas locais. Então não confundir nuestros hermanos argentinos com nossos
irmãos brasileiros. Conviver, sim, conseguem, se misturar é bem mais difícil.
O segundo ponto é
que o Brasil simplesmente NÃO CABE na América Central. A parte central inteira
do continente americano, incluindo continente e ilhas, tem cerca de 555.000km²,
o Brasil sozinho tem pouco mais de 8.500.000km², aproximadamente o tamanho dos
Estados Unidos da América. Assustado? Muitos brasileiros também não sabem
disso, alguns já foram flagrados tentando alcançar a fronteira com o México, que
fica na América do Norte, mas isso é outra triste e vexatória história. O facto
aqui é que o Brasil, se estivesse solto no Atlântico, seria considerado um
continente.
É tão grande que o
extremo norte, norte do Estado do Amapá, fica no hemispherio norte. Tão extenso
na latitude, que tem quatro fusos horários. Tão agigantado na longitude, que o
sul e parte do sudeste estão sujeitos a neve, no nosso inverno. O extremo leste
é freqüentemente assolado por secas que podem durar anos. O extremo oeste tem
cidades isoladas por uma floresta tão densa, tão compacta, que a queda de um
avião por lá é quase certeza de morte, se não pelo impacto, por falta de
socorros.
Agora raciocine,
caro artista que nunca pisou no Brasil; Com um território tão vasto, com
topografias tão diversificadas, com climas tão variados, com
infraestrutura tão medíocre, lhe parece
razoável que haja uma diversidade cultural considerável? Veja bem, a Alemanha
com seus 357.000km², portanto menor do que a pequena América Central, tem uma
variedade considerável de culturas e dialetos locais. A própria Bélgica, que
muita gente de fora pensa ser homogênea, em seus 30.528km², portanto menos
de um décimo do território alemão, ainda guarda diferenças de traços culturais
que são ferrenhamente defendidos por seus habitantes regionais!
Quem conhece
Bruxelas, não pode dizer que conhece toda a Bélgica. Quem conhece Berlim, nem
sonhando pode dizer que conheceu a Alemanha. Quem pisou no Rio de Janeiro não
pode nem dizer que conheceu a capital do Brasil! Nossa capital é Brasília e
fica a mais de mil quilômetros da praia mais próxima, bem no meio do planalto
central, sob um clima tão quente e seco que asfixia quem não está acostumado.
Não, não é metáfora, é literal; quem tem problemas respiratórios deve evitar o
centro-oeste brasileiro.
Quando os portugueses
aqui chegaram, após os espanhóis avisarem ter encontrado a parte deles do
Tratado de Tordesilhas, eles tiveram facilidade em cometer atrocidades contra a
população local. Não foi só por causa da indiscutível superioridade tática e
tecnológica, nem só por causa das doenças que nossos índios não conheciam. A
facilidade maior foi a desunião entre as tribos. Não tínhamos um reino
encantado de povos indígenas sob o comando de um rei bondoso e sua família
real. Esse conceito de hierarquia sequer existe até hoje na maioria das
aldeias. Havia sim nações com culturas e idiomas próprios que nem sempre se
entendiam. Às vezes nem aldeias próximas se entendiam. Só não foi mais fácil e
rápido porque a coroa portuguesa estava na cabeça de um pateta, que não fazia
jus nem ao nome dos antepassados.
Mas não foram só os
portugueses que estiveram aqui, tivemos uma colonização de franceses e
holandeses no nordeste, que durou muito tempo, o suficiente para os dois
idiomas contaminarem irremediavelmente o português que falamos. Por exemplo, em
Portugal se diz “garção” para se referir a “waiter”, o afrancesamento do nosso
idioma nos faz dizer “garçom”. Lá, rapariga é uma moça qualquer, aqui é
profissional do sexo ou simplesmente uma mulher promíscua que se mete com
marido alheio. Está percebendo, caro artista, como este país é muito mais
complexo do que seus conceitos pasteurizados e preconcebidos podem abraçar? Mas tem mais.
Dizer que o Brasil é
uma democracia, é ufanismo ideológico, ingenuidade à melhor moda de Pollyana ou desconhecimento puro. Da independência até
1891, éramos uma monarquia imperialista, depois pulamos de ditador em ditador,
que aproveitava as eleições para se perpetuar ou indicar o sucessor. Tivemos
muitas guerras civis que moldaram o caráter e o bairrismo dos Estados
envolvidos nelas, sempre insatisfeitos e querendo se separar da Federação.
Sim, já fomos os
Estados Unidos do Brasil, como vocês são os Estados Unidos da América, mas
desde 1969 somos uma federação, ou seja, a autonomia dos Estados é muito menor
do que a dos de vocês. Na verdade os Estados até hoje são mais ou menos como
feudos de (ironia) caciques de partidos políticos mais tradicionais ou de maior
representatividade no congresso. Uns mais, outros menos, mas a rigor todos o
são. E por falar em feudo político, vamos à parte mais sórdida.
O golpe de Estado,
por assim dizer, de verdade, veio em 1988, quando a actual constituição foi
promulgada. Há tantos pontos dependentes de regulamentação, tantos buracos,
tantos textos que podem ser interpretados praticamente ao gosto do advogado em
questão, que praticamente deu ao congresso nacional um poder sobre o presidente
que o de vocês nem sonha. Na prática somos um parlamentarismo torto da pior
espécie. É tão torpe, que um partido pode utilizar votos excedentes de um
candidato para colocar quem quiser no congresso, o que muitas vezes deixa sem
mandato um candidato que seria numericamente eleito. Cerca de 2/3 da câmara dos
deputatos não foram eleitos, alguns nem campanha fizeram. Alguns mal sabem ler
e escrever, literalmente. Estão cagando e andando para o eleitor, afinal não
precisaram dele para serem empossados.
Vem daí a explosão
de corrupção que o caríssimo artista tanto lê em noticiários a nosso
respeito. Mas também vêm daí as militâncias radicais e irracionais, embora
ditas intelectualizadas, que fazem vistas grossas para o que o seu lado faz,
relevando tudo e agredindo como podem quem se mostrar minimamente insatisfeito
com seus heróis. Houve tempo em que as agressões eram somente de assédio moral
e perturbação da ordem, hoje as lesões corporais são comuns. Mas meu lado é
sempre bom e o seu lado é sempre mau, lembre-se disso, artista.
Não, eu não confio
no presidente interino. Não confio na maioria dos ministros que ele indicou,
assim como não confio na presidente afastada. A chapa dela escolheu o hoje
interino como vice, ele não colocou uma arma na cabeça dela para exigir o
cargo. Não há santos aqui, e eu não acredito em inocência de político até que
se prove o contrário. E o Brasil, nos últimos anos, tem flertado e até ajudado
regimes que vão contra tudo o que o caro artista diz lutar.
Antes de falar sobre
o Brasil, especialmente em público e ao seu público, estude toda a história,
mesmo que resumida, não só a historinha que fala o que o caríssimo artista quer
ouvir, que demoniza uma parte e canoniza a outra. Isso não existe em nenhuma
parte do espaço-tempo, aqui não é diferente. O Brasil tornou-se um país
bizarro, mas ainda faz parte do planeta Terra e a espécie dominante ainda é a
homo sapiens, a mesmo que colonizou o seu país. Quer mesmo ajudar o Brasil?
Ajude o seu país a resolver seus problemas internos, o que inclui os processos
que nossas empresas, privada e estatais, enfrentam em seu território. Se elas
forem punidas aí, as chances de se safarem aqui são muito menores.
Só mais uma
coisinha, uma das coisas que mais admiro em seu país, conhecendo todas as
adversidades humanísticas que enfrenta até hoje, é que sempre foi uma
democracia desde sua independência. O Brasil nunca foi de verdade, e hoje é
menos do que há trinta anos, porque hoje o sujeito pode achar que sua OPINIÃO é
ofensiva e encrencar sua vida por anos, em processos judiciais, especialmente se
um deus ideológico estiver vagamente inserido na declaração de OPINIÃO. Se há
uma coisa que nunca, jamais, sob hipótese alguma se deve fazer, especialmente
quando se tem um público cativo, é passar mão na cabeça de uma ditadura.
Nunca mesmo!
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