20/05/2016

Caro artista desses lados daí...



 
Ipirela. Conhece? Não? E ainda assim quer dar lição de Brasil?

  Em primeiro lugar, o Brasil não é a capital de Buenos Aires e não faz fronteira com o Panamá. Chocado? Sim, eu sei, todos aqueles apaixonados discursos de faculdade, repletos de boas intenções com o lema “O meu lado é sempre bom, o outro lado é sempre mau” te levaram a ter esperanças de um mundo melhor. Mas mesmo os mais bem intencionados podem estar errados, podem até mesmo ser cruéis. Afinal, há quem em nome de Allah mata crianças com requintes de crueldade, não é mesmo? Quem acredita ser O BOM sempre tem mais chances de ser o verdadeiro mau da história. Então vamos elucidar alguns pontos.


  Buenos Aires não é um país, é uma cidade. Na verdade é a segunda metrópole da América do Sul, só perdendo para a exagerada e quase gigalopolitana São Paulo. Surpreso? Pois sim, ela não fica na América Central. Não, também não é a capital do Brasil, é capital da Argentina, que faz divisa com a fronteira sudoeste brasileira. Não sei se te contaram na faculdade, mas não é de bom tom confundir Argentina e Brasil, a rivalidade entre os dois países não é só histórica, é histérica. Eles divergem tanto e em tantos pontos, em todos os níveis, que seus cidadãos não raramente pisam em ovos para tratar de certos assuntos com o outro gentílico.


  Os dois povos convivem até muito bem, se recebem bem um na casa do outro, mas evitar assuntos como política, futebol e história bilateral, já evitou tragédias. Entendam, como todos os países do mundo, ambos temos nossos podres e algumas arestas contundentes do passado ainda estão por ser aparadas. Argentinos têm sangue mais quente e temperamento mais arisco, brasileiro é mais rancoroso, embora não admita. O mesmo, com menor intensidade, vale para os outros vizinhos do Brasil, que é o único país de toda a América a falar português. Todos os outros falam espanhol e alguns idiomas indígenas locais. Então não confundir nuestros hermanos argentinos com nossos irmãos brasileiros. Conviver, sim, conseguem, se misturar é bem mais difícil.


  O segundo ponto é que o Brasil simplesmente NÃO CABE na América Central. A parte central inteira do continente americano, incluindo continente e ilhas, tem cerca de 555.000km², o Brasil sozinho tem pouco mais de 8.500.000km², aproximadamente o tamanho dos Estados Unidos da América. Assustado? Muitos brasileiros também não sabem disso, alguns já foram flagrados tentando alcançar a fronteira com o México, que fica na América do Norte, mas isso é outra triste e vexatória história. O facto aqui é que o Brasil, se estivesse solto no Atlântico, seria considerado um continente.


  É tão grande que o extremo norte, norte do Estado do Amapá, fica no hemispherio norte. Tão extenso na latitude, que tem quatro fusos horários. Tão agigantado na longitude, que o sul e parte do sudeste estão sujeitos a neve, no nosso inverno. O extremo leste é freqüentemente assolado por secas que podem durar anos. O extremo oeste tem cidades isoladas por uma floresta tão densa, tão compacta, que a queda de um avião por lá é quase certeza de morte, se não pelo impacto, por falta de socorros.


  Agora raciocine, caro artista que nunca pisou no Brasil; Com um território tão vasto, com topografias tão diversificadas, com climas tão variados, com infraestrutura  tão medíocre, lhe parece razoável que haja uma diversidade cultural considerável? Veja bem, a Alemanha com seus 357.000km², portanto menor do que a pequena América Central, tem uma variedade considerável de culturas e dialetos locais. A própria Bélgica, que muita gente de fora pensa ser homogênea, em seus 30.528km², portanto menos de um décimo do território alemão, ainda guarda diferenças de traços culturais que são ferrenhamente defendidos por seus habitantes regionais!


  Quem conhece Bruxelas, não pode dizer que conhece toda a Bélgica. Quem conhece Berlim, nem sonhando pode dizer que conheceu a Alemanha. Quem pisou no Rio de Janeiro não pode nem dizer que conheceu a capital do Brasil! Nossa capital é Brasília e fica a mais de mil quilômetros da praia mais próxima, bem no meio do planalto central, sob um clima tão quente e seco que asfixia quem não está acostumado. Não, não é metáfora, é literal; quem tem problemas respiratórios deve evitar o centro-oeste brasileiro.


  Quando os portugueses aqui chegaram, após os espanhóis avisarem ter encontrado a parte deles do Tratado de Tordesilhas, eles tiveram facilidade em cometer atrocidades contra a população local. Não foi só por causa da indiscutível superioridade tática e tecnológica, nem só por causa das doenças que nossos índios não conheciam. A facilidade maior foi a desunião entre as tribos. Não tínhamos um reino encantado de povos indígenas sob o comando de um rei bondoso e sua família real. Esse conceito de hierarquia sequer existe até hoje na maioria das aldeias. Havia sim nações com culturas e idiomas próprios que nem sempre se entendiam. Às vezes nem aldeias próximas se entendiam. Só não foi mais fácil e rápido porque a coroa portuguesa estava na cabeça de um pateta, que não fazia jus nem ao nome dos antepassados.


  Mas não foram só os portugueses que estiveram aqui, tivemos uma colonização de franceses e holandeses no nordeste, que durou muito tempo, o suficiente para os dois idiomas contaminarem irremediavelmente o português que falamos. Por exemplo, em Portugal se diz “garção” para se referir a “waiter”, o afrancesamento do nosso idioma nos faz dizer “garçom”. Lá, rapariga é uma moça qualquer, aqui é profissional do sexo ou simplesmente uma mulher promíscua que se mete com marido alheio. Está percebendo, caro artista, como este país é muito mais complexo do que seus conceitos pasteurizados e preconcebidos podem abraçar? Mas tem mais.


  Dizer que o Brasil é uma democracia, é ufanismo ideológico, ingenuidade à melhor moda de Pollyana  ou desconhecimento puro. Da independência até 1891, éramos uma monarquia imperialista, depois pulamos de ditador em ditador, que aproveitava as eleições para se perpetuar ou indicar o sucessor. Tivemos muitas guerras civis que moldaram o caráter e o bairrismo dos Estados envolvidos nelas, sempre insatisfeitos e querendo se separar da Federação.


  Sim, já fomos os Estados Unidos do Brasil, como vocês são os Estados Unidos da América, mas desde 1969 somos uma federação, ou seja, a autonomia dos Estados é muito menor do que a dos de vocês. Na verdade os Estados até hoje são mais ou menos como feudos de (ironia) caciques de partidos políticos mais tradicionais ou de maior representatividade no congresso. Uns mais, outros menos, mas a rigor todos o são. E por falar em feudo político, vamos à parte mais sórdida.


  O golpe de Estado, por assim dizer, de verdade, veio em 1988, quando a actual constituição foi promulgada. Há tantos pontos dependentes de regulamentação, tantos buracos, tantos textos que podem ser interpretados praticamente ao gosto do advogado em questão, que praticamente deu ao congresso nacional um poder sobre o presidente que o de vocês nem sonha. Na prática somos um parlamentarismo torto da pior espécie. É tão torpe, que um partido pode utilizar votos excedentes de um candidato para colocar quem quiser no congresso, o que muitas vezes deixa sem mandato um candidato que seria numericamente eleito. Cerca de 2/3 da câmara dos deputatos não foram eleitos, alguns nem campanha fizeram. Alguns mal sabem ler e escrever, literalmente. Estão cagando e andando para o eleitor, afinal não precisaram dele para serem empossados.


  Vem daí a explosão de corrupção que o caríssimo artista tanto lê em noticiários a nosso respeito. Mas também vêm daí as militâncias radicais e irracionais, embora ditas intelectualizadas, que fazem vistas grossas para o que o seu lado faz, relevando tudo e agredindo como podem quem se mostrar minimamente insatisfeito com seus heróis. Houve tempo em que as agressões eram somente de assédio moral e perturbação da ordem, hoje as lesões corporais são comuns. Mas meu lado é sempre bom e o seu lado é sempre mau, lembre-se disso, artista.


  Não, eu não confio no presidente interino. Não confio na maioria dos ministros que ele indicou, assim como não confio na presidente afastada. A chapa dela escolheu o hoje interino como vice, ele não colocou uma arma na cabeça dela para exigir o cargo. Não há santos aqui, e eu não acredito em inocência de político até que se prove o contrário. E o Brasil, nos últimos anos, tem flertado e até ajudado regimes que vão contra tudo o que o caro artista diz lutar.


  Antes de falar sobre o Brasil, especialmente em público e ao seu público, estude toda a história, mesmo que resumida, não só a historinha que fala o que o caríssimo artista quer ouvir, que demoniza uma parte e canoniza a outra. Isso não existe em nenhuma parte do espaço-tempo, aqui não é diferente. O Brasil tornou-se um país bizarro, mas ainda faz parte do planeta Terra e a espécie dominante ainda é a homo sapiens, a mesmo que colonizou o seu país. Quer mesmo ajudar o Brasil? Ajude o seu país a resolver seus problemas internos, o que inclui os processos que nossas empresas, privada e estatais, enfrentam em seu território. Se elas forem punidas aí, as chances de se safarem aqui são muito menores.


  Só mais uma coisinha, uma das coisas que mais admiro em seu país, conhecendo todas as adversidades humanísticas que enfrenta até hoje, é que sempre foi uma democracia desde sua independência. O Brasil nunca foi de verdade, e hoje é menos do que há trinta anos, porque hoje o sujeito pode achar que sua OPINIÃO é ofensiva e encrencar sua vida por anos, em processos judiciais, especialmente se um deus ideológico estiver vagamente inserido na declaração de OPINIÃO. Se há uma coisa que nunca, jamais, sob hipótese alguma se deve fazer, especialmente quando se tem um público cativo, é passar mão na cabeça de uma ditadura.


Nunca mesmo!

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