17/11/2013

A cura era simples


A última vez em que ela esteve em casa, foi há seis anos, quando iniciaram o tratamento. Foi um choque para a família inteira. Brasileiro ainda tem a mentalidade de que as coisas só acontecem com os outros, nunca consigo, por isso reluta em se prevenir.

No início não era grave, não limitava sua vida e não causava dores fortes. O diagnóstico se deu no início e as esperanças de cura eram muito grandes. Foram providenciar os exames no mesmo dia, Aproveitando as férias escolares. Uma semana depois, com exames e uma dieta rigorosa, o tratamento adequado era definido. Até então não houve problemas.

Os problemas começaram quando precisaram iniciar o tratamento em si, muito caro para as posses da família do taxista. Confiaram nas propagandas oficiais e buscaram os hospitais públicos, quando perceberam que o termo "público" não dava garantia alguma de tratamento humano. Foram empurrados com a barriga por meses, com burocracia, informações incompletas, exigências que sequer constavam na legislação, mas sem as quais poderiam levar anos para conseguir o tratamento para a menina.

Memorandos e ofícios prolixos e altamente retóricos, que falavam muito para dizer coisa alguma, enchiam as mesas e facilitavam perder documentos e exames. Gastaram os tubos para providenciar novos, porque a própria ouvidoria exigia o carimbo de uma autoridade responsável para validar a denúncia, ou seja, exigiam que o culpado se declarasse culpado para dar andamento a qualquer coisa. Isso poderia levar anos que não tinham de prazo.

A saúde da menina se deteriorava, enquanto papéis voavam de um lado para o outro, serelepes e insensíveis, ao passo que outros furavam a fila, por questões que nada tinham a ver com a saúde pública.

Em um ano as dores começaram a ficar muito fortes, e a medicação começara a rarear. Quando vinha, não raro estava vencida. Gastaram mais tubos de dinheiro comprando o que seus impostos já pagavam. Quando descobriram que estavam comprando os medicamentos, tiveram o fornecimento cortado.

Enquanto a filha chorava de dor na cama, eles recebiam respostas burocráticas, impessoais e vazias, enquanto uma série de cartazes na parede alardeava as conquistas da saúde pública. Decidiram entrar com uma ação judicial. Entraram e ganharam fácil, mas a todos os lugares a que iam, quando havia médico especialista, não havia equipamentos funcionando.

O homem, desesperado, chegou a pensar em vender o táxi para pagar um tratamento particular, como os que os ministros ganham, em hospitais de ponta, mas o dinheiro não cobriria todo o tratamento e ainda ficaria sem sua ferramenta de trabalho. Com a espera forçada, o agravamento da doença encareceu o tratamento, com isso também dificultou a obtenção de um lugar especializado. Voltaram a entrar com uma ação, exigindo o tratamento adequado onde quer que fosse.

Passaram-se um, dois, três, quatro anos, até que o Supremo Tribunal de Justiça ameaçasse prender o advogado do governo, se tentasse novamente atrasar o processo. Ele sempre dizia que eram só conflitos de interesses, que não tinha nada contra aquelas pessoas, embora soubesse das conseqüências do que estava praticando.

Foi mais um ano de dor e sofrimento, até mais uma ameaça do Supremo fazer o processo da menina andar. Infelizmente as esperanças de cura já eram remotas. O alento é que a então adolescente, já podia se mexer sem que isso lhe custasse urros de dor, ela já podia se alimentar sem chorar.

Novamente os médicos lamentavam, inclusive o que fez o diagnóstico com tanta antecedência, que viu seu trabalho ser jogado às traças. A doença já tinha tomado todo o corpo da garota. Era uma questão de tempo até o pior acontecer. A aparelhagem que a mantinha viva não era muito melhor do que a da rede pública, onde ela a tinha, mas funcionava e tinha gente capacitada para operá-la.

Os anos se passaram com aquele apartamento sendo a residência da garota e de sua mãe, que só voltava para casa para tomar banho e trocar de roupas. Os médicos ficavam boquiabertos com a resistência dela, mas também extremamente revoltados, porque com essa resistência toda, ela certamente estaria curada, se tivesse recebido os cuidados em tempo hábil.

Chegou o dia de levarem a filha de volta para casa. Novamente a desumanidade de autarquias públicas atrapalharam, mas desta vez bem menos, já que o risco de prisão era real. Estavam todos lá, todos. família, amigos, colegas de escola, professores, até o pipoqueiro que sentia falta de sua cliente cativa. Todos, menos ela.

O cortejo fúnebre saiu em silêncio. Nem o baile funk funcionou naquele dia. Nem o carro de som fez anúncios naquele dia. Ninguém entendia direito o que tinha acontecido, ou o que deixara de acontecer, já que estavam todos tão optimistas com a perspectiva do tratamento. Entender o quê?

O sepultamento também foi silente. Silêncio só quebrado por choros e soluços. Só o farfalhar causado pelo vento dava alguma harmonia à sinfonia do luto. Os pais ficaram até a laje de concreto queimado ser posta sobre a sepultura, depois mais algum tempo, um tentando consolar o outro.

Na volta, o caminho parecia maior do que o da ida. A casa, pequena e paga com muito sacrifício, parecia um palacete de tão espaçosa. Só a caixa de correios tinha algum conteúdo. Era um ofício, avisando que a garota tinha perdido direito à medicação, por ter ficado três meses seguidos sem ir buscá-lo.

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