12/11/2013

Day of Grace


No começo era só uma bolinha de carne, linda e rechonchuda como uma boneca de porcelana; só que com todos os efeitos colaterais de um bebê. Fraldas sujas, noites de sono interrompidas, enfim, tudo a que tem direito quem se atreve a ter filhos. Era uma criança rica, mas era uma criança. Nos distantes anos finais da década de 1920, não havia os recursos que atenuam o sofrimentos dos pais de hoje.

Com o crescimento, apesar de toda a família ser prodigiosa na sua estética, a beleza da menina começava a se diferenciar. Claro que no começo, a testa destacada dava um ar de brinquedo à infante, mas o conjunto todo era tão bem harmonizado, que só os mais maldosos se apegavam ao detalhe; Deus, como tem gente maldosa neste mundo de expiações!

Sua infelicidade foi ter nascido fisicamente frágil, em uma família que prezava o porte atlético. Nunca teve um corpo forte, mas em matéria de personalidade, colocava todos os parentes no chinelo. Às vezes era difícil conviver com ela, especialmente quando se convencia de que estava certa, o que era muito freqüente. Era do tipo "Ame-a ou só admire de uma distância segura". Mas seu coração era descomunal, algo que simplesmente não se atribuía à aristocracia da época. Isso rendeu brigas.

Conforme crescia sua beleza transbordava, tão abundante quanto incômoda. Sabe aquela técnica de chamar a amiga menos arrumadinha para sair, e assim parecer mais atraente, por comparação? Com ela não funcionava. Até descabelada a moça era linda de morrer! E ela, filha da aristocracia, dominava bem as técnicas de realçar a beleza e a presença. Só saía com ela quem não se importava em parecer feia.

Era uma verdadeira princesa, para o bem e pra o mal. E como uma princesa, muito panaca que se achava príncipe queria desposá-la, para trancá-la em casa e sustentá-la em seus caprichos e devaneios feminilescos, para sua exclusiva e perpétua admiração. Para muitas moças da época, isso ainda era um sonho de consumo. Para a maioria isso já soava anacrônico. Para ela era um pedido de eutanásia.

Ela brigou. Como brigou! Brigou com o pai, com a mãe, os irmãos, os de fora que metiam o bedelho, mas principalmente com os patetas que acreditaram ser homens o bastante para dominá-la e conquistar seu coração. Para ela, isto era a personificação da futilidade instituída! Era inteligente e sensata o suficiente para escolher ela mesma o seu marido, não queria casamento arranjado. Ela tinha os pés no chão, bem firmes, sabia que seu pai era humano e poderia estar errado. Para ela, estar errado era simplesmente não concordar consigo.

Na toada que se seguia, saiu de cassa assim que fez dezoito anos. As amigas riam, as companheiras aplaudiam. Estas desejavam toda sorte do mundo, aquelas diziam que quebraria a cara por estar acostumada com luxo e conveniências. A decisão estava tomada, ela iria tomar as rédeas de sua vida, mesmo que para isso tivesse que sair de casa. Lá foi ela para Nova Iorque, usar de sua beleza estonteante para ganhar a vida como modelo.

Sim, houve época em que ser modelo demandava beleza, ser exótico e ter cara de doente terminal não garantia uma vaga. E ela era do tipo que ofuscava todos ao redor, não só por seu rosto que parecia ter sido copiado de um anjo, mas pela postura e pela classe que trazia de berço. Afinal, algo de bom a família lhe deu, mas estava sendo usado da forma como não queriam que usasse.

Ela namorou. Foi dona de seu nariz e de seu destino. Rapidamente conquistou o cinema. Ainda que tivesse feito filmes ruins, o público iria às salas de cinema só para se encantar com ela. Os que fez se tornaram clássicos, e todos eles têm a faculdade de realçar e valorizar sua beleza épica. caprichosa e detalhista, estudava com afinco o trabalho que iria fazer.

E ela continuou namorando, mas namorando quem quisesse mesmo. Sua preferência era por homens mais velhos. Não a ponto que precisar ser enfermeira, mas a maturidade lhe atraía. Na discrição de uma dama, alguns dos maiores astros do cinema tiveram repouso em seus braços. Os galãs másculos e viris do cinema se amoleciam completamente diante de seu sorriso dos toques de seus braços delicados. A família tinha que dar o braço a torcer, ela estava certa.

Mas nem tudo eram flores em seu caminho. Na realidade, os lutos eram freqüentes, muitas vezes por causas violentas. Passou ela a ser o norte da família. Aliás, da família e de boa parte do mundo. Seu prestígio era tamanho, que a moda dos anos cinqüenta foi praticamente feita para ela. Aqueles cortes e proporções exuberantes eram praticamente a sua versão têxtil. Não é à toa que tanta gente ame a moda cinqüentista.

Certa feita, viajando a trabalho, a estrela de primeira grandeza aportou em um pequeno principado. O príncipe regente, conta-se que premeditadamente, quis conhecer o elenco do filme. Sua fama de conquistador era notória, tão notória quanto a urgência em providenciar um herdeiro. Mas esbarrou no gênio que se escondia debaixo daquela cabeleira loura. Ele parece ter gostado do chega-pra-lá diplomático, talvez fosse a primeira vez que isso lhe acontecia.

Com insistência e admitir quem é que manda, ele conseguiu o coração da diva. Incontáveis pretendentes o tornaram o homem mais odiado de sua época. Seria só ela concluir o que já tinha começado e se casariam. Como bônus, no último filme, ela provou que também teria se dado bem como cantora; na época não havia softwares para fazer taqüaras rachadas parecerem boas vozes.

A família dele olhava com desconfiança, aquela que consideravam uma aventureira querendo mandar no principado. E deram-lhe problemas por algum tempo. Com todos os contras, e com a família finalmente admitindo "Você estava certa, Grace, em tudo", ela evoluiu de uma estrela magna para Sua Sereníssima Alteza Princesa Grace de Mônaco. E as amigas dizendo que ninguém iria querer uma esposa mandona!

Pois a mandona mandou mesmo! Mulher inteligente, detalhista, começou a colocar laxativo na água da limpeza pública. Fez, com isso, inimigos poderosos. Gente histérica alardeava o apocalipse para o principado e tudo mais, mas aconteceu justamente o contrário. O casamento por amor se mostrou também o melhor negócio da vida do príncipe. O turismo simplesmente explodiu, desde que  tinha se casado com ela. Já não precisava mesmo das más companhias.

O pomo da discórdia eram os três rebentos. A família dele queria que fossem mimados e estragados, como era de praxe acreditar que se fizesse com nobres. Ela não, ela lutou para conseguir seu espaço e queria que com os filhos também fosse assim. Foi isso que minou sua saúde. Oh, Grace! Teu sacrifício foi enorme, mas não foi em vão. Estão todos vivos, bem e dignos.

No auge da crise, quando estava conseguindo contorná-la, decidiu dispensar o Mercedes-Benz e ir ela mesma com a caçula, para dar nós nos pontos feitos. Um glamouroso Rolls Royce Corniche, talvez? Não. A princesa austera, que não se envergonhava de repetir roupas e comprara a luta da amiga Audrey Hepburn, tinha um pacato Rover 2000, carro de classe média.

Indo para casa, já conseguindo se reconciliar com a filha rebelde, que hoje também trabalha para se manter, o fio de prata começava a esgotar, Mestra Nada a esperava na curva. Já era hora de o mundo cada vez mais mesquinho e desprezível deixar de sugar sua beleza, ainda estonteante, mesmo com a idade madura e os problemas de saúde. O carro foi para baixo, Grace de Mônaco foi para o céu. E hoje ela faz oitenta e três anos, porque a morte é reservada apenas aos perversos.

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