24/03/2014

A árvore e o abismo


   Era uma árvore sem grandes atrativos estéticos. Suas folhas mal se desenvolviam completamente, seus galhos eram tortos, as flores escassas e seus frutos, tão medíocres que só os insetos e pássaros se interessavam por eles. Em qualquer outro lugar, teria sido derrubada há muito tempo, para das lugar a uma muda que desse uma árvore de porte, talvez uma frondosa e produtiva macieira. Mas lá ela estava longe da lâmina de qualquer machado.

   Estava em um lugar tão inóspito e perigoso que, que ironia, estava segura. O vento com freqüência a castigava com rajadas que derrubariam um homem forte para a morte certa. A chuva, quando caía, era uma verdadeira tempestade. No inverno a neve a deixava praticamente morta, resistia porque as profundezas aonde suas raízes tinham ido, estavam suficientemente distantes para manter a água líquida. No restante do ano o sol inclemente atacava com fervor a sua casca grossa e contundente.

   Ninguém sabia ao certo que árvore seria aquela, tampouco já tinha provado de seus frutinhos deformados, só que deviam ser nutritivos, pois não sobrava um. A localização era o empecilho para os aventureiros de plantão. A árvore parecia estar sempre prestes a despencar do abismo sobre o qual estava inclinada. As pedras ao ser redor não inspiravam confiança, o caminho até lá era muito estreito e escorregadio, especialmente com as intempéries a ameaçar os pretendentes.

   Como ninguém sabia que árvore era e que frutos produzia, também ninguém sabia como ainda estava lá. A situação era muito assustadora, vários animais terrestres já tinham despencado e se despedaçado durante a queda, sabe-se lá se todos morreram antes de sentirem sua carne rasgada e ossos sendo triturados pelo despenhadeiro. uma morte horrível demais para uma época tão remota e desprovida de recursos permitir alguém se arriscar.

   A própria árvore não sabia direito por que estava lá até então. Suas fibras eram rasgadas com freqüência, mal tendo sido repostas e reforçadas, após o último castigo climático. Seu dilema era mais profundo do que simplesmente estar inclinada àquele abismo, isso não a assustava. A assustava não ter noção de quanto tempo isso ainda duraria. Suas raízes, instintivamente, por conta dos rigores, tinham se aprofundado tanto, que já tomavam praticamente toda a montanha com suas fibras tenazes, absorvendo os poucos nutrientes que cada canto lhe permitia.

   A árvore não sabia mais se ainda era uma árvore de verdade, tamanha dificuldade para sobreviver e tamanha demora em morrer. Suas raízes estavam tão profundas e disseminadas, que às vezes acreditava ser uma pedra com photossíntese, uma parte da montanha que dava frutos feios e descascava de vez em quando. Não estava claro, na verdade, se ela era parte da montanha ou a montanha já tinha se tornado parte dela, pois as mesmas raízes já tinham evitado um milhar ou mais de deslizamentos que a teriam desfigurado. Terremotos que já derrubaram outros apêndices de outras montanhas, vários deles, não conseguiram sequer mover uma de suas rochas grandes. estavam todas entrelaçadas pela rede viva das raízes, que buscando água e nutrientes, empacotou a montanha inteira.

   Não sabia há quanto tempo estava lá, a montanha não fornecia um calendário, sabia que já tinha visto muitas árvores nascerem, crescerem bonitas e morrerem naturalmente. Deveria ser muito, mas muito velha. Velha e triste. Nenhum inseto, nenhuma ave ficava lá, nenhum ninho jamais foi feito em seus galhos robustos. nem poderia, o vento mandaria os ovos para sabe-se lá quantos quilômetros de queda. Tantos raios já tiraram espessas lascas de sua casca tosca, que não sabia mais se algum ponto do tronco ainda era original.

   Não bastasse a solidão, ainda lhe doíam os castigos climáticos. Não era por não se queixar que estaria confortável, pelo contrário, a dor da existência lhe tolhia até a capacidade de gritar. Não sabia como ainda estava viva, não sabia nem mesmo como raios uma semente foi mandada pra tão alto e como brotou em terreno tão inóspito. Sabia que se tivesse olhos, não haveria prantos suficientes para aliviar seu sofrimento naquele apêndice que, por ironia, era ela mesma que mantinha firme na montanha... Se é que ainda podia se considerar algo à parte daquele acidente geográfico.

   Após tanto tempo, talvez já devesse estar anestesiada, tão embrutecida quanto sua aparência, mas não estava. Por mais que precisasse recompor suas fibras rompidas, elas nunca perdiam a sensibilidade. Por mais que as folhas voltassem a brotar, mesmo tortas, elas sempre eram delicadas. Por mais que as flores miudinhas voltassem a exibir sua beleza incompreendida, sempre eram delicadas. por mais frutos estranhos e deformados que desse, sempre lhe doíam as bicadas das aves que se alimentavam deles.

   Às vezes tinha vontade de se jogar e se despedaçar naquele despenhadeiro, para acabar com seu sofrimento. Os pensamentos suicidas, em verdade, eram recorrentes. mas era só uma árvore, não podia nem mesmo escolher para que lado crescer. Nos pensamentos mais tresloucados, que cogitavam a hipótese de poder se mover de alguma forma, lhe vinha o raciocínio de que não poderia cair, porque já estava no chão. Suas raízes eram tão profundas, que já quase chegavam à base da montanha. A montanha que, em última instância, era apenas um recheio rochoso de seu corpo fibroso, tão vasta era a rede de suas raízes.

   Estava presa à vida. Seu sucesso biológico inaparente, que ironia, lhe tolhia do único desejo que realmente tinha, que era o de dar cabo daquele sofrimento. Tanto não podia escolher para onde crescer, que cresceu para dentro e para baixo. Formou uma base que seria a redenção de qualquer árvore, em situações normais, mas a sua situação estava longe de ser normal, muito menos desejável. Mas assim como não escolheu onde brotar e para onde crescer, também não lhe cabia decidir a hora de ser extinta. Em uma análise mais profunda, a árvore sempre acabava concluindo que ela mesma era o abismo.

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