07/03/2014

Um caso de amor entre duas décadas



    
Jeanne in 1982 from Wikimedia
   
   Foi uma década longa, muito longa, como este texto. Como já disse antes, uma década costuma durar, na realidade, uns quatro ou cinco anos, no máximo, porque os anteriores são resquícios da anterior e os seguintes o anúncio da próxima. Não os atrevidos e bipolares anos oitenta.

   Começaram de facto por volta de 1982, lá pelos idos de Maio, e terminaram por volta de 1993 ou 1994. Sim, caríssimos, os anos oitenta por excelência, canibalizaram os noventa, que só começariam próximos à sua segunda metade, espremendo o século XXI até por volta de meados de 2002. Os mais atentos perceberão que houve uma mudança brusca nesta época, com extremas direita e esquerda se digladiando e hostilizando quem estava no meio, gente que quer viajar nas asas do avião e hostiliza quem entra na fuselagem. Claro, há exceções, gente que se diz de extrema alguma coisa e acaba se revelando mais civilizada do que a maioria dos que se dizem de centro, mas são como quem troca as marchas sem precisar de embrenhagem, tão raras que não entram nas estatísticas.

1982 Panasonic
   Voltando ao catatau, a morte dos anos setenta se deu quando perdemos em poucos anos, uma penca de ícones do século XX. Começou em 1977, com a perda de Elvis, depois em 1980 com a de Lennon, e foi cruél em dobro em 1982, quando perdemos Grace de Mônaco e Karen Carpenter; fora as perdas nacionais, como Elis Regina e Clara Nunes. Foram, na verdade, uns cinco anos de não-década, um limbo em que o mundo mergulhou no pessimismo, para depois se tornar bipolar como nunca na história.

   Dos setenta, os oitenta herdaram alguns gostos excêntricos por coisas repaginadas dos anos trinta e quarenta, moda jovem na época, como réplicas de carros então antigos com mecânica Volkswagen a ar, que rapidamente inspiraram photographias irreverentes com as roupas da vovó. O que era para ser brincadeira, virou moda. O Filme Grease ainda era exibido em alguns cinemas e começava a ser exibido na televisão, e a garotada oitentista viu que seus pais eram tão loucos quanto eles, talvez até mais, se divertiam e caçavam encrenca com e por muito menos recursos do que eles.

   Pode-se dizer que foi a fronteira que marcou o caso de amor impossível entre os anos oitenta e os cinqüenta. Arredores dos quarenta e sessenta pegaram carona. Os filmes que trataram dessa época proliferaram, sendo o mais famoso o De Volta Para o Futuro, que colocou um De Lorean, feito em aço inoxidável escovado, como uma máquina do tempo que volta aos anos dourados com um jovem, que conhece seus pais antes de eles atarem namoro e, bem, eu não vou contar o filme. Quem não viu, asseguro que vale à pena. A ambientação é excelente, o figurino beira o impecável e o racismo que já estava ganhando a pecha de estupidez, foi escancarado em uma das melhores cenas. Aliás, cena épica, que sozinha valeria o filme todo.

   Outro filme, que não voltou no tempo, mas trouxe elementos cinqüentistas fortes, foi Curtindo a Vida Adoidado, que trouxe de volta um tipo de travessura juvenil que os jovens já não praticavam mais; então a
Princess Diana Life Magazine 1984
onda era ser contracultura e depredar para dizer que não gosta do sistema, mas depois morria à míngua porque o orelhão estava quebrado e não tinha celular na época para pedir socorro. Bem, a Motorola lançou o primeiro celular comercial no último terço da década, mas era um luxo de fôlego curto, só durava vinte minutos antes da recarga. Ok, voltando ao foco, a indumentária meio sessentista era muito comportada e bem ajustada para a época dos pós-punks, mas seus manequins eram rebeldes como eles nem imaginavam ser, corroendo o sistema por dentro, em vez de tacar pedra por fora; ainda que um dos três personagens principais tenha se rebelado na marra. Como nos anos cinqüenta e sessenta, o filme aborda de forma muito divertida e lúdica os conflitos de família, os efeitos de um pai opressor na personalidade de um filho e o momento em que ele decide enfrentar o papis. Esse filme deveria ser obrigatório nas escolas, juro mesmo!

   Outro filme que tratou com fidelidade os anos cinqüenta é Dirt Dance, que ilustra com perfeição a típica e superprotetora família americana média da época, inclusive um pai que tentava com todas as suas fibras ser durão e malvado, mas pulou da cama com sua maleta de médico para acudir o malandro que assediava sua filha inocente; tudo na cabeça dele, é claro. Músicas, danças, o baile, o comportamento, as roupas, tudo foi feito com uma seriedade que inspirou os filmes temáticos seguintes, inclusive o icônico e já clássico A Vida em Preto e Branco. Ambos provavelmente feitos por quem viveu a época.

   Os três filmes se tornaram clássicos cultuados pelos nerds e simples fãs do cinema, e encorajaram a mistureba oitentista. Os rabos-de-cavalo, que estavam em desuso em favor de um visual “natural”, como se o ser humano tivesse um mínimo de naturalidade, voltaram a enfeitar as cabeças das moças, e de alguns moços, não raro guarnecidos por mangas bufantes no caso delas. Em paralelo, a volta de cores vibrantes estacionou na maquiagem, ou seja, do colo para cima as mulheres se tornaram reproduções da juventude de suas mães ou avós. Era uma mistura de retrô e contemporâneo que teve seus exageros, mas foi muito legal!

Computer Triunph-Adler 2000 from1986 by Triunph-Adler
    
   Os artistas não se fizeram de rogados e começaram a misturar saias rodadas com blusões de couro, camisetas estampadas com calças folgadas bem quarentistas, em alguns casos chegando a exageros que marcaram a década, como os ternos no melhor estilo “o defunto era mais gordo”. O chapéu, que tinha entrado em decadência também, tornou-se um adorno jovem, se sobrepondo a paletós abertos sobre camisas berrantes e calças hiper largas, sempre de cós alto, e tênis no melhor estilo “chamada para o circo”. Oras, eram jovens, eles não tinham que ser formais e comedidos fora do local de trabalho, que nem sempre era comedido e formal.

   E por falar nas estampas, as preferidas eram as reproduções de quadrinhos e personagens dos anos quarenta ao sessenta, com preferência pelos dos anos cinqüenta. Ficou comum o cidadão ler a camisa do outro, para passar o tempo dentro do metrô. Moda, diga-se de passagem, que voltou e fixou residência.

   As estampas geométricas assimétricas em cores fortes, as linhas progressistas multicoloridas, os neons e as estampas de bolinhas, voltaram como cenários de programas de televisão, aos poucos migrando para as roupas, a maquiagem, óculos e, meu Deus, até às guloseimas. Foi quando refrigerantes com cores radioativas começaram a cair no gosto do público, felizmente despencando rapidamente dele, mas os artigos de higiene pessoal os mantiveram.

Licensing party 1988 by Wikimedia
   Com uma tecnologia que não existia trinta anos antes, além da rápida popularização do computador doméstico e o advento da copiadora coloria, a pop art ganhou um impulso sem precedentes, sempre remetendo aos coloridos anos cinqüenta. Capas de caderno, disco e revista ganharam uma riqueza artística que nós infelizmente esquecemos e perdemos no tempo. Foi quando os fanzines proliferaram como nunca, com copiadoras aos montes oferecendo bons serviços a preços convidativos, lançando assim muitos de nossos talentos quadrinhistas, como Laerte Coutinho; hoje uma dama muito elegante.

   Mas as mazelas dos anos cinqüenta também estavam emergindo. Vendo as mulheres poderosas e intimidadoras que a década projetava, como os anos cinqüenta fizeram com maestria, muitos homens começavam a apregoar a volta da mulher ao lar, como se algum dia ela o tivesse abandonado; machão abandonando a família por um rabo de saia, ah, isso sempre foi abundante. Alguns chegavam a justificar a violência para esse fim, indo ao extremo de afirmar que apanhar era o verdadeiro direito da mulher... Nojo.
Cena de Quero Ser Grande de 1988

   O racismo também eclodiu novamente, com ele os grupos anti racistas, alguns até racistas reversos, por mais bizarro que pareça. Enquanto o cidadão comum se coloria e queria ver gente coloria por perto, os doentes mentais chegaram a dizer que Deus fez o homem branco e todo o resto era obra do capeta. Ei, eu estava lá, eu vi isso acontecer! Vi, ouvi e quase vomitei. Não sei se está nos seus livros oficiais de história, mas está no livro da minha.

   A xenophobia também reapareceu. A despeito do que os cientistas de verdade diziam, grupos passaram a culpar os estrangeiros pela perda de empregos que eles não queriam aceitar; ou seja, queriam que as vagas estivessem lá, mas não admitiam que fossem preenchidas, muito menos por imigrantes de países pobres. E quem não é imigrante, neste planeta, se todos viemos da África?

1990s Image from Lifestyle
   Bem, tudo isso, nos anos oitenta, soava ridículo. Há quem condene o racismo camuflado do Brasil, mas não conheço um que queira que ele seja exposto e praticado, como ocorre lá fora. Como nos anos cinqüenta, só cafajestes tratavam suas esposas daquela forma, é mito que todos os maridos fossem amos e senhores de seu lar, a maioria aceitava os pitacos da consorte, porque ninguém é de ferro. Os ataques aos estrangeiros eram vistos como barbárie, as pessoas estavam cientes de que elas mesmas podiam se ver obrigadas a emigrar, e não gostariam de ser maltratadas nos países de destino.

   De alguma forma, os erros cinqüentistas serviram de instrumento contra a reincidência. Isso há três décadas, hoje é aceitável escolher um inimigo, ignorar tudo o que a ciência disser de bom a respeito dele e ignorar a lição do bom samaritano, mesmo que o alvo não represente ameaça real.

A bipolaridade dos anos oitenta era uma cópia repaginada da depressão dos anos cinqüenta. Como assim? Eu explico, dois pontos:


  •                       Os anos cinqüenta tinham a guerra ainda fresquinha na memória, muita gente ainda chorava lutos de então. As armas nucleares já eram uma realidade e as pessoas se esforçavam para acreditar que não se voltariam contra elas. Os oitenta, por seu lado, viviam o auge da corrida armamentista. O filme The Day After mostrou sem romances as conseqüências de uma provável guerra nuclear, e os cientistas pioraram as coisas, dizendo que a realidade seria muito pior do que a mostrada no filme. Vivíamos com medo que um dos lunáticos das superpotências apertasse o botão, e acreditem, isso esteve prestes a acontecer VÁRIAS VEZES;
  •                         Paralelo a isso, foi a década mais eufórica da história, dotada de um grau de esperança sem precedentes. Tudo estava ficando muito bom e muito barato muito depressa, as pessoas dormiram nos anos quarenta com a casa só mobiliada, e acordaram nos cinqüenta com ela repleta de aparelhos eléctricos e brinquedos que se moviam sozinhos, foi um deslumbre. Os anos oitenta podem ser considerados os últimos dotados de esperança própria, as pessoas estavam novamente eufóricas, desta vez com mesclas de desespero. Também houve um avanço tecnológico sem precedentes, com aparelhos portáteis minúsculos e potentes, câmeras de alta qualidade que podiam ser levadas na mão, além de as pessoas terem esquecido da crise do petróleo que, oi, já está voltando. As próximas reservas relevantes só ficam prontas daqui a dois bilhões de anos;
  •                         Não se iludam, o sexo rolava solto nos anos cinqüenta, só não era mostrado de forma explícita. O sonho de casar virgem de véu e grinalda nem sempre era realizado, e nem sempre era realmente desejado, às vezes nem pelo noivo. Algumas conversas sinceras e reservadas com parentes extirparam esse mito de meus arquivos. Os oitenta esculhambaram de vez, com todo mundo com medo de morrer virgem, como nos cinqüenta, e novamente estavam lá as vendedoras de virgindade, pregando o que nem sempre praticavam. Sim, houve um “retorno de valores” entre aspas mesmo, porque debaixo das saias longas do segundo terço da década, as coisas continuavam acontecendo, e não foi pelos valores, foi pelo medo da aids, que não deixou de avançar por isso, já que o marido não aceitava usar camisinha e infectava a anta que aceitava os caprichos dele. Sim, leitori, uma coisa é ler o que a imprensa fala, outra completamente diferente é ver in loco, o que ela arquivou para não estragar a manchete, e não perder patrocínio;
  •                         As divas negras atravessaram incólumes a década de ouro, arrastando multidões para seus shows viscerais, suas vozes diamantinas e suas interpretações pra lá de cordiais. Era uma coisa de louco, ouvir Ella Fitzgerald cantar suas desilusões e sonhos abortados, o público pagava para sair do teatro chorando, e pagava com gosto. Nos anos oitenta foi o ressurgimento delas, as novas divas, o que começou com Annie Lennox e sua rebelde resignação sonora, seguida anos depois por pérolas como a meteórica Emy Winehouse, que amou demais e morreu por essa obsessão, e a glamourosa Adele, a alma que canta. Novamente as pessoas pagam e acham barato pagar para sair chorando do espetáculo;


   As coisas nunca foram douradas como pareciam, havia pedaços descascados que pintaram de amarelo ouro e deixavam menos visível. Da mesma forma, os anos oitenta não foram paradisíacos, porque o consumo de drogas que a ansiedade motorizou, explodiu. Tampouco foram a porcaria que seus detratores apregoam. Bem ou mal, elas injetaram um optimismo de tal forma duradouro nas pessoas, que pode ter sido a única coisa que evitou um suicídio global. Porque, como nos anos setenta, estamos enfrentando uma era de egoísmo e depressão sem precedentes na história, as pessoas passaram a buscar sexo compulsivamente, se servindo umas das outras em um vampirismo mútuo. A coisa ficou tão feia, que já tem imbecil defendendo em rede, o estupro de mulheres que não se enquadrem nos seus padrões, e a volta da escravidão negra. O saudosismo não nasce do nada, em momento algum e de nenhum lugar, ele tem seus motivos e sua utilidade, como a manutenção da sanidade mental coletiva.
1992 Image from Style My Pretty Living

   A estética cinqüentista, que muita gente chama de opressiva e foi repaginada nos anos oitenta, era um culto ao corpo perfeito, com musculatura tonificada e proporções elegantes. É claro que sempre tem idiotas para estragar uma boa intenção, o apelo da geração saúde teve duas sombras, a anorexia e a vigorexia, só que na época eram tratadas como doenças, hoje são apregoadas e incentivadas por formadores de opinião. Para contra-atacar esse radicalismo, veio outro, a população mundial está deixando de morrer de fome para morrer por doenças decorrentes da obesidade mórbida, e novamente tem imbecil formador de opinião defendendo essa forma lenta de suicídio, como um direito individual sobre o corpo; mas vai ver se respeitam o outro extremo, ou mesmo os moderados, vai! O tal ataque preventivo tornou-se meio de comunicação, e quem não participa é chamado de "bundão". Ah, tem um visigodo batendo à porta, atenda, antes que ele a derrube.

1994 Claudia Schiffer Vogue by Le fashion Blog
   Os anos oitenta foram a década em que a cultura retrô e vintage se consolidou e começou a crescer. Divas clássicas voltaram a ser consumidas e algumas delas ainda estavam vivas, como Audrey Hepburn e Elizabeth Taylor. Filmes clássicos, já sem espaço na maioria dos cinemas, se beneficiaram da popularização do videocassete e fizeram a alegria dos adultos, que eram crianças ou jovens quando eles foram lançados. A adesão das crianças não foi imediata, mas logo seus corações rebeldes amoleceram e os clássicos ganharam novos fãs. A internet começava a se transformar em um meio de comunicação de massas, nos Estados Unidos pelo menos, e a troca de arquivos pessoais ganhou um impulso inédito, ajudando a preservar informações de época.

  Em resumo, para isto não virar uma enciclopédia Barsa, os anos oitenta pegaram uma década que estava caindo no esquecimento, cuidou de reanimá-la e se apaixonou perdidamente por ela, tornando-se sua descendente por direito. As pessoas de então fizeram dos anos cinqüenta e oitenta o que eles foram, é essa a grande e abissal diferença. Com essa riqueza toda para se juntar à que uma década normalmente produz, os anos oitenta tiveram várias fases próprias e distintas das décadas vizinhas, tanto que invadiu a seguinte, por falta de espaço. E a de noventa, nós já sabemos, trouxeram uma depressão sem precedentes, com fanatismo dogmopático e muitas igrejas festejando o fim do mundo, que se daria na virada do século, porque só eles seriam aceitos no céu, todo o resto da humanidade amargaria a morte eterna... Que época horrorosa é esta!

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