04/04/2014

Memórias de uma gente


    Foi uma despedida melancólica. Em alguns havia a esperança de finalmente poder dormir em paz, pelo menos à noite, sem trânsito pesado e carros tocando porcaria no último volume. Para outros a tristeza estava estampada na cara, por terem que deixar um bairro onde décadas de suas vidas aconteceram de forma até bucólica. Em todos a frustração de ver um bairro aconchegante se tornar hostil em poucos anos.

    Chegaram mesmo a acreditar que poderiam e seria bom viverem o resto de suas vidas por lá. Que talvez até pudessem ver mais uma ou duas gerações crescerem naquelas ruas. Só o que queriam era fixar raízes e ter uma tradição para repassar. Não deu. O prefeito fez misérias com aquele bairro, apoiado na omissão de seus correligionários, que aos anteriores apontavam seus dedos e exigiam cassação por muito menos.

    Quando chegaram lá, estavam cercados de vizinhos por todos os lados. Era um bairro bucólico, com movimentação grande apenas na avenida principal, negócios pequenos predominando nas outras ruas, quase totalmente tomadas por residências.

    Era possível atravessar até a avenida principal, com o devido cuidado, sem riscos sérios de atropelamento. Isso não era saudosismo cego, eles atravessaram todas aquelas avenidas e ruas, nos tempos em que o bairro era dirigido aos seus habitantes. Sacoleiros vinham de fora para se abastecer nos atacadistas, mas estes eram apenas um dos muitos tipos de comércio local.

    Mesmo quem conhecia poucos vizinhos, conhecia muita gente. Conhecia e freqüentava suas casas, quando havia casas. Mesmo os vizinhos mais socialmente distantes, de vez em quando davam as caras e conversavam com os outros, todo mundo sentado em cadeiras à porta de casa, à noite. Ainda se podia ficar na calçada à noite, com o portão escancarado. Não faz tanto tempo.

    Ir até os extremos do bairro, mesmo alto da noite, para comprar alguma coisa, era relativamente seguro. Faz pouco tempo, eles ainda se lembram da época. Longe de ser abastada e dourada, era uma época de residência viável, quando não se precisava dizer que morava entre a zona e a boca de fumo.

    Havendo população, havia demanda, também assim havia um comércio de secos e molhados para suprir essa demanda. Era muito fácil sair de casa e encopntrar rapidamente onde comprar um pacote de bolachas, um saquinho de biscoitos ou mesmo suprimentos para um jantar de emergência, sem precisar atravessar a avenida principal; mas especialmente, sem precisar sair do bairro, ele supria todas as necessidades de seus moradores.

    Mesmo sem jamais ter sido prestigiado pela prefeitura, era um lugar agradável para se viver. As linhas de ônibus, por exemplo, eram das melhores, mesmo não sendo um bairro nobre. Eram muitas linhas, que raramente lotavam. Como o trânsito tinha viés para civilidade, os ônibus iram rapidamente de um extremo ao outro da avenida principal. Compensava mesmo deixar o carro em casa, se fosse sair sozinho.

    Não foi de uma vez. A deterioração começou devagar, com a prefeitura permitindo obras grandes onde não deveriam ser construídas, obstruindo o trabalho da secretaria de meio ambiente, permitindo carros de som que eram proibidos no bairro, enfim. Em poucos anos a vida começou a ficar difícil, o bairro sendo jogado aos cuidados do acaso e os marginais se aproveitando disso.

    A ausência do Estado é pior do que a miséria, ela fabrica miséria e fomenta a violência. Foi assim que o pior prefeito da história tornou aquele bairro quase inabitável. Com o acúmulo de ações meramente burocráticas e desdém, tudo o que ele tinha de bom ficou na memória. Tudo o que ele poderia oferecer aos moradores, se foi com eles para outros bairros.

    Sem pequenos comércios, com obras grandes entulhando as calçadas, com caminhões gigantescos atrapalhando o trânsito, com marginais passando com o som automotivo no último volume a todo momento, com o horário do rush se estendendo por horas antes e após o que era habitual, com a infraestrutura recebendo maquiagens vagabundas para disfarçar a deterioração, com o asfalto desaparecendo, com o serviço de ônibus se tornando um dos piores do país, com o bairro sendo destinado a sacoleiros que não têm compromisso algum com a cidade... Não dava mais.

    Eles colocaram o que lhes restava no caminhão e foram embora, esperando que o mesmo não aconteça com o outro bairro.

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