22/03/2013

A finesse nossa de cada dia - generalidades

Confundidos, e tratados por muitos como frescura, os bons modos são negligenciados por gerações que se apegaram à superficialidade e ao efêmero, sem se darem ao trabalho de saber os motivos de sua existência. Talvez seja mesmo difícil cobrar isso de quem é efêmero e superficial em tudo o que almeja.

Vamos aos dois países ocidentais mais reconhecidos pela boa educação de seus respectivos cidadãos. Bem, na realidade essa boa educação tem muito de mito. França e Inglaterra são vistas como referências de finesse e sofisticação, especialmente por quem tem o hábito de fazer comparações entre o Brasil e outros países. Não é mentira, mas também não é de todo verdade.

O francês é visto pelos outros europeus como mau-humorado e intolerante com quem não domina seu idioma. É tido por alguns como anti higiênico, especialmente o parisiense, que tem o hábito de comprar pão e levá-lo debaixo do braço para casa, nem sempre embrulhado. A fama de pervertido é muito mitológica, mas tem algum fundamento.

O inglês é taxado sem dó de hipócrita. Tem uma certa polidez que não esconde a agressividade de seus ancestrais.  Piadas de mau gosto, humor negro, ironias ferinas, arrogância à flor da pele e outros mais, são aspectos que fazem muitos europeus reconhecerem os britânicos em uma descrição. Fora a conhecida belicosidade que os americanos herdaram deles.

Well, mes amis, vocês vão me perguntar que diabos então torna esses dois países tão admirados, se são tão escrotos? Eu respondo: Porque nós também somos, não menos e sem um décimo da maturidade civilizatória deles. França e Inglaterra deram os moldes da sociedade ocidental pós idade média. Tudo o que nossos países são, devem a eles, gostem ou não.

Acontece que essas duas nações não ganharam a admiração dos mais bem instruídos à toa. De quando ambos viviam sob o comando do mesmo trono, podemos dizer que são parentes na marra, com similaridades que um não admite ter em comum com o outro, mas me permitem falar de ambos ao mesmo tempo.

Mesmo com essa fama toda, francos e bretões têm regras muito claras e rigidamente observadas de convivência. Elas permitem que inimigos mortais se sentem à mesma mesa, sem o risco de se engalfinharem no meio do jantar. Sabem aquelas cenas exageradas dos filmes de James Bond à mesa do vilão? É um exagero sim, mas tem um fundo muito forte de verdade.

São regras muito arraigadas, que eles seguem desde pequeninos, às vezes na marra, o que cria muitos episódios do brutal humor britânico. Por essas regras, o mais abrutalhado herói de guerra consegue conviver com jovens civis, que ajudou a impedir que precisassem virar alvos de artilharia. Muitos de vocês são ávidos pesquisadores e sabem o quanto esse choque de experiências pode ser combustível.

O que a finesse tem a ver com isso? Dear friends, a finesse é o conjunto dessas regras de convivência. O que ela fez pelos nossos amigos, foi ajudar a controlar sua índole. Embora muita gente faça uso superficial das regras de etiqueta, elas ajudaram os dois países a controlarem sua força e sua tendência destrutiva.

Explico, mon ami. Sabe aquela propaganda de pneu que diz "Potência sem controle não é nada"? Ela diz a pura verdade. As regrinhas chatas de finesse têm o mesmo efeito das artes marciais, condicionando o praticante a controlar sua força. Isso, aliás, está claro no tipo de utensílios utilizados no aprendizado; louças finas, porcelanas delicadas, vidraria cara, e similares.

Quando quebrar uma xícara significa ter um prejuízo grande, naturalmente dispensa-se mais cuidado no seu manuseio. É mais ou menos como acelerar as conseqüências da vida, fazendo o indivíduo ver de imediato no que dá o seu descontrole emocional, seu desajeito, sua arrogância ou seja lá o que se precisar trabalhar.

A hora do chá, herdada de chineses, indianos e japoneses, é uma das ferramentas comportamentais mais poderosas. A função desse ritual não é empanturrar, até porque as quantidades são pequenas, grandes refeições têm hora para acontecer, no máximo num piquenique.

O rito que envolve o serviço do chá ensina e condiciona o cidadão que tudo tem sua hora e sua ordem de acontecimento, em resumo, ensina disciplina social. Por isso, aliás, as casas de chá não costumam cobrar barato, mesmo as mais simples. Aquilo não é um restaurante, é uma academia. Seus freqüentadores têm necessariamente que deixar a ansiedade e o estresse do lado de fora, por isso muitas proíbem o uso do celular em seus recintos.

Por isso muitos jovens repudiam e tacham de hipocrisia, certos rituais sociais, porque não aprenderam a ter paciência e foco, não aprendendo a ler nas entrelinhas e reconhecer a utilidade do que lhes precedeu. E deixar o celular desligado, para a maioria deles, é um sacrilégio. Mas seria garantia de levar um pontapé dos freqüentadores de uma casa de chá.

Esses ritos são também um meio de se fugir do mundo, sem precisar virar zumbi toxicômano. É um modo de se ter algo sob algum controle. Pode parecer pouco, mas é um momento em que o cidadão se torna dono de uma parte de sua vida. Questão de saúde mental, entendem?

O hábito de se apreciar obras de arte, cuja imitação cega acabou gerando estereótipos de alto grau vexatório, tanto do público quanto dos "artistas", é um exercício de finesse. A apreciação de uma obra de arte, como nas regras de etiqueta, consiste em saber interpretar e ler as entrelinhas. Um artista de verdade sabe propiciar isso. Um apreciador bem educado sabe reconhecer um artista de verdade, por isso muitas vezes parece ser arrogante... Às vezes é mesmo.

Eu, por exemplo, aprendi a apreciar automóveis antigos. Embora goste do conjunto em geral, contrario um pouco o status quo, prefiro os carros familiares, quando o mais comum é se admirar os esportivos. Faz parte. Não se deve fingir que gosta do que a maioria gosta, isso sim é hipocrisia. Pessoas realmente finas sabem reconhecer um hipócrita e sempre o deixam pensando que é bem-vindo, quando na verdade o isolam educadamente.

O que não significa que não perdem a calma. Quando perdem, é de uma vez, mas isso nunca acontece sem muitos avisos de que se está ultrapassando limites. As dicas são claras, mas infelizmente a idiotice crônica que tomou o mundo, deixou a maioria insensível a elas. A lida habitual com a delicadeza treina o quando, quanto, onde e até quando usar a força.

Com o tempo, e a incorporação do hábito, a pessoa passa automaticamente a se limitar ao seu espaço, até estranhando quando vê duas pessoas sozinhas tomando toda a largura de uma calçada. Sabe que violar a regra do espaço alheio é estar às portas de uma agressão desnecessária. E quem diria que isso seria aprendido tomando chá? Pois foi.

Os latinos, mais despachados e sem o contacto com o extremo oriente que os ingleses tiveram, praticamente não aprenderam isso. Questão de oportunidade perdida... E de jamais terem corrido atrás do prejuízo. Deixo claro que regras de etiqueta não te tornam uma pessoa melhor, mas te ajudam a ser. Não preciso dizer que uma população mais refinada não vota em qualquer um, por isso brasileiro é tão estimulado a ser grosseiro.

A irritação de nossos amigos com quem fala alto demais, tem um fundo sólido de pragmatismo. Eles gostam de ouvir suas próprias vozes e a de seus interlocutores, sem que precisem contar para todos no ambiente o que estão conversando. Questão de privacidade, não gostam mesmo de saber que o fulano da mesa lá longe, pode ter escutado detalhes de uma conversa reservada. Nos negócios e na vida íntima, sigilo é ouro.

Não sei se preciso falar de bons modos á mesa... Talvez precise dar uma passada rápida. O facto de tu gostares do que comes, não significa que os outros sejam obrigados a saber o que estás comendo, seja vendo ou ouvindo a mastigação. Tem mais, quem come aos poucos, come menos, sente melhor o sabor do alimento e consegue manter a boca fechada. Falar com a boca cheia  atrapalha a dicção, causa mal entendidos, enfim, teus pais não te repreendiam à toa.

À parte as conseqüências nefastas de interesses egoicos, como ambições e conspirações de família, a finesse não tolhe a espontaneidade de uma pessoa, só lhe dá o controle dela. É como mandar o cavalo para um bom adestrador, ele compreenderá muito melhor o que o cocheiro deseja, e reconhecerá melhor os perigos da estrada. Ele continua correndo e saltitando, quando em descanso, continua copulando, continua comendo, vivendo sua vida, só que leva a carruagem com muito mais eficiência.

Eu poderia escrever um livro a respeito, que ainda assim não abrangeria toda a utilidade pessoal e social da finesse, mas não da frescura. Mas creio que o que temos aqui já atiça suas cabecinhas bem intencionadas. Então, um ou dois torrões?

Um comentário:

Anônimo disse...

Precisei ler todo texto com paciência para entender. Não faço o "tipo finesse" mas entendi o recado. Belo texto!