28/11/2009

Coitadinhos culturais

É uma época triste esta em que vivemos. Aparentemente tudo está mais barato, fácil e rápido, talvez por isto mesmo seja triste.


Enquanto criticam contradições e preconceitos de décadas anteriores, as pessoas criam novos sob as vestes de "resgate histórico". Não falarei dos sistemas de cotas, que têm o prodígio de legalizar o que a ciência e os magos negam: a existência de raças humanas; e ainda transformar em assistido quem teria condições de lutar por si mesmo, se os métodos fossem mesmo o da justiça. Também não falarei das inúmeras bolsas oficiais, cujo uso meramente político está transformando membros de um povo tradicionalmente trabalhador em indigentes, que se recusam categoricamente a aprender uma profissão para se tornarem independentes da ajuda. Também deixarei para outra ocasião a contradição que permite a uma criança sob plena pressão hormonal votar em pleitos federais, mas a impede de aprender uma profissão e arcar com suas faltas, ainda que na medida de sua compreensão. Da desastrosa maneira como a educação está sendo desmontada já falei e voltarei a falar em momentos oportunos, no plural mesmo.

Trato hoje da cultura nacional de massas. O Brasil já foi celeiro de valor inestimável no campo musical, hoje é uma tragédia continental de artistas inexpressivos, que precisam de apelações baixas para alçarem vôo. Não falo da apologia à promiscuidade e ao banditismo que ditos estilos de cunho pretensamente popular imprimem, isto é tão notório quanto tolerado pelos pais e divulgado pela televisão. A tragédia vem justo de nossa moribunda MPB, que já rivalizou com a liberdade da POP Music em plena ditadura. Eram tempos muito difíceis, quando o próprio governo estimulava o gosto pelo estrangeirismo. Os brasileiros contavam tostões enquanto Bee Gees emplacavam sucessos seguidos com o apoio do cinema. Mesmo assim faziam sucesso, criavam músicas históricas. Roberto Carlos homenageou Caetano Veloso, então exilado, em plena vigência do AI-5, com uma música que se tornou uma jóia cultural, não só pelo valor histórico.

Me pergunto se não foi justo a grande dificuldade, o fertilizante de obras-primas que os incompetentes de hoje são incapazes de reproduzir, mesmo com softwares de correção vocal, inexistentes à época. As imensas dificuldades obrigavam o artista a perseverar, conquistar não só o púbico jovem, mas também quem pagava suas contas. Os pais podiam até não gostar, mas tinham que dar o braço a torcer para o nível das canções. E mesmo os generais davam o braço a torcer. Era necessário colocar a mão na massa, panfletar, conseguir um público local, convencer uma rádio a tocar a fita cassete. Na época não havia como gravar algo no computador e divulgar o demonstrativo pela internet. Não havia internet e computadores ainda eram cousas de Estados e grandes corporações. Era necessário convencer a gravadora a fazer a matriz para imprimir, a quente, as músicas em um disco de vinil maior que algumas rodas de automóvel. Era extremamente difícil, não bastava ter dinheiro.

Havia as aberrações de apelo pubiano que conseguiam mais rápido, mas não mais fácil. Hoje se pode gravar em casa e vender os álbuns no show; na época, se alguém dissesse isto, viraria piada no "Viva o Gordo".

Eu não saberia dizer o nome de um só grupo em evidência, mas sei o quão ruim ele é. Eu ouço, aliás, na marra, pois a mesma facilidade para se gravar se estende aos quilowatts de som que se coloca em um automóvel com poucos quilowatts de potência mecânica. Sei o que se faz hoje e que não há papel higiênico suficiente para limpar tudo.

Músicos com tendências regionalistas reclamam da falta de apoio estatal, que seus antecessores nunca tiveram; da concorrência de mídias estrangeiras, que seus antecessores enfrentavam sem choramingar; do desinteresse do público, que seus antecessores venceram com bravura. A maioria dos músicos ditos intelectuais toca como se a platéia fosse formada por centenas de seus clones, de modo que só eles mesmos possam compreender. Estão apelando à memória como se o público fosse um computador.

Algo que os antigos músicos aprenderam (e alguns deles se esqueceram) é que o público é fisgado pelo coração. A intelectualidade funciona até certo ponto, mesmo nos povos mais frios, se a obra não despertar alguma emoção ela desaparece como surgiu.

A proliferação de rótulos cretinos, como "sertanejo universitário", (só para citar uma praga da minha região) não melhorou a qualidade. São artistas inexpressivos que ganham evidência por algum  tempo, são facilmente confundidos com outros productos do supermercado phonográphico e geralmente voltam a tocar para pequenas platéias, com algumas excessõ. Isto quando tratamos de gente que começou a cantar de baixo, os que já começam como arrasa-quarteirões (embora alguns durem) simplesmente desaparecem, graças à Deus.

Mas nenhuma categoria se compara aos que se dizem representantes de "guetos", de parcelas excluídas da população, et cétera. Já nem leio o que se fala a respeito deles, já me cansei dos discursos pseudomarxistas, das posturas pseudomarxistas e dos protestos pseudomarxistas.

Quando se metem a resgatar culturas ancestrais (indígenas e caboclas, no meu caso) agem como se o público tivesse obrigação de compreender e aceitar o que cantam. Em Goiás já é rotina gente aproveitar recursos públicos para fazer troça de músicas folclóricas e antigas cantigas de roda, fazer o lançamento em eventos cheio de "personalidades da sociedade" (contradição elitista) e contar com espaços quase que de cotas nos jornais. No dia seguinte reclamam que não foram indicados para o Emmy Latino. Vocês, de outros Estados, com certeza não os conhecem. Vão à igreja mais próxima e acendam uma vela em agradecimento por isso.

Asseguro que no começo eu apoiava, acreditando ingenuamente na legitimidade e utilidade cultural do "movimento". Mas foi ingenuidade mesmo, quase tudo o que saiu é muito ruim, em nada devendo às bandinhas aborrescentes dos Estados Unidos.

Relendo o texto, notei um certo humor cinico que eu não pretendia passar, mas ficará assim mesmo. A questão é séria porque a falta de boas obras faz o público aceitar qualquer lixo que aparecer. Estou elaborando uma idéia de um texto sobre música francesa, cuja nova safra ofusca facilmente o bando de estrelas preguiçosas que temos no Brasil de hoje. Publicarei assim que estiver pronto, com links e ilustrações condizentes. provavelmente terei que dividir em dois textos, mas valerá à pena.

Podem me chamar de "pelego", de "nazista", dizer que eu não tenho diploma e por isto não poderia tratar de assuntos assim, será inócuo. Sei o que o Brasil tem de bom, e música não se inclui neste rolo, com raras excessões. Porque música é feita por músicos, não por partidos políticos. Entendam esta passagem como quiserem.

21/11/2009

Aos Bons Amigos

Aos bons amigos informo que não estou morto. Afirmo que respiro, me movo e locomovo. Que não vertam prantos por um óbito meramente conceitual, de foro íntimo e circunscrito à minha pessoa, nada mais. Deve-se perecer em algum aspecto para que algo melhor nasça, ou, pelo menos, para que o restante sobreviva.

Minhas lamúrias, bons amigos, não se resumem aos devaneios abatidos pelas balas do tempo, posto que não tiveram o alimento imprescindível dos resultados mínimos, assim tendo o vôo limitado às altitudes mais próximas. Alvos fáceis da rudeza cotidiana e sua mira perfeita. O vôo sem destino nem pouso é letal mesmo para os albatrozes, que dirá um beija-flor mínimo e adoecido.

Afirmo bons amigos, que se me abate o desânimo do peso a vergar a coluna e ferir os ombros, continuo a caminhar em
passos largos. Não me convém ceder à dor e ao cansaço; não tenho tempo para eles. O tempo, aliás, nunca foi um companheiro amistoso. Lépido e jocoso quando um bom momento se anuncia, mas de uma indolência letárgica quando da despedida. Esta a se delongar até o horizonte nu.

Afirmo bons amigos, que a vida ainda não mostrou a que veio, ou à que vim. Os anos precoces que me feriram a face se precaveram; Pollyanna jaz natimorta. Nem seu suspiro me foi dado ouvir. Mas caminho ainda assim, parar não é escolha, mas desta abdicar. As traças temporais e os cupins da enfermidade espreitam os exauridos para se apoderarem de seus meios, tão logo parem para repousar. Só se repousa em vera acepção no desenlace, se houver méritos.

Afirmo bons amigos, que a angústia de ainda viver não me tolhe o sorriso, mas me custa cada vez mais ofertá-lo. Os músculos do rosto doem, eles encontram na sisudez seu estado de repouso. É no cenho contraído que este rosto oleoso preserva suas energias. Não me cobrem, pois, peço-vos, demonstrar a alegria de que não sou munido, aquela que eu demonstro é um mero e embaçado reflexo da que vocês me emprestam.

A
melancolia que me toma agora não é intrusa, ela é parte de mim, de minha natureza, de minha visão de mundo, das impressões que tenho da vida. Não será ela que me levará aos umbrais mais escuros, pelo contrário, a prefiro à euforia cega que é a única alternativa. Se ambas dilapidam minha saúde, a primeira me permite refletir e evitar perdas maiores. Se melancólico, uma faca na mão é apenas uma faca, não uma arma.

Não,
bons amigos, não é uma carta de despedida. Tampouco darei cabo de uma vida que me apresentaram à força. É a expressão de alguém que tem a firme convicção de terem sido bons tempos os que se distanciam. Não que sejam realmente bons tempos, talvez o sejam e eu não tenha percebido. São tempos em que eu ainda tinha esperanças de que fossem bons, e que o porvir seria melhor. Decerto que por imensa teimosia de minha parte, não vi que o caminho contrário é o que sigo. Não por meu arbítrio, mas por ser o único que me coube receber, o outro não serve em meus pés.

O arbítrio, bons amigos, não é uma opinião que se emite sem maiores conseqüências. Nem sempre me é permitido fazê-lo, e ao fazê-lo as podas ágeis que me tolhem a liberdade agem. Eu poderia, decerto, reagir e quebrar as tenazes que me prendem e dificultam a respiração, mas para tanto teria que abrir mão do caráter que tanto esmero me custou. O perderia sem ter o que lhe valha, nem mesmo metade.
A tempestade, bons amigos, é mais segura do que a calmaria falsa que me ofertam de tempos em tempos, que permite aos aduladores saltarem sobre suas vítimas. Os ventos fortes que castigam minha nau os mantêm em suas respectivas embarcações, e estas a uma distância segura. Já me acostumei à tempestade e talvez não me adapte à bonança. Já tenho cristalizada a condição de alerta, minha condição natural é a de sentido. Admito, todavia, que não é uma condição confortável, desaconselho aos aventureiros. A vida que levo não perdoa indisciplinas e não mede punições, aplicadas com vontade.

Não é por prazer, bons amigos, é por compromisso que vivo. Vivo por obrigação. O prazer me atiçou a curiosidade na juventude, mas hoje o vejo com desdém, um artigo supérfulo que não almejo e não faz parte da minha vida.
Se lhes parece árida a paisagem que descrevo, é nela, com ou sem pesares, que posso crescer e em nenhuma outra. Os jardins irrigados me encheriam de fungos e apodreceriam minhas raízes. Já não me acostumo à amenidade e não a tolero por tempo prolongado.

Mas não é, bons amigos, ruim a vida por compromisso, tampouco muito boa. É a que tenho, a de que disponho e da qual não posso abdicar senão quando findar sua missão. Admiro as cores que este mundo já não tem, os sons que já não emite e os aromas que minhas narinas ainda hoje saberiam identificar, se também não tivessem cedido lugar à fútil fantasia dos que exibem agressividade como status. Mas de tudo isto também só tenho lembranças brumosas, pois o usufruto foi uma vontade não concedida. Os molhos, o queijo e a pimenta não acompanham meu fusilli escuro.

Embora dividamos o mesmo planeta, meu
mundo é outro. As paisagens glaciais de vez em quando apresentam alguma tundra. Desperdiçar recursos tem um preço elevado, pois a reposição é penosa. Não há vidros em minhas janelas, de modo que só posso visualizar o horizonte abrindo-as ou saindo de meu abrigo, mas só enquanto o vento gélido não me compromete a sobrevida. O sol jamais se levanta mais que um quarto de céu, neste meu mundo; isto no alto verão. No inverno o lábaro de ébano me propicia o espetáculo da aurora boreal, quando as temperaturas me permitem abrir as janelas e pôr os olhos ao céu.

Afirmo bons amigos, que a cíclica depressão que me acua já não assusta, a exposição excessiva e continuada a tornou impotente à minha presença, embora ela continue existindo e trabalhando. Estou acostumado a conviver com ela e sua família, trabalhando sob seus efeitos. Estou acostumado a trabalhar muito para pouquíssimo (por vezes nenhum) resultado, foi como aprendi a perseverar. A abundância também não está em meu portfólio. Na aridez de sentimentos e emoções sempre densos, aprendi a viver com o mínimo. Indisponho-me sempre que excedo esta cota.

Afirmo bons amigos, que a solidão resultante desta equação mórbida não é de toda ruim. É uma forja que me aquece até quase a liquefação, para então me golpear sem piedade e mergulhar minha lâmina em salmoura fria. O resultado é o que se espera de um bom aço, para o bem e para o mal. Reconheço que feri e firo seres amados no intuito ingênuo de resguardá-los. Mas asseguro que actos e palavras que emanam de mim, antes a mim ferem e a mim por último cicatrizam. Nisto me refugio em minha solidão inaparente e inacessível à maioria, onde as penitências e a piedade divina me curam o espírito.

Afirmo bons amigos, que não se trata de uma vida dura. É uma vida de privações, algumas voluntárias. É uma vida. Só serve para mim e para ninguém mais, e só ela me serve. Não se tira perenemente de um quartel o oficial que nele habitou a vida inteira, ele não se adapta à frouxidão de regras que apraz os civis. Salvo saídas esporádicas para breves incursões, a loucura de uma nostalgia patológica o acometeria rapidamente. Do mesmo modo que um profissional liberal convicto não se adapta à rigidez de regras e horários.


Afirmo bons amigos, por fim, que a nostalgia germinada de minha melancólica personalidade não me corrói. É um ácido concentrado para o qual me adaptei imediatamente, e sem o qual adoeceria em poucos dias. É deste ácido, não da água ou do ar, que tiro o oxigênio que sustenta minha permanência neste orbe. Não foi desta (talvez na próxima) vez que redundei em um terrestre pleno e bem resolvido. Talvez a terrestria não seja, ainda, a minha identidade, mas terá que ser a partir de algum momento. Aquilo, pois, que lhes envenenaria e lhes parece ser tão triste, bons amigos, é só o que eu tenho para me manter vivo.

14/11/2009

Crônica de Lambretta

Era uma Lambretinha comum, do tipo que até há dez anos era comprada com o troco da padaria, mas hoje vale o mesmo que uma motocicleta pequena. A moça viajava de carona, sentada de lado, sem medo de se queimar no escapamento, nem de se ferir com os raios da roda traseira. Primeiro porque a roda, bem pequena, está oculta sob o veículo; segundo porque o escapamento, bem curto, está oculto sob o veículo.

Interessante que pouca gente se dava conta da cena. A moça de beleza singela, nos seus joviais trinta e poucos anos, usava um longo vestido branco rodado. O rapaz também estava a caráter, mas da mesma forma que se ignora o noivo em um casamento, também estava o meu grupo interessado na figura da moça.


Não era uma beleza extraordinária, mas estava extraordinariamente bela com os cabelos presos por um laço, sapatos delicados e pose que uma motocicleta não permitiria.
Talvez por estar ciente das limitações de sua condução, o rapaz não respondia à provocação de um garotão em uma motocicleta de entrega, que acelerava insistentemente. Bastou a moça fazer cara de nojo e ele acelerou, furou o sinal, deixando o casal em paz. Mas onde está um guarda de trânsito numa hora dessas?


O vento moderado lhe balançava a saia do vestido e as
anáguas. Uma senhora que parecia querer atravessar o vidro do supermercado, se mostrava admirada com o facto de ela usar anáguas. Pareciam brumas a esconder um tesouro secreto, de um tempo em que era um tesouro secreto. A menina ao seu lado, talvez sua neta, achava "uma gracinha", mas não deu tom de que dispensaria suas calças ultra baixas, não enquanto suas amigas estivessem olhando. Eu nem sabia que ainda se vendiam anáguas!

A cena me lembrou algumas passagens de
Roman Roliday. Mas foi um delírio saudosista. Audrey é que era mulher de verdade. Provavelmente aquela moça era, pelo menos, fã do trabalho da diva, se parecia com ela. A Lambretta começou a pipocar mais frenética e saiu com o sinal verde. A saia balançando, as anáguas esvoaçando como um rastro de névoa e todo mundo voltando às compras.

Felizmente existem dvds em supermercados.

08/11/2009

Compre menos


Compre melhor. Não gaste cem reais em mil cousinhas que logo sumirão pela casa, pelas ruas e da tua memória. Gaste cem reais em algumas poucas que farão a diferença, que chamarão a tua atenção cada vez que passar por ela, que terão lugar cativo na casa e todos na vizinhança, se virem, saberão de quem são.


Não compre por impulso algo que deverá durar mais do que um ano. Na verdade nem chocolate barato se deveria comprar por impulso. Na verdade não se deveria comprar chocolate barato, eles pouco têm de cacau e costumam dar diarréia. Em vez de uma caixa cheia de caramelos achocolatados vendidos como chocolate, compre dois ou três bombons mais finos. O próprio preço vai induzir à degustação e ao máximo aproveitamento do acepipe, desenvolvendo paralelamente a boa educação e a paciência, que andam tão escassas em nossa era. Para mastigar só por ansiedade, compre um pedaço de cana, dura bem mais e te injeta a dose de açúcares adequados para acalmar o cérebro.


Não encha a casa com productos feitos por mão-de-obra escrava de presos políticos, não vão durar e logo terão que ser trocados. Compre poucos com carcaças espessas, botões bem ajustados, display ordeiro e manual do proprietário de fácil leitura.


Não vá às lanchonetes ruins, se entupir de massas estranhas e gorduras hidrogenadas que só Deus sabe como foram manuseadas. Vão de vez em quando a boas pizzarias, bons restaurantes, onde se pode comer com calma, escolher com um cardápio totalmente escrito no nosso idioma. Além da segurança sanitária (e dos sanitários) os custos individualmente maiores tornarão a refeição um programa, te farão esperar pela próxima ida e de cada uma delas ter uma boa experiência para contar.


Não compre móveis de quem só tem preço para oferecer. O artigo até pode durar algum tempo, mas não se sabe sob que condições seus custos foram reduzidos. Compre aos poucos os móveis de que necessita, com paciência, sem demonstrar interesse na compra. Deixe que o vendedor te convença a levá-los (o que os "preço-é-tudo" da vida não se importam em fazer) e explicar as vantagens daquela madeira, daquele aço, daquele acrílico resistente, do vidro grosso, daquele desenho. A expressão "móveis de família" não é um adereço, é um valor do qual a maioria das nossas famílias carece. É recurso que poderá ser utilizado para outros fins, como planejar a aposentadoria.

Não vá a toda festinha paga e regada a álcool e sabe-se lá mais o quê. São absolutamente todas iguais em sua falta de conteúdo e segurança. Organize os interessados e arrecade verba para uma festa a cada seis meses, da qual todos possam sair sem medo de serem perseguidos por um psicótico que não foi com a sua cara, no salão de dança. Se aproveita muito melhor pelo engajamento coletivo, pelo custo, pelo envolvimento pessoal com o evento.

Não compre dezenas de publicações medíocres. Além da baixíssima qualidade editorial, o material usado em suas delgadas edições é pouco pior que o papel-jornal. Seus "editores" pouco fazem mais que usar "control+C" e "control+V" para colocar comentários sob protographias, pois textos não há. Compre poucas revistas, mas compre as bem acabadas, com matérias inteiras, imagens originais e material que permite o manuseio despreocupado. Deixarão de ser meios de entretenimento para serem material de pesquisa, no futuro.

Evite ao máximo comprar descartáveis. A praticidade aparente estimula a indolência, que cobrará um preço muito alto, especialmente das crianças. Compre utensílios de matéria-prima nobre, são fáceis de limpar e estimulam a boa disposição, que renderá bons juros especialmente para as crianças.

Consumir melhor é vantajoso para todos, exceto para os desonestos. As empresas vendem menos, mas vendem por mais productos mais aperfeiçoados e que demandam mais mão de obra, mais controle de qualidade, que sustentará um bom valor de revenda por muitos anos. A durabilidade expõe o objecto a falhas e acidentes, reerguendo o combalido ramo de assistência técnica, que ultimamente só tem servido para trocar peças, jogando fora as defeituosas. Peças que são projectadas para acelerar a montagem, mas cujos desenhos geralmente tornam o conserto mais caro do que a reposição.

Consumir melhor dá muito mais trabalho para a publicidade, que precisa se armar de argumentações consistentes e deixar a apelação para segundo plano. Fica difícil colocar uma modelo de biquíni, em pose agressiva, no comercial de um producto para um público consciente. Para vender seria então preciso mostrar o que interessa, respeitar a inteligência do consumidor e ter algo realmente interessante para vender.

Compre menos, mas compre melhor. Desde vendedores mais calmos e atenciosos, passando pela maior distribuição de renda, esta prática também tem resultados de foro íntimo. A ansiedade e o temor da defasagem são cortados pela raiz, as crianças se acostumam com a decoração da casa e passam a não ver tudo como descartável, o macacão sujo de graxa passa a ter a importância que lhe cabe e seu usuário fica mais bem visto. No fim das contas, até a natureza ganha, pois a mineradora pode ser melhor remunerada pelo minério a menos que extrai.

Nunca é demais lembrar, quem compra melhor também vota melhor.

02/11/2009

Respeite seus funcionários

Motivos? Eis alguns:

  • Seus funcionários são pessoas, não maquinários. Ao contrário destes, eles se aperfeiçoam com o tempo e serão de grande utilidade no treinamento dos novatos. Poupa-se dinheiro e prejuízos de confiar o aprendizado a empresas terceirizadas, esta que nem sempre têm mais que compromisso financeiro com a sua empresa. Acabou o dinheiro, eles podem muito bem passar para o concorrente o que puderam descobrir de vocês. Um bom funcionário veste a camisa da empresa que o trata com dignidade, que lhe paga o quanto pode, ampara quando necessita e incentiva o aperfeiçoamento, tanto social quanto profissional. Não sei se a faculdade de administração lhe disse, mas um funcionário feliz é o melhor vendedor que existe;

  • A onda do "politicamente correcto", antes de ser deturpada e fazer com que todos tenham medo de si mesmos, trouxe às massas consumidoras o interesse por quem lhes presta o serviço. É muito fácil fazer imagens sonorizadas sem ser percebido, há até canetas que gravam mais de uma hora de vídeo com boa qualidade, existem sítios internéticos gratuitos para hospedagens dessas gravações. Muito antes que vocês consigam uma liminar para a exclusão do material, este já terá corrido o mundo. Mesmo que o vídeo seja tirado do ar, o autor pode repassá-lo por e-mail para quem quiser. Então entram o Ministério do Trabalho, os sindicatos (por mais pelegos que sejam) aproveitarão para arrancar-lhes o couro e os veículos de comunicação, antes calados pelos anúncios, terão todo o prazer em botar a boca no trombone e exibir o material que porventura tiverem;

  • A concorrência está de olho nos seus melhores funcionários. Volks e Ford tomaram os melhores engenheiros de uma concorrente que, por ética, não direi quem é. A grande maneira que eles encontraram foi localizar uma insatisfação e oferecer condições de eliminá-la. Funcionário feliz não troca de empresa, mesmo que o salário oferecido seja maior. Funcionário infeliz se sente previamente traído, então não esita em pular a cerca e juntar trapinhos com outra empresa. No que ele desabafa para o Departamento de Recursos Humanos, descobrem pontos fracos que a sua empresa conseguia ocultar. Por exemplo: Há um impasse financeiro, por algum motivo sua empresa precisa de financiamento e está negociando com os bancos, mas mantém a pose na base da publicidade; O simples relato de alterações no cotidiano fará o concorrente descobrir o problema, então vai investir pesado na ampliação de sua fatia porque sabem que vocês não têm condições de contraatacar. Quando tiverem, será tarde. Tudo por causa de um ex-funcionário magoado.

  • E por falar em mágoa... Sabe quem é aquela faxineira? É alguém que conhece os corredores da empresa, sabe onde ficam as câmeras e, dependendo do tempo de casa, das falhas de segurança. Sabe quem é quem, quando entra, quando sai, pode levar para terceiros o lixo que aparentemente não tem utilidade. Se ela estiver insatisfeita e for demitida por isso, então vocês saberão o quanto realmente vale o trabalho que ela fazia. Discrição faz parte das atribuições de um bom funcionário, mas raramente vejo uma emrpesa pagar a contento por ela. Se há uma invasão na sede ou uma abordagem aos caminhões, os primeiros suspeitos serão os seguranças e os motoristas, dificilmente o pessoal da limpeza. Não é para subverter a hierarquia da empresa, é simplesmente para não usá-la como divisória e mecanismo de opressão.

Dizem os religiosos que o pior inimigo de uma religião, está sentado assidualmente nos bancos do templo. O mesmo podemos dizer de uma empresa. Não adianta atacar com fogo pesado a concorrência se a estrutura funcional estiver podre. Não é o banco que vai socorrer sua empresa, quando estiver em dificuldades, é o funcionário fiél, se houver um. Eles podem apromorar, sozinhos e sem qualquer investimento, a qualidade dos productos e serviços, mas também podem jogar na lama a boa fama que seus antecessores levaram anos para construir.

Ele vai falar com familiares e amigos para darem preferência aos productos e serviços da empresa que o trata bem, ou da concorrente que prometeu tratamento e salário dignos.

Seus funcionários são o maior patrimônio que vocês podem ter. Não devem ficar alienados dos rumos da empresa. Melhor do que executivos que nunca saem do ar-condicionado, eles conhecem o contentamento e o descontentamento do consumidor, não por estatísticas fajutas que lhes custam fortunas e raramente dão retorno, mas na vida real.

Respeite seus funcionários. Pague-lhes o que puder ser pago. Trate-os como colegas de trabalho e eles saberão retribuir.

25/10/2009

Vista a camisa

Um dos maiores problemas da actualidade é a falta de compromisso. Não aqueles que enchem as agendas, isto são obrigações sociais. Se parecem muito com o compromisso porque usam roupas muito parecidas, às vezes até coincidem.
Mas uma diferença básica pode ser esta: Obrigação social é uma satisfação que se dá ao grupo em proveito próprio, compromisso é uma satisfação que damos a nós mesmos em prol do grupo.

No caso da obrigação, é necessário que a sociedade em questão tome conhecimento do que foi feito, mas tu faz de tudo para não se envolver e ter o mínimo possível de contacto com os problemas correlatos.

Quem assume um compromisso está preocupado é com os resultados, ainda que a sociedade não tome conhecimento do esforço desprendido, e tu se envolves mesmo sabendo te todos os problemas correlatos. E mergulha de cabeça.

Os homens-bomba, por exemplo, seguem uma obrigação social. Apesar de parecer que eles lutam pelo bem de uma causa, eles acreditam que a morte naquelas circunstâncias lhe renderá glória, seja histórica, seja pós-túmulo. Ou seja, fazem por si mesmos e não pelo grupo, como qualquer um que se rende às facilidades egoicas do radicalismo, seja em que área for. Porque é em nome de "Seja-Lá-O-Que-for" que eles fazem o que fazem, então não é nada de pessoal e dá licença que vou explodir seus filhos para minha exaltação.

Assim se formam as gangues de filhinhos-de-papai que, quando alegam defender a honra do grupo, estão é alisando as feridas de seus espíritos enfraquecidos pelo prazer fácil.

Vestir a camisa é, assim, diferente de simplesmente usá-la. Usar um "Garotas Que Dizem Ni" bordado no bolso da camisa, sob um paletó, pode ser uma prova muito maior do que só usar uma camiseta escandalosa em cores berrantes, se recusando a trocá-la ou vestir algo por cima. O primeiro caso está fazendo algo pela causa, o segundo em nome da causa. O primeiro seria capaz de enriquecer para custear aquilo em que as garotas acreditam, o segundo certamente formaria uma gangue para perseguir quem não é do grupo.

As explicações se delongaram muito mais do que eu pretendia, mas acredito que passei meu recado. Vamos à camisa.

Hoje, como em todo último domingo de cada mês, fui photographar um evento de veículos antigos. Pela primeira vez o clube do Fusca faltou, o do Chevette há meses não comparece. Os que teimam em freqüentar (com trema) reclamam da falta dos correligionários e seus carros. O ponto em que todos eles concordam, é o prazer que sentem lidando e falando de seus carros, o ponto em que nem todos concordam é arcar com os compromissos de serem associados a uma entidade legalmente registrada e reconhecida. Em parte há razões, a prefeitura não dá a mínima para eventos culturais que activem partes acima do abdômen, pois não são inerentes ao eleitorado cativo. Hoje o lugar estava cheio de carroças com bancas desmontadas, sujo e os banheiros, bem, eu não aconselho seu uso por mulheres. Esta é a parte em que podemos culpar o poder público.

Pesa contra o corpo de sócios a má vontade, o vício em repetir "meu carro" em vez de "meu clube". Há pessoas que garantem o pão do dia trabalhando nesses eventos. O ambiente proporcionado (apesar dos espíritos de porco que insistem em atrapalhar) é de uma paz e uma camaradagem raras, como das épocas dos veículos expostos, quando se podia dormir apenas fechando as portas, sem cerca electrificada, alarmes ou monitoramento noturno. Mas poderia ser mais. Esse ambiente poderia ser compartilhado com toda a cidade com passeios temáticos, visitas a escolas públicas, creches, simples impressos a respeito dos carros e suas épocas já despertariam interesse. Falta compromisso. Eles não pensam nos efeitos benéficos que o antigomobilismo gera, só no próprio lazer.

Um dos componentes da última crise mundial é justamente a falta de compromisso das directorias para com suas empresas. Vocês sabem que a Ford passou quase ilesa pelo episódio, ao contrário da General Motors. Acontece que a primeira ainda tem o controle da família que a fundou. Quando um Ford vê o emblema da marca, vê literalmente o próprio nome, existe um compromisso que levou a família a não compartilhar da postura depredatória das demais montadoras. Logo, foram os únicos a não dar satisfações para o Obama. Os outros tinham é obrigação de mostrar números, o faziam a qualquer custo, para não perderem seus empregos. Pois os perderam. E hoje vemos que a Daimler-Benz não mentiu ao falar da Chrysler que, como a GM, não tem nem de longe a solidez de seus productos.

Se o presidente de uma companhia não veste sua camisa, quem o fará? Os ex-fãs das duas marcas estão decepcionados, já não existe a fidelidade de outrora.

Em menor escala, mas não menos importante, temos as empresas locais, que são as bases das grandes. O funcionário reclama do salário, mas não faz o menor esforço para que a administração sinta sua falta durante as férias. O director reclama dos funcionários, mas não faz o menor esforço para que eles sintam falta do trabalho durante as férias. Neste círculo vicioso, a empresa se torna só mais uma que não fará diferença quando falir e outra tomar seu lugar.

Aqui cabe falar da melhor pessoa do mundo, a criatura mais íntegra e honesta de que tenho notícias, a amiga por quem eu daria a vida se fosse necessário: Maria Cristina. Ela sim, veste a camisa, o terno, a saia plissada e os sapatos de onde trabalha. Posso dizer, em resumo, que no dia em que o Tribunal de Contas da União baixar lá (porque ainda há de se dar Justiça), ela entrega as chaves e as senhas dos computadores sem medo. Apesar de já ter sido ameaçada por pais-palhos que agem cegamente contra quem menos parece poder se defender, de ter sido perseguida veladamente por questões políticas e não contar com um contingente mínimo em sua equipe, rege magnificamente os setores que comanda. Ex-alunos lá vão apenas para darem um abraço e dizer que a amam. Ela incorpora o espírito da assistência social. Se agisse em causa própria, seria rica, pois é competente, mas age em prol da causa que abraçou. Tira do próprio bolso para manter sua alçada funcionando. Às vezes exagera, mas é por uma causa nobre.

Uma pessoa que assume um compromisso e veste a camisa, tem menos tempo para pensar e fazer besteiras. Aprende rapidamente os limites que sustentam uma vida social saudável.

Ter compromisso com origami leva ao seu estudo, à prática insistente e rapidamente aos valores ligados á arte das dobraduras. Decerto que deve haver um limite, mas qualquer mãe que se preze prefere ver o pimpolho estudando matemática e japonês a caçando encrenca nas ruas, qualquer pai que se preze prefere ver seu pimpolho alicerçando solidamente seu futuro a caçando encrenca nas ruas. Ele será um cidadão útil e feliz, ao contrário dos que louvam bandidos e fazem apologia à prostituição como "cults".

O mesmo vale para desenho, textos, vídeos, música, miniaturismo, et cétera.

Eu estimulo as pessoas a vestirem boas camisas, porque eu visto várias e não ter me tornado o cafajeste que tentaram me tornar é só um dos benefícios. Escolha as suas e vista, se precisar de um estilista amador para desenhá-la, estou às ordens.

17/10/2009

Vila Trabalho

Vila Trabalho é uma cidade serena, mas não uma cidade pacata. Em suas ruas sempre há gente, sempre há movimento. Quem trabalhou até á tarde serviu quem trabalhará até de madrugada, que agora os serve. O trabalho faz parte da vida do trabalhense. Desde criança vê seus pais chegando exaustos do serviço, mas nunca mau-humorados. Chegam aliviados de poderem descansar, não reclamam de terem se cansado. Uma vez em casa, aproveitam a família, os amigos, as tosqueiras do dia a dia que seus rebentos proporcionam.

É comum haver crianças nos locais de trabalho dos pais. É comum que aprendam com eles uma profissão. É regra já terem seu próprio dinheiro aos dez anos, por pouco que seja. Nenhum conselho tutelar pune quem ensina uma profissão a uma criança, puniria quem a deixasse à esmo na rua, mas um trabalhense não faz isto.

As crianças trabalhenses estudam e o estudo é considerado um trabalho. Quem trabalha com crianças, então, recebe adicional. Professores, enfermeiros, psicólogos, babás e assistentes sociais são uma elite. Porque seu trabalho não tem fim, mesmo quando chegam em casa, no fim do expediente, há amigos e vizinhos que aguçam sua índole laborativa.

A expectativa de vida do trabalhense é elevada. Raramente um se aposenta de acordo com a lei, eles preferem trabalhar até onde derem conta. Quando o corpo já não coopera como deveria, a vida útil e productiva lhes deixa de herança uma mente lúcida, que permite o trabalho intelectual. Aos setenta anos ainda fazem planos para o futuro. Não só planos, como estudos e cálculos para viabilizá-los. Todo trabalhense quer deixar à posteridade o que tem de melhor, o bom exemplo. Gente com mais de cem anos ainda trabalhando não é notícia, a não ser para a imprensa de fora. Músculos, ossos e sistema nervoso sabem agradecer por uma vida de trabalho árduo e regrado.

Quando as abelhas trabalhenses vão se divertir, é hora das corujas trabalharem.
Trabalhenses gostam de dançar e cantar. Bailes informais e de gala fazem parte do cotidiano, são verdadeiros pés-de-valsa. Com o apuro que o senso de prioridade lhes lega, sabem identificar uma boa música e um bom intérprete. Nem tudo o que é sucesso aqui fora tem êxito por lá, e vice-versa. Bares e restaurantes nunca estão lotados, mas sempre com boa ocupação. Todos se tratam pelos nomes, cordialmente. O gari que varreu e recolheu folhas, por falta de lixo nas ruas, durante o dia, é o cavalheiro que conduz sua convidada à noite. O trabalho é valorizado, ser útil é bem visto.

Ser mãe é uma missão respeitada e bem remunerada. Quer alguém mais útil à sociedade que uma boa mãe? São autoridades. As meninas aprendem desde cedo os ossos da maternidade, mesmo que não venham ter filhos o conhecimento terá serventia, mas também a não depender dos outros para se manterem. O treinamento começa com a menina ajudando a cuidar de crianças de colo, ainda que seja apenas segurando a mamadeira ou uma fralda, enquanto a mãe ajeita o rebento. Paralelamente isto evita os ciúmes que os recém-chegados consumam suscitar, pois quem ajuda a cuidar também é cuidado e recebe atenção. Embora mais intensivo para elas, os meninos também têm que ajudar, pois mulheres não engravidam por brotamento.

Na Vila Trabalho há poucos chaveiros, pois há pouco mercado para eles. O que fazem é trocar fechaduras danificadas por mau uso, pelo tempo, substituir chaves perdidas. Fechaduras com segredos e toda a parafernália a que nos acostumamos, lá não existem. Onde o trabalho tem o status que por cá damos à malandragem, criminalidade é notícia vinda de fora.

Foram séculos de trabalho para ser o que é hoje. Conspirou a favor o facto de nunca ter despertado interesse de turistas nem de políticos, de estar em lugar de difícil acesso e ter poucos recursos naturais. Vila Trabalho se fez por si mesma, nem sempre teve papel-moeda suficiente, então as transações se davam com base na confiança, que foi cuidadosamente cultivada pelos seus cidadãos.

Não tente procurar Vila Trabalho em reportagens, no máximo vais encontrá-la em trechos da literatura oficial. Pois não desperta interesse político. Seus vereadores têm pouco o que fazer, além de ajudar o prefeito a administrar, pois um povo civilizado e comprometido com a coletividade não precisa de muitas leis, na verdade mais de três quartos delas foram abolidas com o passar dos anos, pois se tornaram supérfulas e obsoletas.

Poucos viajantes não para Vila Trabalho, bem menor ainda é o turismo, pois a única estrada que lhe dá acesso não passa por lá, vai pra lá. Só vai quem realmente quer ir. Mas a cidade não tem as atrações que a maioria julga imprescindível para um bom turismo, e a cidade não as quer.

Os dois únicos jornais diários não têm ligação com os grandes jornais, as três emissoras com freqüência trabalham em conjunto. Dão poucas informações a respeito do lugar e só quando são solicitadas. Mas há trabalhenses estudando e trabalhando pelo mundo e eles servem de correspondentes. É uma situação confortável, é uma cidade invisível que sabe tudo e da qual quase nada se sabe, senão por photographias de satélite e relatos de viajantes, que poucos se importam em ouvir. Nem a criminalidade reinante no país se interessa, pois não há mercado para uso recreativo de entorpecentes.

Recreação em Vila Trabalho é farta, mas não tem anúncios escandalosos, apelativos, nem são excludentes, são para a família toda. Porque foi na família que Vila Trabalho encontrou o gérmen de seu sucesso. E o sucesso de Vila Trabalho está intimamente ligado à discrição do trabalhense. Discrição não dá ibope. Na verdade, eles não diferenciam trabalho de diversão. Só tratam de ter suas pausas regulares ao longo do dia, para não serem traídos por seu amor ao labor.

Como regra de um bom trabalhense, lá se dá o melhor de si o tempo todo, é ponto de honra. Logo a mente do cidadão está alerta e bem calibrada. É natural encontrar um doutor de alguma área em qualquer lugar, crianças falando vários idiomas com naturalidade nacional, às vezes rodinhas discutindo cada um em um idioma, para ajustar melhor os neurônios. A internet foi uma bênção, pois agora eles podem trabalhar para empresas distantes sem sair de sua amada cidade. Mais uma vez eles sabem do mundo que não sabe deles. Levam a sério o que fazem, mas não a vida que levam. Por isto mesmo poucos programas de televisão vindos de fora têm índices significativos de audiência. Por isto mesmo Vila Trabalho permanece em seu lugar, crescendo sem inchar, sem chamar atenção.

Trabalhense que se preze sabe aproveitar a vida sem depredá-la, para tanto, nada melhor que se sentir útil. Trabalhense útil é trabalhense feliz.