06/05/2020

Celebrituber

Obra de Leo Burnett Taylor


Celebrituber 1

        Gente, eu estou muito preocupado com toda essa questão do corona vírus! Ouvi falar que os macacos da Amazônia decidiram se vingar dos caçadores, mas como pra eles gente é tudo igual, decidiram contaminar todo mundo! E isso é culpa nossa, tá! Por causa da nossa destruição da natureza, tá! É a natureza querendo se vingar de nós, porque invadimos e destruímos o meio ambiente dela, tá! Vamos ser mais conscientes, gente! Parem de comprar productos industrializados, porque a indústria destrói a natureza, e a natureza destruída vai se vingar mandando mais vírus e mais poluição pra cima da gente! Eu estou aqui, em um acto de bondade, do meu laptop de última geração repleto de metais pesados e que eu troco de seis em seis meses, para vocês botarem a mão na consciência e pra parar de destruir o meio ambiente! Mas é pra parar tudo agora! Assim que eu publicar esse vídeo eu quero ver o mundo transformado em uma utopia natureba, com leões e tigres se alimentando de brócolis! Os mesmos leões e tigres que estão ameaçados de extinção na Amazônia, por causa da ganância do ser humano! Eu odeio ser humano! O ser humano é a causa de tudo de ruim! Tudo! O dia em que o ser humano sumir, seremos todos felizes e viveremos em harmonia com a natureza.

        Outro dia eu ouvi falar no jornal... Ou foi na internet? Não importa! Importa é que eu vi que já tem mais de sete bilhões de pessoas na Terra! Gente! Como é que pode isso?? Pára tudo que eu quero descer!!!! Tem que acabar com isso! Tem que parar de nascer tanta gente todo ano, senão a natureza não aguenta! Aí ninguém tem espaço pra nada, todo mundo fica relando, esquece de usar camisinha e PÁ! Pega corona vírus! E eu, que não tenho nada com isso, é que sofro quarentada no meu apartamento, sem poder sair nem pra praça, pedindo delivery pra tudo! Hoje mesmo já pedi treze! Inclusive os fast food com três embalagens cada um e um monte de talheres de plástico, mas isso eu jogo fora porque... Gente, sério! Acham mesmo que eu vou comer com garfinho de plástico? Plástico é veneno pra natureza! Eu não compro plástico! Tudo meu é cem por cento natural com grife! Jogo tudo no lixo pro caminhão levar mesmo, porque senão vai poluir a natureza!

        Eu, se eu pudesse eu vivia dentro da natureza, cercada de mata, de bichos, de flores e só ia tomar banho de cachoeira! Porque se é da natureza, gente, só faz bem, né! Até picada de cascavel da natureza faz bem, né! Mas eu não posso, ainda, porque sei que meus seguidores vão curtir, comentar, mandar todo mundo se inscrever e compartilhar esse vídeo, que é pra monetizar e me ajudar a realizar meu sonho de viver no meio da natureza, sem nunca mais precisar de dinheiro e nem de trabalhar! E pra isso tem promoção! Se em meia hora eu conseguir um milhão de inscritos, vou postar um vídeo meu comendo um super combo refeição máster com todos os bonequinhos do final delirium, e tudo ao vivo, na frente de vocês! Então vai lá, aperta o botão que já vou chamar o delivery! Porque se eu sair, vou queimar combustíveis fósseis que destroem a camada de aquecimento do ozônio, é melhor chamar que a comida vem rapisinho, sem nenhuma poluição!

Celebrituber 2

        Galera, aí! Vou fazer um rolê de vovorolla todo fuçado, aí! Vou arrepiar, saca só! Roda aro 25 com pneu perfil 0,5! Sinissssssstro!!!!! Vamo nessa? Demorou, aí! Vamos começar por onde? Ah, pela contramão, claro! Ao vivo! Curte a live e chama a galera pra curtir comigo! Mim deixa ver... ninguém olhando, então não vai ter multa... ENTÃO VAI DE NITRO NA CONTRAMÃO!!!!! UUUUUUUUUUUUUUUHUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!!!!! VAI BUZINAR NA CASA DO CARVALHO, BABACA! AHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!!!!!!!! Otário... Sente só o turbo, galera!!!! Olha só o assovio! Uuuuhuuuuuuuuuu! As placa tá tudo virara pro outro lado, então eu nem sei o que tá escrito, então não tô fazendo nada errado... Mentira, tô sim!!!! Aha, aha, aha, aha!!!!!! Ah, prohas, já tem trânsito pra atrapalhar meu rolê??? Mais não vai mesmo!!!! Vô cortar todo mundo!!!!! Ahahahahahahahahahahahahah!!!!!! Nem sei quê que eles tão gritando, deve tar xingando até a minha bisavó! Aha, aha, aha, aha! Quem para no sinal vermelho é cool de frango, eu sou é fodão!

        Galera, aí! Tô a mais de duzentos numa rua de quarenta por hora! Tô arrepiando! Vô colocar um filtro no celular, quê que cês acha? Vai esse? Não? Esse? Ah, esse aqui sim, realça a minha virilidade! Olha sói, galera, tá tudo ficando pra trás, parecendo um risco! PASSEI UMA CORVETTE!!!!!!! Tô parecendo o Vin Otto do Velozes e Fedegosos! É ou não é? Olha lá a velhinha, ela quer atravessar a rua! Mas eu vô atravessar primeiro! VAI NITROOOOOOO!!!!!!! AHA! AHA! AHA! AHA! Quase atropelei a véia! Deve ter enfardado de susto! Lugar de pedestre é na calçada, vagabundo! Rua é pra gente correr! Que prohas de ambulância o quê, quem vai passar primeiro é eu! Não vai ser um minuto que vai matar quem tá lá dentro! Ah, vai se fudê, fi de quenga!!!! Passei messssmo!!!!!!

        Hein???? Proibido converter à direita? Ué, não sou pastor pra converter ninguém! Vou pra direita! Aha, aha, aha, aha! Tá todo mundo na contramão, só eu que tô certo!!! Aí, galega, arrepiando na live!!!!!! Uuuuuuhuuuuuuuuuuu!!!!!!!!!!!! Acho que vô fazer um drifit naquele queijinho lá, quê que cês acham? Ah, masss vô mesmo!!!!! VAI NITRO!!!!!!!!!!! UUUUUUUUUUUHHHHUUUUUUUUUUUUUUU!!!!!!!!!!!!!! Mais uma volta!!!!! VAI TER QUE MIM ESPERAR TERMINAR, BABACA, DEPOIS CÊS PASSA!!!!! Aha, aha, aha, aha! Olha só! Tem hospital na área! Vô dar um rolê antes de voltar e cumprimentar os parças de lá! Não conheço ninguém mais vô estrear a buzina náutica que instalei! Aha, aha, aha, aha! FUUUUUUUOOOOOOOOOO-HOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNMMMMMMMM!!!!!!!!!! AHA, AHA, AHA, AHA!!!!! Se tinha alguém na cirurgia, morreu!!!!

        Cheguei na minha rua, e na contramão.... Curtiram aí? Vai ter mais! Curte, comenta, se inscreve e compartilha com todo mundo, que eu faço outra live mais sinistra ainda, do que... Que prohas é aquela lá? Polícia no meu prédio??? Nó, essa live tá rendendo!!! Quê que foi... Ei! Me larga! Eu não fiz nada!!!! Me solta! EU SOU CELEBRIDADE!!!!! JÁ FIZ NOVELA.... AI! AIAIAIAIAIAIAIAI!!!!!!! DIREITOS HUMANOS! A DITADURA VOLTOU!!!!!!! MANHÊEEEEEEEEEEE!!!!!!!!!!

Celebrituber 3
        
        Gente, eu estou muito, mas muito preocupada com coisas que estão acontecendo. Por que isso? O que vocês têm na cabeça de dar atenção para pessoas assim??? Estou aqui, na minha banheira de marfim cheia de champanhe em minha cobertura com heliporto, mas eu sei o que está acontecendo aí fora! Eu vejo pessoas saindo à rua!!!!! Ninguém precisa sair pra nada, hoje em dia eles entregam tudo! Que absurdo é esse, nesta época, com essas ameaças???? Eu já postei aqui um zilhão de dicas pra ficar em casa sem entediar! Fiz uma live na minha academia, ver no link acima, pra mostrar que ninguém precisa sair de casa pra ficar sarado! Se não tem todos os aparelhos, não tem problema, só os básicos já bastam!!!!! Meu arquiteto fez pra mim algumas plantas e tutoriais que vou disponibilizar pra vocês de GRAÇA! Assim qualquer um pode chegar ao fim da quarentena em forma, 20m², gente, é muito pouco espaço e você fica em forma!

        Vem comigo! Olha esse jardim suspenso! É coisa simplésima! Qualquer um pode tirar 50m² do quintal e fazer algo assim! Não precisa ser cheio de orquídeas negras, até porque são caras, precisam de climatização externa e sei que nem todo mundo pode ter isso, mas um jardim simples te deixa ocupada o dia inteiro, sem precisar pegar o elevador, sair pela portaria e se arriscar a uma contaminação indo até o jardim do bosque mais próximo! Eu fico aqui de boa, o dia todo, gravando lives e vídeos pra editar, sem precisar colocar meus pés pra fora da cobertura! Olha só que cantinho gostoso, essa espreguiçadeira com guarda-sol e mesinha ao lado de meu laguinho com clores de lótus púrpuras, gente! Tudo tão clean! Tão simples! Isso tira a vontade de sair, fala a verdade! Quando quero algo eu encomendo, pago pela internet mesmo e a portaria do condomínio já descontamina pra mim, quando chega. Ah, vai, qualquer um tem pagamento pela internet hoje! Hello! Século XXI! Todo mundo hoje em dia paga pelo débito, até mendigo recebe por débito! Aliás, eles também deveriam fazer homeworking e pedir esmolas pela internet, se arriscariam menos e arriscariam menos aos outros. Fica a dica.

        Ou se preferir, vai pelo básico mesmo! Todo mundo hoje tem serviço de streaming com tudo o que é entretenimento! Olha só que facilidade! Posso escolher qualquer vídeo, qualquer episódio de qualquer série de qualquer época, qualquer filme já disponível, qualquer programa de televisão e até pegadinhas! E os shows? Ah, nem precisa ser um home theater de 480 canais como o meu, um básico já transforma a sua sala em um cinema! Ou até em uma plateia de show! Tá todo mundo fazendo lives, já tem até patrocínio! Inclusive eu! E então, gente, vocês não precisam sair de casa por um ano inteiro, se precisar! A população inteira pode ficar de quarentena da dura, a gente tem tudo pronto pra consumir, é muito mais prático e seguro pra todo mundo!

        Eu sei que alguns de vocês são mais de uma vibe alternativa, então vem cá! Separei apenas 10m² do meu escritório e fiz um conceito aberto de um atelier de artesanato! Vem comigo! Ali vocês já conhecem o meu home office, todo mundo deveria fazer um desse em casa. Ali, olha que charme mais largadão e desapegado! Ali é o meu atelier, que deveria ser improvisado, mas gostei tanto que agora vai ficar aqui pra sempre! Olha que charme rústico, gente, é coisa super comum, super barata, super simples, que qualquer um pode fazer pra curtir a quarentena! Ó! Já tem coisas prontas aqui. é ou não é bárbaro, gente? Estou preparando vídeos tutoriais pra você fazer mil coisinhas pra se divertir e até quem sabe ganhar algum!

        Então, viram só? A gente tem espaço em casa, tem alternativas isolacionistas de entretenimento, é só querer e meter a cara! Ah, estão me avisando que o meu jantar já foi entregue e já vai subir! Viram? As ruas podem ficar completamente vazias, basta encomendar e mandar entregar, que ninguém mais fica doente! Olha lá, hein, estou confiando em vocês! Não vão me decepcionar!

        Como? Crianças? Que crianças? Ninguém mais tem criança em casa! Que mau gosto!

15/04/2020

Não é o chinês, é o partido



        Caríssimos, venho fazer um apelo que pode soar como, mas não é um discurso enfadonho de politicalha correcta. Faz tempo que ouço que o americano é culpado por não saber o que seu governo faz, como se outros governos não fossem iguais ou piores do que o deles, especialmente os autoritários, e é usando os mesmos peso e medida que peço para não discriminarem o cidadão chinês. O chinês comum, salvo raras exceções,  não sabe o que seu governo faz. Aliás, quase todo o 1,5 bilhão de chineses só sabe o que o pouco mais de um milhão de membros do PCC o deixa saber, e os poucos que sabem algo, também sabem que é melhor para suas vidas que esse milhão não saiba que sabem de algo.

        A época do regime militar que tivemos aqui foi nada, se comparada à repressão explícita e à onipresente propaganda estatal para intimidação popular que o governo chinês impõe ao povo. Se de 1964 a 1984 ainda se viam charges satirizando nossos governos, com os artistas vivos ainda hoje, lá isso pode custar o desaparecimento sumário do autor. Os chineses que teriam espalhado o corona vírus, nada mais teriam sido do que laranjas inocentes, gente que o governo escolheu para sacrificar em prol de seu interesse em um risco calculado, que agora eles sabem não ter sido tão bem calculado assim. De resto, os chineses sempre se mostram altamente receptivos a visitantes, chegam mesmo a nos achar lindos... mau gosto não é coisa só de brasileiro, meus amigos.

        Temos no Brasil casos de empresários imigrantes chineses que tratam muito mal os funcionários e tentam de todo jeito burlar nossas leis, que já não são lá essas coisas. Bem, esses são os chineses que a China nos apresentou, não são os chineses que muita gente conhece espontaneamente e com quem não tem problemas. Esqueça a política de Estado quando for conhecer a pessoa, especialmente quando essa pessoa simplesmente não sabe o que está fazendo, embora possa parecer que sim. Embora, como todo oriental de regra, eles preservem suas tradições, os chineses admiram tudo o que há no ocidente, a ponto de eles preservarem nossa cultura melhor do que nós mesmos. Para eles é um espanto o continente americano ter construído tradições tão bem resolvidas com tão pouco tempo de existência formal, bem como a velocidade com que nossos costumes se transformam.

        O isolamento de séculos que os países do extremo oriente se impuseram produziram culturas que são estranhas entre si até para eles, mas vamos ser francos, quem come intestino recheado com a carne do animal estripado não pode falar muita coisa dos hábitos alimentares deles. Há um problema sanitário que não difere muito do que encontramos em feiras dos rincões brasileiros mais afastados. Além do mais eles estão tentando se melhorar, e é no ocidentalismo que nós mesmos negligenciamos que eles se espelham para isso. A autocrítica nacional que temos aqui, e que saiu do controle, é coisa que eles não conheciam, especialmente os chineses. A ladainha de "nós levamos a guerra a outros povos" simplesmente não encontra eco entre eles, é coisa quase que exclusiva nossa, e usada com moderação tem efeitos quase milagrosos em uma cultura milenar.

        O modo e  velocidade com que aquela imensa região progrediu, foi por terem agido de modo ocidental para gerar esse progresso, adaptando à sua cultura o nosso modo de fazer as coisas. Lição que nós mesmos temos esquecido de modo vergonhoso, a parte boa da China se ergueu e evoluiu graças à nossa cultura de trabalho e vida pessoal, os ocidentais deveriam estar orgulhosos e venerar seus ancestrais como os chineses o fazem, mas não, os tratamos como monstros assassinos e agimos com escárnio se alguém tenta nos lembrar disso; especialmente os ditos "intelectuais". Nós deveríamos é trazer essas pessoas mais para perto, mas não muito enquanto durar a emergência pandêmica, e ocidentalizar ainda mais seus pensamentos, para que se dêem conta de que são eles que sustentam o governo e não o contrário, e assim pararem de ver um partido único e compulsório como um "pai severo".

        Aliás, sabiam que eles adoram carros americanos? Segundo eles, simplesmente não quebram, teriam a qualidade dos alemães de luxo sem custarem as fortunas que eles cobram. O mesmo vale para todo o resto, inclusive para o design em todas as áreas, como a moda e até a culinária. Achinezar modelitos ocidentais é uma arte que eles aprenderam bem, e roupas ocidentais são as preferidas para o cotidiano, em todas as faixas etárias de todas as faixas sócio econômicas. Claro, os exageros existem, algumas pessoas se perdem com o aparente poder repentino,  mas isso é outra história e não difere em nada de nós.

        Não foi pelas trapaças do regime que eles se ergueram, a ponto de hoje exportarem trens-bala, o chinês trabalha arduamente e não tem medo de passar por ridículo. Uma crítica a uma empresa, um produto ou serviço, por cruel que seja o crítico, não é levada para o lado pessoal, é usada como lição e parâmetro para correção de falhas. Vai criticar uma empresa brasileira, vai! Uma vez um motorista quase me bateu por eu ter reclamado do ônibus, que era uma porcaria e não andava nada! E eles têm monopólio de suas linhas!

        Toda a leveza e atenção à beleza que perdemos desde os anos 1970, eles não só preservam como cultivam, tudo ornamentado pelas coisas que receberam de nós. Os chineses não têm medo de parecerem piegas, da mesma forma as chinesas não rejeitam a feminilidade, e nem por isso abrem mão de serem independentes como mulheres realmente modernas. Disso vem a criatividade e a capacidade de adaptação que eles têm. Eles ouvem, eles fabricam o que nós queremos sem firulas, sem burocracias desnecessárias, sem hesitação. Funcionou, fabrica; não funcionou, faça outra coisa. É um pragmatismo que já tivemos e perdemos com o tempo, por isso os orientais nos ultrapassaram com tanta facilidade. Recebê-los bem e trazê-los para o nosso lado é o mais sensato a se fazer, é assim e não apontando o dedo que eles podem repensar alguns aspectos de sua cultura.

        Aliás, apontar o dedo e aceitar ser apontado é outra praga que assola o ocidente. Perdemos a capacidade de dialogar, hoje em dia temos monólogos entre várias pessoas, porque ninguém aceita mais conversar com discordantes. Quando um se aproxima, pode dar briga. Os orientais, pelo contrário, observam, fingem interesse, sorriem, dão tchau e puxam a descarga, sem levar para o lado pessoal.

        Alguns dizem que na China se fala livremente de política, mas francamente eu não sei até que ponto dizer "não sei se isso vai funcionar" e "deveríamos ter novos dirigentes" podem ser comparados, porque aqui ambos são tolerados, mas lá pode obrigar a família a pagar pela bala. Eles nunca tiveram democracia, então não sabem lidar com ela; ainda. Nós podemos mudar isso, se deixarmos nossa indignação para quem realmente deve ser alvo dela, e não é o povo. Ter perfis paralelos em redes sociais que lá são proibidas, ajudaria muito, e nossa malandragem ocidental é habituada a isso, mas agira seria por uma boa causa.

        Em troca, receberíamos todas aquelas lições de sabedoria e cabedal cultural que tanto e tão explicitamente admiramos, como a precisão e velocidade com que eles executam qualquer tarefa. Quem sabe se sentindo úteis e responsáveis por nós, e assim vendo mais sentido em suas vidas individuais, os índices de suicídio entre eles caia a patamares não alarmantes. Seria uma simbiose, compreendem? Deixamos a estupidez discriminatória de lado e de quebra minamos o poder do PCC por dentro, como um "câncer bom"; e não adianta eles lerem isso, os chineses estão demasiadamente espalhados e acostumados, é um pulo para eles aprenderem o jeitinho certo e disseminarem por debaixo do pano o que o governo quer longe do território chinês... bem, para quem acompanha as notícias de fontes que eles não compraram, é claro e iminente o declínio do regime. Lá isso não pode sequer ser comentado, mas aqui...

        Agora, por que eu ilustrei o texto com uma seqüência de uma jovem flagrada nas ruas de Pequim? Bem, primeiro porque eles também não têm a nossa neurose de querer ser esquecido para todo o sempre, com medo que uma imagem acidental possa condenar a alma ao inferno, a maioria de nós teme sem saber o quê e rejeita sem saber realmente o porquê. Se alguém lucrar com a imagem dela, ela simplesmente processa e ganha.
        Segundo pelo velho pragmatismo oriental, evocando a característica mamífera de se comover com a beleza, e assim facilitar a simpatia pela mensagem. Simples assim.

29/03/2020

TV Chin


   Em minutos tudo é assinado...

    - Sejam bem-vindos à nossa família.

    - Somos gratos pela recepção, estamos certos de que nossa parceria será profícua e longeva, pelo bem de nossos povos e pela glória de nosso bem amado regime!

    - Estamos certos de que será proveitosa e longeva! Faremos nosso intercâmbio e teremos acesso a uma cultura incrível!

    - Sim! Nossa cultura é incrível, milenar, popular e salvaguardada pelo nosso governo, ao contrário do seu! Não admitimos interferências externas em nossos assuntos, mas estamos prontos para ajudar vocês a se aprimorarem.

    - O material que vocês nos enviaram logo de início é maravilhoso!

    - Decerto que é, e deve ser exibido imediatamente, pelo bem de nossas relações bilaterais! Não se preocupem, mandaremos sempre mais e mais, e vocês exibirão no decorrer da grade, para afixar nas mentes dos brasileiros o quão glorioso é o nosso regime e todos os progressos que conseguimos graças à sua condução. Vamos, não percamos tempo, exibam isso já!

    - Claro! Claro! GILMAR!!!! Ponha isso agora para rodar, não discuta, eu sei que está no meio do show, apenas obedeça!

    - Muito bem, é este mesmo o tom: APENAS OBEDEÇA!

    - E quanto ao material que enviamos? Estamos ansiosos para saber da repercussão.

    - Não tenha pressa, o que é importante já foi conseguido! Seus vídeos serão analisados com justiça e clemência pelo nosso comitê de preservação da nossa cultura milenas inocente e bem intencionada! Faremos as edições e dublagens pertinentes de sua cultura exótica, então será liberado para nosso povo, devidamente salvaguardado de ideiais não condizentes com o nosso regime.

    - Certo... E quanto à nossa jornalista de honra, ela terá toda liberdade dentro de nossa bem conceituada emissora.

    - É bom que tenha mesmo, ela precisa enviar reletórios relugares para nosso comitê de imprensa! Aliás, ela deve ter total liberdade para discutir pautas e alteraçõea de grade, assim estaremos em maior sintonia.

    - É uma boa idéia, teremos um ponto de vista diferente para nossas discussões.

    - Expor idéias é bom, mas discutir muito só traz atrasos indesejáveis. Procurem ser pragmáticos e sensíveis às nossas sugestões, a tolerância e prestatividade para com nossas demandas será boa para todos nós. Oh, que glorioso futuro antevejo oara esta parceria!

    - Ah, já estão exibindo o material que vocês trouxeram... mas isso parece propaganda, política, me perdoe se estiver errado...

    - E ESTÁ! Não seja insolente! Não permita que sua ignorância para com as escolhas de outros povos turve sua visão e tendencie seu julgamento! Nosso povo escolheu por meio de nosso bem amado comitê os caminhos que hoje trilha, e obteve êxito! Ao contrário da armadilha de escolhas directas em que vocês caíram!

    - Me desculpe, não tive a intenção...

    - Não se preocupe, serei cemente e relevarei DESTA VEZ.  Veja! O material já foi exibido e sua programação voltou ao normal! Mas lembre-se, consulte-nos para quando houver notícias polêmicas! Somos seus amigos e sabemos que não querem nos ofender, por isso nossa representante terá toda alegria em ajudar vocês a ajustarem suaa pautas, e dará acesso amplo aos nossos noticiários, para que possam ter noções de gloriosa verdade!

    - Então vocês pretendem orientar nossa grade, é isso?

    - Não, não pretendemos! Já o estamos fazendo! Vamos salvar vocês da falência, das tendências perniciosas da alardeada liberdade de imprensa, da ilusão da democracia ocidental, da visão míope de suas opiniões próprias e da insolência em que as províncias rebeldes mergulharam!

  - Fala de Taywan e Hong Kong...

    - Não, ocidental estúpido! Falo de Coréia e Japão, que se aliaram aos inimigos de nossa ideologia e mantém suas armadas em territórios que são nossos por direito!

    - Malditos ianques! Sempre se metendo em assuntos alheios!

    - Sim, espalhando o veneno subversivo da livre expressão de pensamentos! Por isso são decadentes! Por isso serão subjugados! Não se preocupe, agora vocês estão sob nossa proteção. Vamos mudar o logotipo e o nome da emissora, assim ficará inequívoco que aqui as boas mudanças estão consolidadas!

    - Tudo por uma boa causa!

    - Sim, nossa causa é a boa causa, e agora é a sua causa também. Estude com afinco as regras e consulte sempre nossa representante, para que sua interpretação SEMPRE coincida com a nossa. Lembre-se, se algo errado acontecer, sua família pagará pela bala!

28/02/2020

Agora é com os pequenos!





           Hoje o Impala sai de linha. A imbecilização da indústria ganhou mais um ponto dentro do mundo automotivo, abrindo mais espaço para a idiotice crônica dos SUVs. Por que eu digo isso? Porque eu já comentei aqui a respeito sobre o quanto esses trambolhos são tecnicamente inferiores e operacionalmente mais perigosos do que um carro de verdade. Deixo minha admiração de exceção à gigantesca Suburban, que nasceu numa época em que camionete precisava antes de tudo ser útil, e assim se mantém até os dias correntes, mantendo seu formato familiar e sua configuração casca grossa de chassi e carroceria. Via de regra, o que se faz com um SUV que não se pode fazer com um hatch ou uma perua, se devidamente preparado? Absolutamente nada. Se não for um fora de estrada autêntico, não há nada que um carro de gente não possa fazer igual, com mais espaço e menos peso para rebocar em caso de quebra.

            Eis o que perdemos:



           Mas infelizmente não é só a indústria automotiva que sofre com o emburrecimento de um mundo mais intelectualizado e menos raciocinante. Estou sofrendo para conseguir baterias extras para minha câmera, simplesmente porque ao contrário dos carros, ela não aceita uma com mesma tensão e corrente, mas de marca diferente; na verdade um carro aceita qualquer bateria com 12 volts, não importa se é a pequena original ou a de um caminhão. E aqui temos o motivo de a indústria automotiva ainda ser mais confiável do que a electrônica, bem como é esta a principal responsável pela imbecilização já dita. Se a tua bateria perder carga e não aceitar mais recarga, o que pode acontecer se ela for totalmente descarregada, uma fraqueza das tradicionais baterias de chumbo, podes ir a uma loja de baterias e comprar outra de qualquer marca e qualquer amperagem, desde que seja de 12 volts. Se for uma bateria menor, vai sofrer, mas vai trabalhar, se for maior vai ficar um pouco pesada, mas vai funcionar e ainda te dar mais segurança. E AI da indústria automobilística se essa liberdade for tirada do consumidor!



            Agora vamos a uma geringonça electrônica qualquer… se a bateria não for aquela própria, da mesma marca, mesma capacidade e mesma geração, o aparelho simplesmente avisa que não vai aceitar. Mesmo que forneça carga, o trambolho maldito, projectado por um cretino sob ordens de um filho de foca atolada, vai se recusar a obedecer seu dono, basta que seja de uma geração anterior ou posterior ao aparelho em questão… e nós achamos isso normal. Mas esses picaretas corporativos não fazem isso sem o amplo apoio passivo, mas apaixonado de uma maioria absoluta do público. E NÃO! Não é por causa do capitalismo! Nos anos 1950 e 1960 as pessoas compravam como loucas as novidades ano a ano, de productos que eram feitos para durar e duravam a vida inteira, além de serem fáceis de consertar! O índice de sobrevivência do que se fabricava na época, quando as condições de uso eram muito mais severas, é imenso, se comparado ao quase zero dos lixos que pifam assim que vence a garantia. É muito fácil encontrar carros do meio de século passado circulando em boas condições. Ainda hoje é possível encontrar peças para eles, é possível até encontrar válvulas para rádios e televisores antigos. A culpa não é “do sistema” É SUA! O saudosismo dos vintagistas não é gratuito e nem fruto de mentalidade rançosa, ele tem embasamento na vida real.



            Vamos deixar claro, antes de alguém vir com discursos, o que é a tal obsolescência programada. Quando um carro fica pronto para ser lançado e começa a ser vendido, seu substituto já começa a ser desenvolvido. Por que? Porque um modelo não pode ficar em desenvolvimento até se tornar perfeito, ou consumirá recursos sem jamais ser vendido. Quando o desenvolvimento dos protótipos alcança um nível satisfatório para o público e a época que se pretende atender, então é lançado, mas seu aprimoramento continua no substituto, ou na geração seguinte, que pode levar de dois a cinco anos para chegar; a versão de então é passível de ser aprimorada e retocada ao longo de sua vida industrial, e o próprio consumidor costuma ser o motivador dessas pequenas mudanças. Existe um ciclo para que um substituto seja lançado, não para que o modelo já lançado caia aos pedaços no meio da rua, e aproveitar componentes suficientemente bons do modelo anterior é prática corrente, para cortar custos. Baixa qualidade é outra conversa e foi banalizada pelos productos orientais baratinhos, de onde aliás vem essa prática de nada funcionar se a bateria for recarregada em uma rede de energia que penteie o cabelo para o outro lado. Entendidos? Continuemos.



            Depois que grupos japoneses de “turistas” invadiram as fábricas do Vale do Silício, ainda nos anos 1970 e levaram photos estratégicas para engenheiros de seu país, numa época em que o Iene não valia praticamente nada, começou a invasão de aparelhos baratinhos que, se não quebravam fácil, também podiam ser jogados fora se quebrassem. Do Japão migrou para a Coréia e de lá para a China, que foi quando tudo perdeu o controle. A política do desenvolvimento a absolutamente qualquer custo deu um século de desenvolvimento tecnológico à ditadura mais perigosa do mundo. Com a inundação de artigos com relação custo/benefício quase surreal, o padrão de exigência começou a cair muito e piorou quando discursos inflamados passaram a ser quase que um dialeto de uma geração que destruiu tudo o que as anteriores penaram para construir, rejeitando e rotulando de mau e pecaminoso tudo, material e imaterial, o que fosse anterior aos seus malfadados nascimentos. Não estudar E não trabalhar passou a ser aceitável, até desejável para alguns grupos que se rotulam como “desapegados”. Ao mesmo tempo em que são agressivos quando julgam que alguém ofendeu algum grupo com que simpatiza, fazem questão de ofender os com que antipatizam; não ouvem, mas exigem ser ouvidos. Em maior ou menor escala isso acabaria por contaminar, cedo ou tarde, o restante da massa.



            Essa praga migrou rapidamente para o consumo de bens e serviços. Em “serviços” incluem-se a grade de televisão e a indústria musical. Revistas que primavam por serem chiques e inteligentes se renderam em poucos anos também, passando a repetir citações alheias em vez de formar e dar voz a todo mundo; lembro-me que uma delas, a melhor então diga-se de passagem, fez um artigo extenso e bem explicativo sobre mulheres que eram apaixonadas pela vida de dona de casa; foi um escândalo em uma época em que dar para qualquer um em qualquer lugar era alardeado como direito e dever. O resto o desinteresse pela leitura fala por si. O lixo electrônico começou a preocupar as publicações especializadas precisamente na mesma época, mas o “novo” consumidor não deu a mínima, apesar de encher os recém-criados fóruns de internet com discursos ecológicos e anticonsumistas. Bem, eu estou careca de falar que quando um lado cresce, o outro também cresce, mesmo que à sombra dos que estão sob holofotes. Os que declaradamente não estão nem aí e querem que o mundo exploda depois da darem seu último suspiro, claro que com discursos analgésicos para evitar a rejeição dos de quem dependem seus prazeres, também emergiram da mesmíssima lama. São iguais, só estão em lados opostos.



            Foi o apogeu. A propaganda terrorista de que “a China vai comprar tudo e ser sua dona” acompanhou o temor dos mesmos especuladores que mandavam dinheiro e tecnologia para lá. No meio dessa gororoba ideoapocaliptica o cidadão comum foi bombardeado com discursos tão inflamados quanto distantes de sua necessidade e realidade. Não foi por falta de aviso! As revistas, quando eram boas, se cansaram de avisar, mas foram vencidas pelo cansaço, pelos patrocinadores e pela nova geração de colaboradores repletos desses mesmos discursos pretensamente libertários, mas que só confundem mais e mais até hoje a cabeça pragmática do cidadão comum. Este passou a dar de ombros para tudo o que o tirasse de sua zona de conforto a passou a consumir mais passivamente do que seus antecessores; ainda que muitos digam consumir conscientemente, só fazem seguir as instruções de algum grupo ou de uma celebridade pseudointelectual, o que dá na mesma, apenas com um rótulo mais apresentável. Bem, daí a aceitar ordens das marcas mais badaladas foi um passo. Eles até podem escolher como o que vão comprar será apresentado, por customização, mas obedecem pianinho aos ditames, mesmo os mais ricos que se rendem à idiotice cavalar do apelo pela emoção e tradição de marcas arrogantes. Diga-se de passagem, customização era algo fácil e farto do meio de século até meados dos anos 1970, e não só para productos caros, dificilmente se encontrava um Passat exactamente igual ao seu, por exemplo; isso só no Brasil, nos Estados Unidos a festa era ainda mais colorida e detalhada.



            Agora vem o ingrediente final, o cianureto para glaciar o bolo! Políticos semi ou literalmente analphabetos, mas hábeis em argumentação prolixa, metendo o bedelho em assuntos que deveriam ser restritos a técnicos altamente capacitados. Eles não disseram aos engenheiros “encontrem uma solução para isso”, disseram “façam do jeito que eu mandar”, e a diversidade de soluções e estilos começou a decair. Do outro lado, forçando a vítima a comer o bolo envenenado, activistas tão rasos quanto, mas cheios de citações e boas intenções… e o diabo precisou alugar outros planetas para acomodar tanta gente boa. Não preciso dizer o quando o cidadão comum ficou mais informado e proporcionalmente mais alienado, a profusão de reality shows cada vez mais estúpidos é a medida. Mas quem foi mesmo que colocou aqueles políticos lá? E quem é mesmo que paga a mesada de toda essa juventude agressivamente bem-intencionada? Quem dá audiência para essas porcarias e assim informa aos fabricantes o nível cada vez mais baixo do consumidor? YEEEEEEEEEEEEESSSSSSSSSSSSS!!!!!!! NÓS! Não é culpa do sistema, da mídia, dos iluminati, dos reptilianos, do Zukerberg, dos globalistas, dos aliens, nem da Odete Hoitmann! A culpa é nossa!



            A morte lenta e humilhante dos carros de gente é só um aspecto, o mais visível e doloroso diga-se de passagem, da morte da própria indústria, que agora é apenas uma replicadora de tendências que nem mesmo quem pensa ditá-las sabe realmente de onde vêm. Quem não participa da troca de ofensas de ódio politizado, engajado e bem-intencionado, geralmente prefere se alienar mesmo, pelo bem da sanidade mental. Só que nisso o mundo fica á deriva. E não, novamente, não há nenhum grupo comandando o mundo, embora haja muitos tentando fazer isso, ou não estaríamos derivando. Estaríamos muito maus lençóis, mas não à deriva. A praga dos SUVs é só um sintoma disso, assim como a ausência de fabricantes de componentes de reposição para electrônicos modernos, a pobreza estilística insana e quase compulsória dos edifícios espelhados, as grades televisivas que copiam tudo em vez de apenas adoptar um estilo e trabalhar isso para seu público, programas que vivem de parodiar ou comentar outros programas, “músicas” hoje explícitas de apologia ao crime e à sexualidade infantil, criminosos sendo glamourizados pela mídia e lançando “biografias” para seus fãs… enfim, eu me cansaria e infartaria sem chegar ao fim da lista. Mas onde fica o consumidor nesse balaio de gato noiado? Fica escondido e com medo. Não se destacar, e o exibicionismo em redes sociais é um modo de se misturar e não de se distinguir, é uma forma de proteção. Deveria procurar um profissional de saúde mental, sim, mas esse também está tentando se defender e raramente tem ciência de toda a teia de acontecimentos daqueles sintomas; até porque não é obrigação dele, seria de jornalistas e historiadores que, bem, vocês já sabem.



            A alternativa é entrar no círculo vicioso que alimenta a moda de débil mental dos SUVs, que matou um dos melhores carros do mundo, após matar o irmão maior Caprice e suas peruas, todos, segundo proprietários, tão fáceis de manter que o consumo de combustível nem pesa. Agora temos trambolhos volumosos, com pouco espaço interno, beberrões, comparativamente instáveis, de difícil acesso para pessoas com problemas motores, estilisticamente pobres, fácies de estragar, difíceis de consertar, mas que dão sensação psicológica de segurança a seus condutores. Dá para ver tudo ao redor, inconscientemente as ameaças não o pegarão desprevenido. Está tudo sob controle. E para compensar a falta de interesse crescente por carros, resultante disso, a solução é o quê? Dar estilo? Ampliar as opções de customização de fábrica? NÃO! É encher o apinel de porcarias cibernéticas para fazer o cidadão se sentir moderno, antenado, um cidadão do século XXI, e abrir as portas para hackers matarem pessoas utilizando O SEU CARRO seguro e altinho. Então vocês poderiam se perguntar, e o farão se tiverem senso, se dá para colocar toda essa tralha em um carro antigo. Sim, dá. Fazendo um circuito totalmente à parte, dá sim. Assim como dá para reforçar a carroceria de modo que se torne segura em colisões. Também dá para fazer um televisor, rádio ou vitrola antigo se comunicar com a internet das coisas… e gravar analogicamente o que seria impossível com os scripts digitais.



            Vocês podem procurar referências sobre comunidades vintage na internet, verão até mesmo pessoas que fazem questão de viver como se vivia em épocas passadas, alguns até como na era vitoriana. Não é atraso, é escolha. Eu mesmo, quando as condições me permitirem, chutarei todas as redes sociais para longe, não vou querer saber de televisão na minha casa nem de graça! Usarei a internet e o e-mail para aquilo que foram criados para fazer, e depois me debruçarei na minha vida quarentista!



            Serei honesto, a GMC tentou com bravura salvar seus sedãs. Foi uma luta árdua que chegou às raias do romantismo. Mas por tudo o que eu já escrevi, a demanda já era insuficiente para justificar a produção, e ter prejuízo em uma época tão dura é inaceitável. Resta então aos pequenos fabricantes, aos quais a baixa demanda inicial dos vintagistas fez florescer uma indústria vigorosa, atender à demanda reprimida de um grupo ainda sensato e saudoso dos carrões. Eles (nós) estão dispostos a pagar o preço que, francamente, a maioria já paga por um SUV feio e sem personalidade. Dar de ombros à gritaria de grupos bem-intencionados é algo impensável para grandes corporações, mas perfeitamente aceitável para pequenos fabricantes, que podem se servir de peças já existentes para construir coisas totalmente novas, ainda que com aparências de velhas. Os grandes estão de mãos atadas em um terreno onde os pequenos se movem com desenvoltura, e a quem os grandes deveriam ter recorrido para assumir productos de baixa demanda, como o Impala, a Pontiac, Oldsmobile, Mercury, Plymouth, enfim... Isso manteria os ícones vivos e os proprietários das marcas bem conceituados. Mas vai dizer isso a um especulador paranóico! Vai dizer isso a um gritador bem-intencionado e seus manipuladores! Vai dizer isso a um político cheio de vazios mentais! Vai dizer isso ao cidadão comum amedrontado!



            Meus amigos, a salvação dos gigantes está nos nanicos, cuja estrutura permite uma flexibilidade muito grande de produção. Assim como a moda retrô se tornou uma cultura que hoje se mantém sozinha, com suas estrelas e legiões de fãs próprios e custos paulatinamente menores, é nos pequenos que nossa indústria de bens duráveis terá sua salvação e, também aos poucos, a volta da viabilidade da produção em larga escala.


21/02/2020

Voando contra a tempestade



            US$ 10.000.000.000,00 lhes parece ser uma dinheirama? De facto é para qualquer um. O que vocês fariam com esses dez bilhões? Ações? Imóveis? Realização de sonhos? Ajudar os necessitados? Levar uma vida de nababo e viver só de prazeres? Investiriam em algo do qual a imprensa apocalíptica alardeia há anos estar em final de vida? Nós leigos e a maioria dos profissionais, seguramente não… MAS como diz o bordão, é contra o vento que um avião decola! Vamos a uma breve história…



            A última crise mundial fez vítimas também na indústria da aviação, os aviões quadrimotores caíram no desinteresse das aéreas e pareciam fadados ao desaparecimento; O Airbus A380 já foi condenado. O problema desses aviões é que seus custos operacionais são maiores do que os bimotores. O que os sustentava até então, eram a maior confiabilidade de sua configuração e a grande capacidade de carga e passageiros. Acontece que os motores evoluíram, aviões bimotores como 737 e A320 se tornaram confiáveis o bastante para praticamente todas as rotas transoceânicas, e eles inda contam com a vantagem da capilaridade; por serem menores e mais leves, podem se servir de aeroportos menores e menos estruturados, onde os gigantes 747 e A380 dificilmente conseguiriam operar. O grande problema da aviação civil, desde a crise do petróleo, é que a magra margem de lucro, que faz com que qualquer mínima oscilação de custos precise ser repassada ao passageiro; por isso lá fora se cobra pelo envio da bagagem. A hora de vôo (ver mais aqui) é caríssima! Isso, é claro, sem contar outros custos, como taxas aeroportuárias, impostos, hangar, manutenção e reparo, seguro, et cétera.



            Some-se a isso a comodidade de os passageiros não precisarem descer de um 747 para esperar conexão com um 737, ou mesmo um E190, o que ainda hoje é comum. Mais, esses bimotores conseguiram crescer e oferecer mais assentos com um custo proporcionalmente bem menor. Há ainda mais um movimento da moda de gente engajada e alienada, que pensa que deixar de voar vai resolver os problemas ambientais, mais uma culpa inútil distorcendo o foco e tirando verbas de pesquisas para soluções funcionais. Agora ponham a última crise na equação, e seus ecos ainda ressonando em nossos bolsos et voilà! Temos um monte de especialistas e “especialistas” alardeando a morte dos quadrimotores. Paralelamente, esses mesmos indivíduos publicam afirmando que tudo vai piorar e todos vamos morrer, para em seguida deixarem suas salinhas com ar-condicionado para o happy hour.



            Acontece que os quadrimotores têm uma vantagem estratégica sobre os bimotores: capacidade de carga bruta. Por serem mais corpulentos e justamente dotados de quatro motores, sua aptidão ao trabalho pesado é inato, ou… pelo menos deveria ser… O A 380 pecou neste ítem e por isso foi descontinuado, mas o 747 foi pensado na época em que se acreditava que o vôo supersônico seria comum em poucos anos, por isso foi concebido para actuar também como avião cargueiro, configuração que o tem sustentado nesses dias de vacas magras, por isso ele tem aquela corcunda do tamanho de um 737 básico, para abrir espaço na fuselagem e permitir o carregamento pela frente. Sejamos francos, o porte altivo do Boeing é muito mais agradável do que o aspecto de porco de abate do Airbus! Em caso de pane em um dos motores, o Jumbo 747 e o A380 teriam permissão para prosseguir com a viagem, mas um bimotor teria impreterivelmente que pousar no aeroporto mais próximo.



            Sem contar que o avião presidencial americano oficial, código Airforce 1, é SEMPRE um confiável quadrimotor Boeing 747, que tem custo básico de quase meio bilhão de dólares. Seria mais interessante ao orçamento utilizar um 777 mais longo, mas a segurança neste caso é sempre prioridade.



            Também é com o 747 8F, a versão cargueira, ao lado do 777-F que a Qatar Airways (ver mais aqui) tem levado suprimentos para a China, num momento em que quase todo mundo evita até sobrevoar o país. Uma propaganda e tanto para o já legendário Jumbo.



            Bem, justamente de olho nas vantagens técnicas do 747 que o volume de encomendas do cargueiro teve um acréscimo súbito e substancial (ver mais aqui) citando ainda que ele é um velho conhecido dos mecânicos aeronáuticos, o que facilita bastante as revisões e eventuais reparos. Esse incremento nos pedidos fez os fãs da rainha dos ares suspirarem de alívio… como assim? Sim, fãs! Vocês pensam que só os ônibus é que têm fãs malucos? Não, os aviões têm também, e são ainda piores! Ter a certeza da sobrevida dos quadrimotores reacendeu a esperança de seu uso civil voltar a ser comum, o que parecia algo muito remoto, até que algumas encomendas voltaram a pingar, e logo a goteira ganhou volume e se tornou um pequeno jorro; é aqui que os dez bi entram!



            Uma intenção de compra para entrega entre três e cinco anos foi firmada pela Avatar Airlines, uma iniciante com uma proposta muito agressiva e ambiciosa, que abriu um sorriso na boca da Boeing em uma má fase sem precedentes (ver mais aqui). Se originalmente o 747 saía de fábrica com interiores de alto luxo, que podiam incluir até piano bar no lounge daquela enorme corcunda, a novata quer aproveitar o corpo gigantesco para encher de poltronas de classe econômica! Mas, hein??? M-mas… É isso mesmo, Lombardi? Os manos querem usar o 747-8I para vôos de baixo custo??? É isso mesmo, Silvio! A “startup” está praticamente com a caneta no cheque para comprar uma frota de 747 e fazer pobre voar! Mas isto é incrível!!!!! É mais ou menos como transformar uma Cadillac Escalade como táxi.



            O discurso, altamente simpático e visionário, soa quase hippie: “Em vez de equipar a aeronave com lounges de primeira classe, bares com piano e um arranjo de assentos decadentes da década de 1970, a Avatar gostaria de devolver a experiência do 747 às massas”. Parece ter saído de um jovem recém-formado e cheio de esperanças no futuro, mas foi feito por Barry Michaels, executivo experiente e com os pés no chão; mas cabeça nas nuvens. Tudo começará com a tradicional versão 747-400 no mercado de usados, que está em promoção, oito até o fim do primeiro ano de operação, mantendo a empresa funcionando e acumulando recursos até a entrega gradual dos trinta novos modelos até o final do terceiro ano. Para não dizer que será um busão de asas, serão 539 assentos na econômica e 42 na executiva, ou seja, haverá chance de mais comodidade para quem se dispuser a pagar mais, mas o foco está nas massas.



           

            Certo, mas e as outras? Estão pagando para ver. Se der tudo errado, não terão perdido tempo e dinheiro; se der menos do que Michaels espera, a viabilidade do 747 poderá ser reconsiderada; se der certo o Jumbo voltará a ser um best seller da aviação civil, porque eles têm cacife para dar bons sinais e garantir a renovação da frota. Mas sem a ousadia dessa novata low cost, essa possibilidade talvez nunca fosse aventada pelas veteranas calejadas e traumatizadas pelas décadas de vacas magras. Se o consumidor aceitar viajar regionalmente e com pouco espaço em uma aeronave que é símbolo de status, então teremos uma nova e promissora página na aviação comercial, que pode inspirar as outras indústrias. Quem sabe alguém descubra, por exemplo, que famílias grandes ainda existem e carrinhos de brinquedo não dão conta delas, e nem todos querem SUV na garagem.

12/02/2020

Uma semente no Bronx


Puerto Rico dinner, Bronx, New York, 1950s

            Há uma lojinha em Nova Iorque premiando com (sentença mágica para taurinos) "comida grátis” de bom grado (aqui) clientes desabrigados do Bronx que conseguirem fazer contas simples, mas simples mesmo, como “tenho 10 maçãs e perco 4 laranjas, quantas maçãs me restam?”. Não há sequer uma simples regra de três no menu. A intenção é ajudar E promover a imagem da loja no bairro. Até onde percebi, eles não procuraram pela imprensa, a fama deles é que entrou nas redações e motivou a entrevista.



            A iniciativa chamou atenção em meio a tantos milhares, justamente por vincular o prêmio ao exercício do raciocínio lógico. Eles poderiam muito bem fazer questões sobre a própria loja, sobre polêmicas mais em voga, ou mesmo algo sobre celebridades vazias que se metem a dar pitaco na política interna alheia, às vezes dando tapas nas caras de comunidades de refugiados em seu próprio país; isso daria muita manchete e publicidade, mas eles preferiram o caminho mais difícil da porta mais estreita. O necessitado entra em um comércio que aceita outros meios de pagamento, subsidiados pelos próprios proprietários, paga pelo que foi buscar e sai feliz, ou pelo menos, um pouco mais para cá da linha do abismo. Não foi esmola, foi comércio. Dar o alimento angariaria mais simpatia, mas vender pelo que o outro pode pagar dá ganhos maiores, mais perenes e para toda a comunidade.



            Em primeiro lugar, eles fazem o cidadão em estado de penúria se sentir merecedor do que está ganhando. Ele entra na loja à espera de uma esmola e sai de lá com o fruto de seu mérito. Que diferença faz? Para quem pensa que não tem absolutamente nada a oferecer, conseguir o direito ao prêmio em vez de simplesmente receber passivamente uma doação, é como conseguir escalar um precipício em que caíra. E para essa gente ignorada, quando não serve de audiência ou palanque político, a quem a vida é sobreviver a mais um dia e nada mais, significa ter uma faísca de dignidade em meio às trevas da autoindiferença que suas existências tendem a se tornar. Ele se sente gente e fica mais longe de agir como um animal, controlando melhor sua índole e assim ficando menos acessível aos chamados do dinheiro fácil.



            Em segundo lugar, essa iniciativa atenua uma falha crassa em que o ocidente mergulhou, que é o menosprezo pelas ciências exactas. Já falei aqui do estúpido e inútil complexo de culpa que alimentamos, por erros que ALGUNS DE nossos ancestrais cometeram, como se isso apagasse ou corrigisse o que AQUELAS VÍTIMAS sofreram. Pois os orientais não têm essa deficiência e estão nadando de braçada nas nossas bobagens, ou vocês pensam que a China se ergueu choramingando e apontando o dedo para si mesma? Quase que subliminarmente eles estão vinculando a matemática à parte mais luminosa da humanidade, com isso desmentindo a narrativa retórica de engomadinhos de ar-condicionado que nunca resolveram problema nenhum, mas apontam seus dedos sujos para todos e exigem que os outros transformem o mundo em um paraíso instantâneo.



            Em terceiro lugar, mas não menos importante, isso quebra a inércia social. As pessoas têm sido condicionadas nas últimas décadas a sempre esperar tudo do Estado ou de entidades formais, as famigeradas ONGs. Se teu irmão está ali, ao seu alcance, não precisa entregar dinheiro a um grupo intermediador, ver os recursos viajarem pelo mundo para só depois voltarem e fazerem (ou não) aquilo a que foram destinados. ONG é só um nanoestado não assumido, meus amigos. Agindo assim, a distância midiática entre o fornecedor e o destinatário do recurso desaparece, obrigando os indivíduos a se envolverem e verem a pessoa por detrás das estatísticas, dando rosto e nome a quem era apenas um número; números não reagem, quando são manipulados, pessoas podem quando percebem isso.



            Não, isso não vai resolver os problemas do mundo. Não, a pobreza não será magicamente erradicada com isso, para o alívio dos bondosos lutadores de causas. Não, isso não vai torar daquela ditadura os oitenta anos de tecnologia que lhe demos de graça. Essa iniciativa é uma semente, que na verdade já está brotando, e vai ajudar a reflorestar o amor-próprio do ocidental, especialmente das Américas. Não falo aqui de orgulhos nacionais, me refiro àquilo que os ingleses ainda têm em relação ao seu gentílico e suas tradições, o que em boa parte motivou o desligamento da UE… que agora está correndo atrás deles para firmar acordos comerciais. Posso dizer sem medo que a Inglaterra é o país mais legitimamente ocidental do mundo, porque foi o que menos se curvou a essa culpa idiota; e francamente eu acredito ter sido plantada, mas isso é assunto futuro.



            Aquela semente que acaba de brotar vai preparar a terra para futuras semeaduras, o que não nos impede de fazer o mesmo agora, em vez de esperarmos por frutos que talvez nunca saboreemos, pois aquela semente pode ser de tâmara. Demora? Sim, demora! Mas dá resultados? Sim, dá resultados, e resultados indeléveis por se atacar o mal pela raiz. Se uma grande parcela da população fizer o mesmo, não vai antecipar os resultados, que têm seu tempo, mas vai antecipar o desfecho, porque a colheita dessa safra vai nutrir muito mais humanidades ao mesmo tempo. A conseqüência imediata disso é a perda de prestígio de muita gente que se diz amiga dos excluídos, mas não passa de parasitas que acalmam o cérebro enquanto sugam o sangue. Artistas, políticos, celebridades, “intelectuais”, enfim, muita gente terá que procurar empregos de verdade para sobreviver.



            A longo prazo, teríamos um avanço mais significativo na ciência e tecnologia, pois afinal é com matemática que essa conversa nasce. Perder o medo da matemática é o primeiro passo para se ter um raciocínio mais limpo e organizado, e ter a matemática como “meio de vida” provisório é uma ajuda inestimável. Aquelas pessoas vão falar bem de cálculos e problemas concretos envolvendo equacionamentos, isso cedo ou tarde chegará aos ouvidos das crianças, encorajando os pais a brincarem com eles de algo mais do que competição esportiva ou ir comer pizza.



            O atrelamento das ciências exactas ao resgate da humanidade de quem pensa não ser mais humano, é inclusive uma vacina contra a arrogância típica de quem se julga ser intelectual, e esfrega seus títulos e artigos no nariz do cidadão comum; esse cidadão comum não seria mais um completo leigo e assim não cairia mais, também, na estética da lábia traiçoeira de floreadores verborrágicos. Seria o fim do político profissional como o conhecemos. Ah, claro, a grade da televisão e dos serviços de streaming mudaria radicalmente, inclusive com o fim dos circos de horrores de gente que chamam de reality shows. A forma como se vê e consome entretenimento seria completamente outra. Escatologia não seria mais artigo de venda fácil, e os esportes profissionais precisariam de novos apelos para conseguirem audiência.



            A união do amor-próprio ao rigor da análise matemática nos tornaria mais exigentes também na hora de gastar o tempo livre. A sensação enriquecedora de um bom livro com ilustrações bem-feitas e bem pensadas, de material de boa qualidade e bem texturizado, seria mais atraente do que o jorro de emoções intensas e voláteis. O automobilismo elegante tomaria muito espaço de jogos burros. Aliás, o gosto por máquinas complexas se alastraria, porque elas são um exercício mental tão recompensador quando o treino pesado é para o atleta. O gosto pela natureza cresceria muito, o que significaria necessariamente o alastramento das áreas verdes, jardins particulares e vasos decorativos em grandes centros urbanos; uma vez que o prazer de dirigir seria priorizado, ninguém estragaria isso congestionando as ruas usando o carro para ir comprar pão na esquina.



            O gosto pelas artes e pelo refinamento chegaria aos mais pobres, que já não seriam mais o que conhecemos como “pobres”. Para quem 3,14 não é mais um Pi, e 3,1415926535 nem sempre seria mais suficiente, apreciar os detalhes e sua participação no conjunto impulsionaria o mercado de artesãos de elite, e esses detalhes únicos migrariam para a personalização de productos de larga escala, talvez dentro das próprias fábricas. Se de um lado a racionalização extrema da parte estrutural cortaria vagas, estas migrariam para os serviços de retalhamento e aprimoramento técnico, humanizando até mesmo o mais artificial dos artigos plásticos; e talvez não houvesse mais mão de obra suficiente, teríamos que recrutar robôs para auxiliar os artesãos.



            As relações pessoais, uma vez que lógica e emoção estariam atreladas, começariam a amadurecer de forma exponencial. Relações abusivas decairiam, porque suas vítimas estariam mais propensas a pedir ajuda profissional, em vez de confiar em opiniões de redes sociais. Estas, por falar nisso, passariam a justificar seus nomes, não seria mais redes de intrigas, não haveria espaço para isso. O ápice viria quando o inconsciente coletivo recebesse essa extensão, mas então já estaríamos em outro mundo e, francamente, não se daria em um estreito prazo de um século… mesmo assim o início dos efeitos já seria um espanto!



E tudo isso nascido oficialmente naquela sementinha plantada no Bronx.

10/01/2020

Deixe eu entrar, mas fique de fora!





           O francês sabe que seus carros são problemáticos e difíceis de consertar, se comparados aos alemães e americanos, fora o facto de que quando saem de linha, podem ser simplesmente jogados fora, porque dificilmente encontrarão peças de reposição. Aliás, um americano que morou lá chegou a comentar que carro europeu não é pensado para ser consertado, enquanto um brasileiro que morou nos Estados Unidos (e conhecedor do Fusca) suspirava de saudades do Caprice, dizendo que não há carro mais fácil de manter. Mas se esmeram em designs arrojados e soluções inusitadas visando seduzir o mercado externo, ainda que isso signifique agravar os problemas de sobrevida do modelo. Para não dizer que não têm qualidades técnicas, estão entre os melhores carros para se andar na neve; que francamente, não existe em boa parte do mundo. A situação é a mesma com a agropecuária francesa, que embora seja muito refinada e tradicional, é cara e ineficiente a ponto de muitos pequenos produtores precisarem de subsídios estatais, para se manterem no campo. Os alimentos inatura produzido no continente americano não devem em nada em qualidade, e ultimamente nem em refinamento, com a vantagem de serem produzidos em escalas muito maiores, o que barateia muito a unidade ao consumidor, mesmo com a logística transatlântica no meio.



            Tudo isso se soma ao mal disfarçado orgulho do cidadão francês pelo que é feito em seu território. Orgulho grande a ponto de haver manifestações pela manutenção e, não raro, até incremento dos incentivos e subsídios à produção nacional. A rejeição em princípio ao que é importado não se trata de imposição legal, é cultural, eles querem ver seus productos prestigiados aqui fora, mas ainda rosnam quando vêem “made in Brazil” estampado em uma embalagem por alguns euros a menos do que o “fabriqué en France” de mesma qualidade. Se for um dos mais ufanistas, ele paga mais pelo nacional.



            No Japão não é muito diferente, com o atenuante de eles serem muito mais abertos, graças ao relacionamento com os Estados Unidos desde o acordo de paz que pôs fim à guerra. O japonês médio torce o nariz para o importado e até mesmo para serviços vindos de fora, ainda hoje preferindo arraigadamente o que é feito e servido no arquipélago. No passado se viram obrigados a espionar o vale do silício, fingindo fazer excursões turísticas em que os engenheiros sabiam muito bem o que estavam procurando, e assim nasceu a lendária indústria electrônica japonesa. À parte episódios como este, o facto é que o japonês se orgulha quase ao extremo de seu país, sua cultura, sua mão de obra e até de seus defeitos, por isso hesita em gastar seus ienes em algo importado, se houver algo nacional similar; e mesmo as marcas ocidentais precisam se adaptar aos exóticos gostos de um país que se isolou por séculos, só voltando ao mundo quando os ingleses aportaram por lá, mas intimamente eles ainda vivem em um mundo particular, o que não é de todo ruim.



            A vantagem japonesa é que o país não pára no tempo, e mesmo as actividades mais tradicionais se beneficiam de novos métodos e novas tecnologias. Mais do que isso, o encanto que o japonês quer que seus clientes estrangeiros tenham é o de poder usar sem medo de quebrar. O único porém, é que, em especial nos carros, a miniaturização dos espaços para mecanismos e circuitos também tem tornado tudo mais difícil e caro de se consertar, fazendo compensar comprar um novo em vez de reparar o antigo, com isso não há muita demanda por peças de reposição, que logo são descontinuadas. Em contrapartida, ainda hoje é possível montar alguns modelos americanos do zero, só com peças originais. Mesmo assim a preferência pelo “made in Japan” é indisfarçada, especialmente por marcas nativas, que se esbaldam na situação de poder exportar muito sem medo de concorrência interna com importados.



            É aqui que reside o grande problema do Velho Mundo, no tocante ao comércio internacional. O continente americano tem uma mentalidade oposta, a de não passar a mão na cabeça de seus nativos, algo que em certo grau só é compartilhado pela Inglaterra. Sempre que um país americano aventa a possibilidade de corte de impostos ou mesmo de subsídio à produção interna, um europeu berra aos quatro ventos contra a concorrência desleal, contra a invasão da cultura externa e pela defesa do emprego nacional; mas adoram quando nós facilitamos para o lado deles, seus sindicatos dão de ombros para os empregos que podemos perder. Os asiáticos o fazem de modo bem mais elegante, mas também fazem.



            Houve uma curta época, meados dos anos 1970 e início dos 1980, em que os productos ocidentais pecaram no acabamento e, no caso dos europeus, perderam muito em qualidade de construção e confiabilidade. Bem, os asiáticos se apegam a essa imagem para reforçar a rejeição prévia ao que fabricamos. Muita coisa mudou, a qualidade construtiva, especialmente dos carros, evoluiu muito e hoje podemos dizer que um Cadillac ou um Lincoln já inspira muito do prazer de condução e conforto d’outrora. Para inspirar todo, ainda faltam o espaço interno e a qualidade estética de outrora. Isso seria o suficiente, mas ver algo feito no continente americano lá fora é menos comum do que o contrário. Não é raro um país asiático, especialmente China, manipular deliberadamente seu câmbio para agregar competitividade, a ponto de as marcas de cá precisarem montar plantas lá. Noutras épocas isso acarretaria retaliação bélica, felizmente isso já não acontece, mas eles se valem justo da escassez de conseqüências para empurrar com a barriga as demandas pan-americanas na OMC, e se o país reclamante não forem os Estados Unidos, a decisão do tribunal pode simplesmente não ser respeitada de facto.




            Um dos subterfúgios para esse desrespeito não ficar muito aparente, é simplesmente tirar um subsídio e criar outro em seguida, ou mudar os mecanismos de compensação ao exportador, ou mesmo criar regras deliberadamente vagas e rígidas para a importação de determinados artigos, alegando razões sanitárias ou adequação a padrões técnicos locais. Quando executivo e legislativo estão alinhados, ou um é submisso ao outro, fica fácil fazer isso. Se todas essas barreiras falharem, eles contam com o protecionismo cultural da população, que não precisa de protocolos e decisões de gabinete, pode ser acionado nos bastidores dos bastidores dos bastidores, boca a boca, nas relações pessoais e nos discursos de artistas e intelectuais em defesa de... bem, o resto vocês podem deduzir.


             Agora imaginem se nós decidirmos fazer o mesmo! Não aceitamos brinquedos e bugigangas da China, nem carros europeus, nem bebidas e queijos franceses, entre outras coisas. Deixamos os produtos deles envelhecerem nas lojas e compramos só o que for feito no continente, mesmo que o governo elimine todas as barreiras alfandegárias. Mesmo que precisássemos pagar bem mais caro, não compraríamos de outro continente se houvesse algo similar feito aqui. Sim, eles podem fazer o mesmo, mas isso sairia caro, literalmente caro. A escala de produção deles cairia muito, com isso os custos ficariam muito altos, haveria desemprego em escala maior do que os Estados nacionais seriam capazes de conter, fora o risco de fome generalizada, porque eles não produzem alimentos suficientes para seu consumo básico. Qualquer lanche de rua custaria o mesmo que um prato fino em um restaurante caro, comer bem seria um luxo. Embora não admita, a Ásia vive de vender para nós, a força que eles têm, nós demos.


            Por aqui teríamos dificuldades para nos adaptar, afinal quase todo o nosso comércio exterior está voltado para além mar, mas seria passageiro. Nossas paisagens mudariam e a seleção natural manteria as empresas competentes no mercado. Fome nós não passaríamos. A agricultura é uma das poucas indústrias que permitem mudanças rápidas e profundas em suas matrizes, e é a base de nossa economia! Em poucos anos as dificuldades seriam superadas e a circulação de riquezas se concentraria em um continente, com fretes mais baratos e rápidos. A necessidade de conquistar o mercado interno continental, e a escassez de profissionais capacitados, faria a mão de obra se aprimorar e os salários subirem. Por questões de sobrevivência, nós aprenderíamos a dar menos atenção a entretenimentos que não acrescentam... muitas celebridades teriam que mudar de linha ou de emprego.
            

            Mas nossas dificuldades passageiras não seriam nada se comparado ao que os outros continentes enfrentariam. Alguém poderia nos declarar guerra, sim, não fossem os Estados Unidos aqui, da mesma forma como eles impedem que a China anexe os países que estão no Mar da China apenas por causa do nome do mar. Não acredito em uma catástrofe, a maioria deles se emendaria e trataria de agir como adulto, os que não o fizessem estão na vizinhança e se beneficiariam marginalmente. Em meio século o mundo seria completamente diferente, os próprios países americanos se veriam de outra forma, e talvez a Guiana não seria mais francesa. O melhor disso é que os países que hoje agem como mendigos, veriam sua força e seu potencial, e seriam então capazes de impor respeito sem apelar a ufanismos, apenas olhando nos olhos e pondo suas cartas na mesa; que então teriam valor relevante em todos eles.


            Não, não estou insuflando o isolacionismo, minha mentalidade é contrária a isso. O que escrevi aqui é para dar a vocês uma idéia com acento da força que este continente tem, e seus cidadãos ignoram, mesmo os nativos dos Estados Unidos não fazem idéia do real peso e da real responsabilidade que têm no equilíbrio internacional, imaginem os latinos! Então, antes de começarem a gritar desesperados "ELES VÃO DOMINAR O MUNDO" deixem a pirotecnia desenvolvimentista de lado e analisem o que realmente está acontecendo, e por que está acontecendo. Vocês verão, caros americanos, que muito do que eles conquistaram, partindo de infraestruturas completamente combalidas ou mesmo inexistentes, foi com o suor de nossos rostos. Além do mais, temos grandes colônias do Velho Mundo aqui, o melhor deles está em nosso território. Então, quando alguém vier reclamar que qualquer país de nosso continente impõe barreiras às importações, esfregue diplomaticamente em suas caras o que eles fazem debaixo do pano.