28/03/2008

"Quem matou o carro elétrico?"


Acreditem, não foi um productor de petróleo temeroso pela falta de demanda. Há mais de uma década a indústria automobilística se tornou mais poderosa do que a de combustíveis, e o petróleo pode ser transformado em muitas cousas. O impacto de todos os carros do mundo passarem a usar baterias aumentaria a demanda por plásticos, pois baterias são pesadas e a redução de massas seria necessária. Teria que ser muito incompetente para quebrar por causa disso.

Tampouco foi a indústria de autopeças. O motor eléctrico quase não pede manutenção, é praticamente instalar e esquecer que ele existe, dispensa transmissão com escalonamentos de marchas na maioria dos carros. Mas suspensão, direção, freios, rodas, equipamentos de segurança e de conforto continuam existindo. Eles pedem manutenção, alinhamento, balanceamento, retífica, reparos, quem sabe um upgrade. Fora que os antigomobilistas jamais abandonariam seus bebedores de combustível, apesar de este se tornar muito caro, no contexto proposto.

Menos ainda uma conspiração internacional para conquistar o mundo, tudo o que um ditador não quer é um povo doente e insatisfeito. Quanto mais puro o ar e silenciosas as cidades, mais calma e saudável é a massa, portanto mais apta ao trabalho. Meio sinistra, esta parte.

"Quem matou o carro elétrico", como escandaliza a frase que infesta a internet, fomos nós. Por que? Porque não o compramos, simples assim. Se compramos, é produzido. Ponto final.

O motor eléctrico é uma maravilha. Silencioso, eficiente, quase indestructível, produz várias vezes mais torque do que o melhor motor a combustão com mesma potência. E ao contrário deste, que precisa girar rápido para gerar força, aquele gera até parado. Por isso muitas vezes dispensa marchas e reduções. Também é muito simples, praticamente é um eixo cheio de bobinas girando dentro de uma carcaça com mais bobinas, fácil de reparar, fácil de envenenar, só consome a potência mínima necessária ao funcionamento na velocidade em que estiver.

Agora, meus amigos e minhas amigas, vocês se perguntam o motivo de termos rejeitado algo tão maravilhoso. Alguma cousa há que eu não expliquei. E há.

As baterias de hoje são, praticamente, os mesmos trambolhos do fim do século XIX. Volumosas, pesadas, caras e armazenam pouca energia. Estão surgindo novas baterias, mas é só agora que elas estão surgindo e ainda são caras demais, mesmo assim ainda não são páreo para um tanque cheio de álcool e um câmbio de cinco marchas. O porém é que raramente andamos mais de oitenta quilômetros por dia, um carro eléctrico consegue facilmente exeder cem quilômetros de autonomia a cem quilômetros por hora ou mais. Devagar, na cidade, uma carga pode durar três dias ou bem mais. E a electricidade é muito barata, se comparada aos combustíveis.

"Então, tio, por que a gente não pegou essa bocada?" é o que me perguntam. Resposta: preconceito. No início do século XX os eléctricos eram grande maioria. Nessa época ainda se girava uma manivela para o carro pegar, o que literalmente quebrava braço de muito marmanjo desatento ao motor. Por isso as mulheres preferiam as baterias a usar gasolina/gás/querosene/et cétera. Também eram (e ainda são) extremamente silenciosos, em uma época em que nível de ruído e poluição não preocupavam senão poucos gatos pingados. Imaginem então, qual motorização uma mulher de posses preferiria. Vejam bem: Mulheres conseguiam dirigir com relativa tranqüilidade. Logo os machões reclamaram e iniciaram a difamação, dizendo que esses carros eram "suaves" demais para um homem de verdade, que macho tinha que fazer força, ouvir barulho e cheirar fumaça. Em um mundo tão conservador e patriarcal, isso caiu como uma bomba. É por isso que muitos idiotas retiram o silencioso do escapamento, para parecerem mais "machos". Só que a inspeção veicular já está começando, terão por força de lei que restaurar os escapamentos, ou seus veículos não sairão do pátio do Detran. Sem a demanda de motores potentes, os investimentos para novos acumuladores minguaram.

Alguém deve estar pensando que isso foi há muito tempo e já não tem valor. Pois se engana. O caso do EV-1, o mais notório de todos, foi quase a repetição. Donos de carros ruidosos e fumacentos usaram a velha mentalidade e espalharam que "carro eléctrico é para mariquinhas". A sociedade retrógrada da maior economia do mundo acatou de imediato. O EV-1 foi vendido na forma de leasing, ao fim do qual deveria ser devolvido à General Motors (isso pegou mal) e, sem a pressão popular em prol daquele carrinho bonito, elegante e arrojado, os "donos" tiveram que devolver. Foram todos destruídos em prensas. Estupidez? E como! Mas estupidez principalmente dos consumidores. Não existe indústria poderosa, organização poderosa, país poderoso, meninas super poderosas. Se nós não compramos deles, eles não têm verba para manter poder algum. Nós (eu, tu, ele, nós, vós, eles) é que damos e tiramos poderes de empresas e governos. Se tivesse havido uma comoção, o EV-1 talvez até tivesse sido descontinuado, mas estariam todos os exemplares ainda rodando, pois ninguém é besta de peitar quem lhes garante os lucros: nós. Ou seja, os electrocidas fomos nós mesmos.

Há, entretanto, uma nova chance aparecendo. Infelizmente ainda são muito caros, mas esportivos eléctricos de alto desempenho e boa autonomia já estão sendo vendidos em algumas partes do mundo desenvolvido. Tendo o triste evento ocorrido há tão pouco tempo, é bem provável que os novos modelos vinguem. Quem sabe a demanda, que é maior do que os fabricantes esperavam, possa baratear e possibilitar um carro familiar.

Mas, ei, há muitos engenheiros mecânicos de talento desempregados! Também há muita gente que não sabe onde gastar seu dinheiro, e que vive reclamando dos ônibus fumacentos e do barulho das metrópoles. Não quero dizer onde cada um deve gastar sua verba, mas se querem melhorar alguma cousa, dêem o exemplo e comecem. Freqüentemente há leilões de carros batidos, pelos quais ninguém dá mais que uma ninharia, mas que um profissional competente consegue facilmente colocar para rodar, em silêncio, sem fumaça e sem marchas. Manhã de inverno em São Joaquim? Blé! Liga a chave e acelera que ele anda, sem essa de aquecer o motor para poder dar partida. Infelizmente o banco já não me dá mais extrato, me dá atestado de pobreza, então não posso ajudar senão com alertas e idéias. Aquela caminhonete só roda na cidade, fazendo entregas? O motor está fazendo dez quilômetros por litro de lubrificante, após a sexta retífica? Tem algum para investir? Acopla um trifásico de vinte cavalos na transmissão, põe um sub-chassi com umas dez baterias e manda ver. O resultado vai surpreender, pois já há gente fazendo isso pelo mundo inteiro, inclusive no brasil.

Talvez eu esteja sendo um pouco subversivo, mas às vezes é necessário uma chacoalhada para as pessoas acordarem. Às vezes precisamos sentir falta de ar puro e silêncio, o que não falta geralmente não tem o valor reconhecido.

O que digo aqui vale não só para o tema do texto, mas para qualquer assunto. Se tu não compras, ninguém fabrica, ninguém se esforça em aperfeiçoar; seja carro, electrodoméstico, brinquedo, programa de televisão, o escambáu. Aliás, sugiro que evitem programas de tevê apelativos, que não acrescentem bulhufas. Eles alienam, gente alienada não reclama e compra o que lhes é empurrado. A retomada das pesquisas não se deu de boa vontade, a legislação contra emissões pesou na balança, agora as montadoras estão em uma corrida pela bateria eficiente, inclusive a General Motors. Alguém pressionou, e pressionou feio.
No fim das contas, ninguém perde com uma evolução. E geralmente são os ranhetas, antes contrários, os que mais gostam quando ela dá os devidos frutos.

09/03/2008

Onirautas V: As cores ocultas.


Muito tempo depois, retomo as postagens e a Onirisséia.

Há um ditado que diz "Até um macaco aprende a desenhar, a composição de uma obra de arte precisa mais que aprendizado". É o que diferencia o artista do mero ilustrador. O ilustrador copia e adapta imagens que já conhece, o artista as concebe. O ilustrador simplesmente entrega o que foi encomendado, o artista lega um tesouro à posteridade. Não vou desmerecer o trabalho árduo dos ilustradores meramente técnicos, sem eles as obras-primas ficariam confinadas aos museus e acervos de milionários, eles fazem cópias praticamente perfeitas e permitem que qualquer pessoa possa ter um Bosch na sala de estar ou no quarto.

O artista, porém, concebe a obra porque já a conhece previamente. Ele já "sonhou" com ela. Muitas vezes o que vai para a tela, ou para a pedra, está imerso na correnteza de desejos e frustrações do artista, não sendo assim o fiel do que ele queria materializar. Por isso alguns artistas de verdade têm chiliques de vez em quando, porque o mundo material jamais consegue prover os recursos necessários para a perfeita execução do trabalho. Não se enganem com aquele amarelo maravilhoso e aquele azul de tirar o fôlego. Nem chegam perto do original.

Dizem os espíritas que, além dos sete matizes que o olho orgânico consegue enxergar, existem mais vinte e cinco. Podem imaginar o que seria enxergar mais vinte e cinco matizes? É como se um cego, de uma hora para a outra, passasse a enxergar aquilo que só conhecia pelos relatos alheios.

Aqui temos, mais uma vez, a importância de se dar valor aos sonhos. Quem o faz recebe idéias muito menos comuns (posto que nada há de original sob o sol) do que os demais. Um sonho, principalmente consciente, nos revela todo o potencial que vai desde nossos instintos mais baixos, até a mais elevada de nossas virtudes. É assim que a aparentes bagunças de Picasso e Miró conseguem encantar, causar espanto, e até arrancar lágrimas dos observadores. São obras que vão muito além do que as palavras (ainda ineficientes, basta ver as guerras) não conseguem, a objectividade mecanicista ignora completamente e conseguem tocar as pessoas lá no âmago, dentro do mais profundo rincão do espírito. Esses dois foram artistas de verdade.

Quem vê as obras de Dali, pode pensar que ele só trabalhava sob efeito de alucinógenos. Não é de todo mentira, a pintura era o seu ópio e Gala, sua alucinação mais cara. Não vou entrar nos méritos de seus métodos, isso é para a imprensa ou a polícia, não me importa agora. Importa ver o que aquele homem era capaz de fazer quando sonhava acordado. Era simplesmente a imagem mais próxima possível de sua psiquê, como também a da maioria das pessoas do mundo. Ele deixava o sonho correr solto. Ilustrava, quando precisava de dinheiro, mas sua fama e fiabilidade artísticas eram firmadas pelos sonhos que ele eternizou na tela. Em vários quadros explicitava seu medo de ser vazio, o medo de perder a esposa, bem como sua religiosidade muito particular. Ele conseguiria isso se fosse meramente acadêmico, passasse horas e horas em um auditório refrigerado, discutindo as mazelas do mundo e a péssima idéia de o homem ter sido criado? Acredito que não. Guernica de Picasso mostrou isso tudo de uma só vez, sem longos e enfadonhos discursos de caráter meramente retórico.

Beleza! Então é só eu tomar um sonífero na veia que fico rico, tio Nanael? Alto lá, eu não disse isso. Há características inatas a serem levadas em conta. Essas pessoas tinham abertura para artes plásticas, não simplesmente uma portinha entreaberta, mas um terreno completamente sem muros, nos quais sonhos e emoções andavam livremente.É aí que entra a figura do ilustrador, que um bom pintor precisa ser. Ele sabe organizar ainda que sob aspecto caótico, todas as nuances que se apresentam durante o sonho e a inspiração em vigília. É o que diz aquela propaganda de pneu, potência sem controle, não é nada. Mas também não adianta ter uma banda de rodagem de fibra de carbono com silicone e usar um motorzinho de enceradeira! Controle sem potência não serve de nada. É aí que o ilustrador precisa deixar eclodir a porção, por pequena que seja, do artista que todos têm. Não que vá chegar a um George Petty, mas a qualidade dos trabalhos crescerá bastante.

Uma característica do verdadeiro artista, é dar graça e encanto aos factos cotidianos, como a obra de William Bouguereau que ilustra este texto. Notem que ele deu vida ao quadro, colocando elementos sutís que uma visão meramente mecânica deixaria passar. A criança fecha os olhos para a visão não ofuscar os outros sentidos, a moça tem um sorriso sereno e terno. Não é algo que um computador conseguiria produzir, só reproduzir. Computadores não sonham.

Quem se habitua a se deixar sonhar, consegue expressar muito melhor e com mais clareza o que sente. Algo muito importante para pessoas com travas de infância, como eu. Se essas pessoas não tivessem essa abertura, teriam perecido muito cedo, pois a força criativa acabaria por sufocá-las, em vez de sustentá-las. É como um medicamento, uma ministração equivocada pode matar em vez de curar. Sonhar não é supérfulo, ainda que em vigília. Há quem confunda sonho com ilusão, geralmente fazendo o mesmo com a fé. Falta-lhes estudar a fundo o que estão dizendo. Ilusão é a impressão de haver algo que não existe de verdade. O que faz um sonho é mostrar do modo mais acessível possível, aquilo que a pessoa não consegue ver conscientemente. Já a fé, ao contrário da contemplação passiva que muitos pensam que ela é, se trata da confiança de atingir o almejado. Até o mais egoísta e arrogante executivo tem fé no que faz, ou não vislumbraria resultados que justificassem seu trabalho.

Aqui vale novamente lembrar que procurem questionar os eventos, quando estiverem sonhando. É a diferença de sonho (ou fé) cego e sonho consciente. O cego tateia e não faz a mínima idéia do que existe ao seu redor, o consciente usa todos os sentidos para explorar o ambiente onírico, com isso sabe o que sonhou e porque sonhou. Resultando em uma obra mais elaborada, quase sempre contando com elementos simbólicos que intrigam quem vê e enriquecem o trabalho. Basta ver a Monalisa, que até hoje gera polêmina, e todos os dias aparece alguém dizendo que decifrou seu segredo definitivamente. Sim, Da Vinci dormia pouco e salpicadamente, mas ele delirava legal, bicho! Meu, o cara sacou o helicópdero, mó viagem! Gênios não precisam dormir para sonhar.

Um pequeno adendo. Fico a imaginar se Audrey Beathan, a famosa Mica Mancada, não se permitisse ter suas onirisséias. Sempre insisto para que ela escreva uma auto biographia, é certeza de que seria topo de vendas por muito tempo. O que ela pinta? Pinta o sete e borda o oito. É uma pessoa que não pode ser deste mundo, ela não foi parida, a mãe sonhou com ela e a materializou.

Muitos artistas de grande talento são sinestetas. Eu não acredito quando dizem que se trata de um fenômeno meramente neurológico, pois ver losangos de seda vermelha enquanto se está ao volante causaria muitos acidentes, se os olhos e o tato fossem os mesmos usados para eventos reais, e o cérebro é muito facilmente enganado por ilusões. Na sinestesia não há ilusões, as sensações existem mesmo. Há mais cousas nesse baú do que o manto colorido que o cobre. Acredito que só nos sonhos os sinestetas conseguem usufruir de todo o potencial de adição de sentidos de que dispõe. A visão que citei não substitui o que os olhos enxergam, é uma visão à parte, como que um terceiro olho aberto, uma segunda pele tateando, uma terceira narina independente, et cétera. Aliás, se algum sinesteta estiver lendo isto, favor comentar e dizer o que lhe parece. A vida deles, apesar de dificultada pelo excesso de informações, é bem mais rica. Não há quadro nem tinta que consiga reproduzir o que eles percebem, mais ou menos como acontece no quadro "Campo de Girassóis" de Van Gogh. Encontraram milhares de tons de amarelo naquelas flores pintadas, tudo tão bem distribuído e organizado, que não pode ter sido acidental. Van Gogh tentou a todo custo reproduzir os matizes que viu quando seu corpo dormia, obviamente em vão. Se ele era sinesteta, não se pode ter certeza, o termo é muito recente e os estudos (que não tentam "curar" a sinestesia com drogas) mais ainda.
Sonho, acompanhado da ação, não é bobagem. Não deixem substituir os teus por drogas ilegais ou de laboratórios famosos. O preço que a vida vai cobrar depois é muito mais alto do que imaginas. Agora sugiro que dê uma busca pela rede, que procure os Norman Rockwell da vida e aprecie com calma as obras, vale à pena. Depois os sonhos saberão recompensar.

25/01/2008

Profissão: Dona de Casa


Esther troca receitas e figurinhas com as outras mães, enquanto espera pelo início da reunião de pais de alunos, quando chega a directora da escola. Sarada, antenada, bronzeada, liberada e outros "adas" saltam aos olhos. Calça de malha preta bem justa, camisão com a estampa "Girl Power", óculos escuros, tênis que custaram mais do que todo o restante da indumentária, enfim, parece dez anos mais jovem do que é. Esther, por sua vez, parece ter saído dos anos 1950; vestido xadrez sem mangas com cintura marcada e sandálias baixas, cabelos curtos e volumosos, falsas pérolas no cólo e uma cor bem mais discreta. A compleição falsamente frágil e o olhar sereno não denunciam seu poderio matriarcal, nem as agruras que suportou com a dignidade de uma rainha, durante os seis primeiros anos de casamento, que também já esteve por um fio. Dona Mirtes, de bermuda jeans e uma camiseta com a estampa de Chê Guevara, entrega a última receita trocada. Sempre comentou o quanto essa directora é eficiente, mas também que não gosta muito de donas de casa, não sabe o porquê.

Quadra cheia, todas sentadas, burburinhos encerrados, a directora começa a falar. Solta as saudações de praxe, dá o calendário de praxe, fala das dificuldades de praxe e praxeia como de praxe. Chega a hora dos tópicos mais aprazíveis, como os testes vocacionais. Esther se espanta com a quantidade de alunos que não fazem a mínima idéia do que querem fazer da vida, ao contrário de seus filhos. Ah, seus pimpolhos nunca tiveram moleza, mas os mimos maternos foram proporcionais à dureza imposta, Sarah quer ser ilustradora e Jacob arquiteto. Pensa que os dois poderão até trabalhar juntos, pois um terá a técnica e a outra o talento para promover a produção. A voz da locutora fica mais grave e os devaneios passam...

- Mas muito me preocupa a quantidade de meninas que não sabem o que querem fazer! Ao que me parece, elas não estão recebendo a orientação adequada em casa, porque é justo onde algumas delas querem ficar! Querem viver às custas de um homem, em vez de trabalhar!

Agora ela acertou no fígado. Esther é dona de casa por opção, vê isso como um sacerdócio que abraçou de boa vontade. Mirtes sai de fininho, quando vê no rosto da vizinha a sombra de seu gênio. É uma mãe exemplar, cuida das finanças da casa como se fosse mágica, seus filhos estão sempre bem arrumados, o marido sempre alinhado, ela mesma sempre impecável e a casa, esta sempre como se fosse um comercial de margarina. Mas a imagem de submissão passa longe dessa mulher. Ela mesma plantou uma muda de marmelo para ter bons correctivos para a família, manuseia rodo e vassoura com uma agilidade marcial, detendo eventuais fugas de seus rebentos antes que saiam do seu alcance, até o mastim Israel sabe pelos olhos quando é seguro se aproximar de sua senhora. Enfim, ela é a soberana de sua família e não se ouve contestação, enquanto as outras mães enfrentam o inferno da adolescência rebelde sem causa. Mas ela dá a contra partida, exige disciplina e dá o exemplo. É uma mulher bonita de encher os olhos, sabe andar com elegância, comer com classe, se levantar com dignidade de um tombo. Não xinga, age. Pois essa "directorazinha atrevida está pedindo e vai receber"...

- Não se ofendam as frustradas aqui presentes, mas aspirar prendas domésticas, é querer ser prostituta de um homem só...

Esther se levanta. Mirtes começa a rezar. Esther avança com a calma mais falsa e traiçoeira do mundo, a directora só a percebe quando ela sobe ao palco e, antes que peça para voltar ao seu lugar, recebe um gancho no maxilar que a desacorda...

- A tua mãe talvez tenha sido prostituta de um homem só, posto que não se preocupou em te ensinar o respeito ao próximo, mas aqui somos todas trabalhadoras.

Olha para as outras mães, toma o microphone e usa uma de suas armas, o tom de voz com o qual dá aos filhos o primeiro aviso...

- Amigas, lamento ter interrompido essa revoltinha fútil que vocês estavam absorvendo tão placidamente. A discussão é o futuro profissional de nossos filhos? Então vamos conversar de mãe para mães. Eu sou dona de casa, a maioria de vocês me conhece, às demais sou Esther Gutemann, mãe de Sarah e Jacob, os melhores amigos que seus filhos podem ter. Escolhi essa carreira de livre e espontânea vontade, sou pharmacêutica de formação. Trabalho vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, mais hora extra a cada quatro anos. E querem saber? Eu amo isso. Reconhecimento? Não, eu não espero. Férias? Eu sabia que não as teria quando Sarah me acordou pela primeira vez, às 02h43, para mamar. Salário? Eu já trabalhei fora, mas quando Joseph conseguiu o emprego que um homem de verdade como ele merece, decidi me concentrar nos meus filhos. Eu acordo cedo e não tenho hora para dormir, vejo no escuro um grão de poeira fora do lugar, sei de cor e salteado o que há e o que falta na despensa, sei de todas as visitas médicas e odontológicas de cada um de nós, inclusive do nosso cão ao veterinário, pelos próximos doze meses. É, eu sei que é uma vida dura, mas mais dura sou eu. Não pensem que mantenho este corpo e esta pele nas academias. Não, minhas amigas, esta forma física é fruto do trabalho doméstico. Só que eu preciso representar a minha família, sou a embaixadora e cartão de visitas da casa. Por isso mesmo tenho truques que vou dividir com vocês, para não estragarem as mãos e os cabelos durante a labuta. Como ia dizendo, ser mãe é um sacerdócio, não é para qualquer um. Por isso metade da população nasce homem, e a outra não atinge os cem por cento de adesão. Aprendi a ser dona de casa com minhas ancestrais e estou ensinando Sarah. É uma missão de suma importância, pois somos nós, mães, que educamos ou estragamos nossos filhos. Eu não vou deixar uma empregada ou a escola educar meus filhos, é função minha. Se eu falhar, eles também falham. Vocês estão enfrentando a tal crise da adolescência, não é? Pois eu não sei o que é isso. Há coisas que um bom psicólogo conserta, mas as outras precisam ser cultivadas, como a disciplina, o respeito pelos outros, a responsabilidade, o gosto pelo trabalho, a honestidade, a paciência e o amor à família. Por favor, sem hipocrisias. Não sou governista, militarista, direitista-esquerdista, terra-a-vista ou coisa que valha. Sou mãe, dona de casa, estou formando dois cidadãos de fazer inveja aos suecos, é isso que uma dona de casa faz. Não precisa ter a dedicação exclusiva que eu tenho, mas precisa se dedicar. Por melhor que esteja a novela, o drama da televisão não vai afetar a sua vida, o da sua filha vai; por mais colorido que esteja o shopping center, os problemas do seu filho podem acinzentá-lo se não forem cuidados. Para nós, adultos, os dramas dessas crianças podem parecer bobagem, mas para elas é muito importante. Isso desde que aprendem a falar, não só quando começam a procurar problemas.

Eu sei o quanto cada uma de vocês é desvalorizada. Eu sei o quanto os homens preferem o objectificado, até que levam um par de cornos e reclamam da sorte. Eu sei muito bem o quanto este mundo machista e degenerado desrespeita a nós mulheres. Mas acreditem, boa parte da culpa é nossa. Eu já disse que somos nós que educamos ou estragamos nossos filhos, pois não estragamos só pelos mimos, mas também pela omissão. Se vocês não os educam, o mundo insensível e materialista lá fora vai fazê-lo à sua maneira, sem se importar com os estragos. Outro erro crasso que muitas cometem é querer competir com os homens. Por Moisés, isso é ridículo! É um general receber ordens de um recruta novato. Algumas chegam ao extremo, como esta pessoa aqui deitada, e se tornam tão agressivas e masculinas quanto eles. Esta pessoa que agora ronca feito uma motosserra afogada, é um homem de vagina. Homens não sabem educar, com raríssimas exceções, nem a si mesmos. Imaginem um mundo educado por eles: materialismo, imediatismo, desconsideração para com o próximo, busca por prazer físico a qualquer custo. Viram isso tudo em alguma manchete de jornal? mendigos queimados, bad-boy-olas quebrando boates e miando fino nas delegacias, uma juventude que acha que ser sincero é ser rude, que despreza quem trata bem o tempo inteiro, chama de falso quem não tem o que maldizer de alguém. Jacob já foi expulso pelos colegas, durante a educação física, porque apazigua os ânimos nesta escola, foi um trabalho danado em casa. E quando tudo isso começou a se dar? Não estou ouvindo? Começou quando nós passamos a agir pela lógica masculina do cada-um-por-si-e-todos-contra-todos. Falta a mão da mulher na sociedade de hoje. Competir o tempo todo é patológico, minhas amigas, mas essa juventude de agora não aceita se não for assim.

Eu não sou uma cortesão em minha casa, sou a Senhora de minha casa. Eu mando, a família obedece, é assim que tem que ser. Não precisávamos ter abandonado isso para ter nossas conquistas, muito pelo contrário, somos perfeitamente capazes de trabalhar fora (como já fiz) e manter a glória de nossa feminilidade à pleno vapor. Vamos, repitam comigo: fe-mi-ni-li-da-de. Feminilidade não é fragilidade, da mesma forma que prendas domésticas não é um eufemismo para prostituição. Eu conversava até ontem com a Dona Mirtes, o quanto essas actrizes novas estão feias! Você olha para elas e vê uma agressividade, que aprece que têm medo de serem mulheres, né, Mirtes?

- Nem me fala, menina, parece até homem capado! O meu sobrinho, o Nêgo, gritou que tavam mostrando uma actriz pelada e o Valti correu pra sala... e broxou. Falou que até a vassoura de palha do quintal é mais mulher, precisava ver. Umas não têm carne, outras é tudo empelotada, que horror!

- Ou seja, parecem homens. Mães, não tenham vergonha das prendas domésticas. Ninguém deve ser obrigado a assumir, mas quem assumir que o faça com amor. Três décadas sem essa profissão nos renderam pelo menos quatro gerações de pessoas egoístas, insensíveis, obcecadas pela beleza (é, deturparam a palavra) e juventude, vovôs que se recusam a envelhecer com dignidade e fazem plásticas como quem faz maquiagem. Essa "felicidade" artificial custa caro! E não resolve. Querem mesmo que seus filhos tenham um mínimo de chance na vida? Assumam-nos. Punir é desagradável, mas às vezes é necessário. Acordar às seis da manhã não é sacrifício coisa alguma. Menino deve saber cuidar da casa sim senhoras, ou não saberá dar valor ao que vocês fazem. Não perguntem aos seus maridos se eles querem jantar fora, simplesmente marquem e pronto, vocês têm o orçamento da casa e sabem o que podem gastar. Aprendam a diferenciar sensualidade, sexualidade e vulgaridade, porque as moças não estão sabendo, e os garotos... Bom, dois bilhões de neurônios a mais só servem de peso morto mesmo. Não, ninguém precisa se vestir como eu, isto aqui é um capricho meu e uma praticidade na hora de ir ao sanitário, mas não é isso que me torna uma dona de casa. Se vocês forem as donas de suas casas, ficará muito mais fácil serem mães de seus filhos, que saberão melhor o que querem ser na vida. É uma ocupação bonita, que precisa de pulso, mas não é um bicho de sete cabeças. E então, vamos às dicas? Mirtes, vamos deixar esta pessoa dormindo enquanto passamos nossas receitas de beleza. Nada de coisas caras, só truques domésticos...

10/01/2008

Quando vi o Titanic


Não se impressionem com o título, não sou tão velho assim. Me refiro ao famoso filme que consumiu uma jamanta de dinheiro para contar uma estória (o romance impossível) e uma história (o naufrágio mais famoso do mundo) em uma só película. A Melzinha pediu que eu escrevesse, para o quê convidei as professoras Fabiana e Lisa e professor o Fio para darem continuidade ao tema. Vamos lá.

Quando vi esse filme, estava na sala de casa, com a fita passando no video cassete... é, naquele tempo não tinha devedê para qualqer um, tinha que ser em fita magnética mesmo. A reconstituição de época foi o que mais me impressionou, e também foi o mínimo que poderiam ter feito pela fortuna gasta. Figurino virtualmente perfeito, a escandalosa separação de classes logo na entrada do navio, aquele carro (que não identifiquei) sendo içado à bordo, enfim, pelo menos um pouquinho de belas imagens eu vi que teria pela frente.

Um pouco de melodrama também era esperado, a bélle époque estava no auge que só seria quebrado pela Primeira Guerra Mundial. Bem... Bélle Époque para os europeus ricos, o resto do mundo estava um rebuliço só, que desembocou na revolução russa e tudo mais. Ainda assim a produção justificou seus custos, dando realismo à fantasia. Quando a nave se partiu, popa e proa afundaram separadamente (como é na vida real) e geraram turbulências no mar gelado (como é na vida real) que sugaram para o fundo quem estava por perto, mesmo os que tinham fôlego sucumbiram, pois estavam cercados por água gelada e não conseguiram reagir quando o turbilhão se desfez. Foi certamente o pontapé para Hollywood voltar a fazer filmes acima da linha do medíocre.

O texto poderia terminar por aqui, mas não seria o eu se asssim se desse. Um filme que valha à pena sempre me dá material para reflexão. Primeiro a arrogância: "Nem Deus afunda o Titanic". Não foi necessário, bastou um pedaço de gelo para isso. Foi encontrado na chapa do casco um teor de enxofre muito acima do normal; o enxofre, no aço, causa fragilidade quando o material está frio. Houve falha grave no controle de qualidade. Talvez a tragédia pudesse ter sido evitada se não fosse pela arrogância, esta que causou um descuido só tolerável se feito por leigos.

Segundo: a inoperância dos sistemas de contenção. Seja qual for o motivo, as comportas não foram fechadas, o que permitiu à água invadir todo o gigantesco navio. Fechadas, permitiriam que flutuasse com segurança até Nova Iorque. Mas lembremos que era a Bélle Époque, o "suicídio por amor" estava muito em voga. Alguém queria se ver livre de seus problemas e viu no naufrágio uma chance, sem se importar com o destino dos outros. Se foi esse o caso, o capitão se tornou um suicita e um genocida ao mesmo tempo.

Terceiro: não foi o primeiro filme sobre o tema. No mesmo ano um filme alemão (O Último Baile, se não me engano) narrou muda e muito romanceadamente o naufrágio do Titanic. Os efeitos especiais eram meramente demonstrativos, coisa que qualquer um faz actualmente, mas o figurino de época é imbatível, até porque foi naquela época que tudo aconteceu. Muitos outros fizeram a mesma coisa, nenhum com o sucesso do filme tema deste texto. Mas prefiro os documentários.

Quarto: a diferença temporal. Naquele tempo as pessoas, se quisessem ter um pouco de liberdade, tinham que lutar mesmo, às vezes no sentido literal da palavra, pois a desobediência poderia custar-lhes suas vidas; ainda que o assasino fosse todos os domingos à igreja rezar. Dava-se muito valor a cada conquista pois cada uma custava caro. Acredito piamente que falta isso, hoje em dia. Falta uma pitada de dificuldade de verdade, não me refiro à injustiça, mas às dificuldades do dia-a-dia; girar uma manivela para descer o vidro do carro, se levantar para trocar de canal, mastigar um alimento mais consistente para se nutrir, caminhar um mísero quilômetro para ir a qualquer lugar em vez de esperar uma hora pelo ônibus, et cétera. Tudo ficou fácil demais. Até sexo ficou fácil demais; difícil é conseguir não ter tudo isso, pois te empurram goela abaixo, te fazendo se sentir um idiota se não quiseres. Resultado: nada mais satisfaz, as pessoas estão sempre insatisfeitas, o que é porta aberta para os vícios.

Quinto: em decorrência do anterior, as pessoas tinham mais paciência. Alguém que não esperasse uma semana para receber uma carta era afoito, hoje estranham se aceitamos esperar até o dia seguinte por um e-mail. Todos querem fazer tudo ao mesmo tempo, acabando por não fazer cousa alguma que preste. Andar a cem por hora em uma viagem é suplício, querem andar a duzentos para chegar em meia hora. Paisagem? Blé! Se quer é "curtição", aproveitar(?) tudo de uma só vez, mesmo sem saber realmente o porquê. Por que ficar meia hora ao pé do fogão se a pizza chega rápido? E já vem com pratos descartáveis que entupirão o aterro sanitário, que fica longe de casa, portanto não vejo, portanto não me importo. Ficamos muito mal acostumados, isso é porta aberta para conservadores radicais e perda paulatina da liberdade individual.

Quando aparecer um filme de época ou da época, preste atenção nos hábitos. Não nos tabús, nos hábitos cotidianos. Os antigos têm muito o que nos ensinar, eles não cometeram somente erros. Os vilões do filme eram e sempre foram minoria, ou os macacos já teriam tomado conta de tudo desde a Idade Média. Nós é que temos o mau hábito de dar mais crédito aos maus do que aos bons. Porque, se não aprendermos com os erros deles e também com seus acertos... Talvez já seja meio tarde, pois coisas bem piores que aquele naufrágio já acontecem diáriamente e já achamos normal. Ficamos mal acostumados. A infância precisa de um limite para terminar, mas ela é necessária até o fim.

Bien, os passageiros do Titanic sabiam que a carne que consumiram não era feita em máquinas de lanchonetes, que seus pratos vinham de ceramistas e metalúrgicas, que a lã que vestiam não dava em árvores. Sabiam que cada coisa tinha uma origem e, portanto, também um destino. Por isso mesmo tinham mais intimidade com o mundo e o aproveitavam muito melhor do que qualquer um de nós. Eu sei que usar aqueles vestidões de vários quilogramas é terrível, mas não foi disso que falei. Falei do valor a cada pequena coisa, do aprendizado que pequenas dificuldades oferecem de graça, da vida saudável que o excesso de ofertas já não nos permite ter sem que paguemos caro por ela, um tratar com cortesia como hábito arraigado e outras ranhetices típicas minhas. Nossos antepassados sabiam disso, só não poderiam prever que usaríamos tão mal o fruto de seu trabalho. Hoje pouco resta do navio verdadeiro, em menos de oitenta nos será só uma lembrança, espero que o mesmo não se dê com o que nossos avós queriam nos dar, pois isso não se compra no shopping center.

15/12/2007

Quando criança...


Quando criança, eu sabia que o Oriente Médio estava em guerra, sabia o que era inflação, que os políticos eram odiados, que os militares faziam vistas grossíssimas para a corrupção, que as pessoas morriam e que se precisava trabalhar para ter dinheiro.

Quando criança, eu ficava atento aos noticiários. Via manchetes de atropelamentos, de secas prolongadas no Nordeste, tinha consciência da poluição e de seus efeitos, que as pessoas trocavam gente por dinheiro e que tudo quase sempre ficava por isso mesmo.

Quando criança, eu sabia que haviam pais que não gostam de seus filhos, filhos que odeiam seus pais, de famílias que se desmanchavam na luta pela (quase sempre minguada) herança deixada, que era comum haver uma festa quando um parente abandonava a casa e que não tardavam a encontrar um ocupante para o seu quarto.

Eu gostava de desenho animado. Aprendia a me comportar com as philosophias deles, que eram baratas, mas que funcionavam muito melhor do que as longas e enfadonhas teorias empurristas das escolas actuais. Eu estudava para poder passar de ano.

Eu não me preocupava demais com o futuro, tinha esperanças de que alguma coisa aconteceria para mudar o quadro apocalíptico que eu previa. Acreditava quando diziam que dias melhores viriam, que o passado não servia mais, et cétera. Mas gostava das reprises de "Os Três Patetas", Carlitos, Jerry Lewys, entre tantas. Me divertia com aquelas roupas e aqueles carros antigos.

Eu gostava de desenhar, de ir para a escola, era voluntariamente educado e solícito, ainda que me tratassem com desprezo. Eu sabia que um dia ninguém mais daria importância aos sentimentos alheios, no andar da carruagem. Mas tinha esperanças de que poderia ajudar a mudar isso, pelo menos um pouco.

Eu gostava de brincar sozinho, de imaginar um mundo onde haviam problemas, mas no qual os mesmos eram tratados imediatamente. Nunca de bancar o herói indestructível, tanto que os outros garotos não gostavam de brincar comigo, pois também não aceitava isso deles. Mas eu não esquentava muito, logo estava novo para outra, mas sozinho.

Apesar de ter os pés tão firmes no chão, eu gostava de sonhar acordado. Fazia projectos, esperava ter vida própria quando adulto, uma casinha de muros baixos, uma furreca para passear... Ainda conseguia ficar à parte do mundo horroroso que estava se formando. Adolescentes ainda se encrencavam porque procuravam diversão, não porque queriam causar sofrimento. Bandido ainda tinha medo da polícia, não a população. Mas o embrião da Falange Vermelha já se formava, bem debaixo da negligência estatal. Mas eu ainda consegua ficar à parte do mundo sombrio que se formava. Até porque, se eu falasse de meus temores, ninguém acreditaria. Era criança, achavam que com um pirulito as minhas preocupações seriam eliminadas.

Hoje sou adulto. Um adulto triste. Os conflitos do Oriente Médio se alastraram e atingiram o Ocidente, o fim da inflação galopante não trouxe alívio social, a Terra está reagindo com violência à agressão do último século, acha-se normal mandar pais de família para a miséria para ficar mais competitivo (e ninguém boicota a empresa por isso) em países que usam mão-de-obra escrava, enfim, só vejo alguma beleza quando olho pelo retrovisor.

Eu sabia que isso iria acontecer, que as pessoas menosprezariam uma boa idéia se ela demandasse um pouco de reeducação pessoal, que ser gordo deixaria se ser sinônimo de saúde, que as pessoas pagariam para obedecer capangas de boates, que muitas máscaras cairiam e nem assim os traseiros enormes sairiam do sofá da sala de televisão.

Eu sempre fui uma criança retraída, melancólica e até bucólica, avessa às visitas e insuportavelmente conciliadora. Nunca gostei de photographias, o anonimato me dava mais conforto do que a notoriedade. Ainda que não se tenha dado o devido valor, era obediente e sempre assumia meus actos. Não queria me tornar como o mundo que estava se formando, tinha que me corrigir desde cedo.

Ainda gosto de desenhar, de rever os desenhos antigos (pois os de hoje, pelamor da bicicreta-véia-zangada) pela enésima vez, gosto de desenhar, escrever, de visualizar um mundo com problemas e soluções postas em prática. Não gosto deste mundo que, apesar dos avanços, tem habitantes mais mesquinhos e egocêntricos que os que se foram. Ecologia virou moda, sem isso a militância seria medíocre, bem como as ações sociais. Eu via lotes vazios aos montes e não aceitava que tanta gente precisasse de uma ponte ou uma marquise para dormir. Qualquer um poderia ver que aquilo não se sustentaria.

Nem tudo mudou em mim. Sou um adulto retraído, avesso à notoriedade, não gosto de photographias, adoro aquelas reprises e ainda tenho previsões sombrias.
Quando criança, contudo, eu tinha esperanças de estar errado.

01/12/2007

Camisinhas e camisolas


Esta é uma postagem de caráter coletivo. Uma contribuição singela ao movimento de incentivo ao uso de preservativos como meio de evitar a transmissão, com conseqüente infecção, de doenças venéreas, principalmente a Aids, ou Sida para os irmãos da terrinha.

Antes que achem que estou puxando brasa para a minha sardinha, devo dizer que sou virgem, sexo não me faz a menor falta, logo a camisinha não tem utilidade alguma para mim. Faço este trabalho aqui pelos que precisam dela.

A despeito des alguns sacerdotes e sacerdotisas cristãos que já perceberam que ainda não estão no céu, portanto precisam lidar com as coisas do mundo como quem está no mundo, as altas cúpulas do cristianismo teimam em repetir os mesmos erros de seus fundadores, os romanos antigos e antiquados. Usar a imagem alheia, como o Cristo Redentor, para difundir meias verdades é praxe da política romana.

Não se pode ter a ilusão de que uma juventude (mal) educada pela mídia e pelo mundo, cujos pais acham lindo a filha de nove anos se vestir e comportar como uma dançarina de axé, vai saber esperar que a mente acompanhe a maturidade de seu corpo. A rigidez mental e a arrogância julgadora impedem que o alto clero saiba tratar cada um de acordo com as suas capacidades, não de acordo com o que acham que deveriam ser.

Se é um mal, então que se escolha o mal menor e mais fácil de ser reparado. Abstinência é sim a única forma cem por cento segura de se evitar a gravidez, mas não uma infecção, esta pode ser adquirida em um acidente grave, um exame de sangue ou mesmo no parto. Temos então uma forma razoávelmente segura de evitar a transmissão de uma doença: CAMISINHA. Não é só a deficiência imunológica, toda e qualquer doença viral ou bacteriana pode ser transmitida durante a penetração, muitas vezes é algo que o transmissor não sabe que tem, talvez por ser imune. Todos temos alguma doença em algum nível e não sabemos. Mas é algo que o organismo de cada um tolera sem problemas, o que pode não acontecer com outro, onde o agente infeccioso pode encontrar campo aberto para proliferar e gerar uma doença.

Pés no chão que é onde estamos, por enquanto. Da mesma forma como as pessoas deveriam ser acostumadas desde cedo com a idéia da morte, também para o sexo deveria haver um aprendizado sem barreiras desnecessárias para cada idade. Isso sim seria uma verdadeira matéria de Educação Moral e Cívica, pois gente ciente dos riscos e conseqüências se seus actos, dificilmente se transforma em delinqüente. Ensinar que o outro sente prazer, mas não à força nem à nossa vontade, que o outro tem outras necessidades que não a nossa companhia, et cétera. Mas toda essa mudança passa necessáriamente pela educação sexual (que nada tem a ver com a da tevê) e pela familiaridade com métodos de proteção.

Padres e freiras precisam ter um comportamento muito contido por questões espirituais, que não cabem neste texto, noutro quem sabe. Mas as pessoas comuns, em sua maioria, precisam de uma actividade sexual regular, cada um com seus próprios motivos, mas precisam pelo menos umas três ou quatro vezes ao ano. Não incentivo a promiscuidade, sou muito à moda antiga para esse desespero actual de sair lambendo beiços de qualquer um em uma festa de rua. O que tenho é consciência de que estou em um orbe ainda de aprendizado, no qual as pessoas precisam errar para saber o que não devem fazer, mas sem riscos desnecessários. Não se pode exigir que se comportem como se já fossem anjos, pelas nozes do Boyne! Falar em prevenção sem falar nem permitir a presença de preservativos é estupidez, muito mais do que hipocrisia e irresponsabilidade. Isso aliena. Brasileiro já tem uma resistência cretina à camisinha, não precisamos que estraguem mais o quadro já difícil.

Vamos viver, patota, escolham seus pares, sejam fiéis, mas não confiem que a fidelidade os protegerá de uma doença que o outro desconhece ter. Se não quiserem ter filhos, usem camisinha, cantem como o Chacrinha: "Bota camisinha, bota, meu amor. Hoje está chovendo, não vai fazer calor...". E olha que ele cantava isso nos anos 1970! Um escândalo para a época.

Antes que alguém rasgue as próprias vestes, fingindo horror e dizendo "no meu tempo não tinha isso", saibam que camisinha é mais antiga do que se imagina. Os egípcios antigos usavam, mas não as de látex, eram de tripa de bode costurada. Era para não dar bode para o faraó. Então é melhor a Senhora ensinar à tua filhota, antes que a rua o faça de modo totalmente deturpado e incompleto. Porque se a Senhora não o fizer, eles só ensinam (e vão ensinar se houver omissão) a parte da festa, não ensinam a arrumar a bagunça. Adolescente só tem tamanho, vocês pais deveriam estar carecas de saber, eles precisam de sua orientação, ainda que seja um acompanhamento até o profissional de saúde competente, e esse profissional vai falar em camisinha. Sim, minha Senhora, não tem jeito mesmo, teus lábios imaculados terão que falar em coisas como sexo, dst, gravidez e muito mais. Mas não fique triste, quem sabe a confiança gerada faça tua filha se interessar finalmente pelo livro de receitas que tua bisavó começou. Sim Senhora, quem fala responsavelmente a esse respeito com os filhos ganha sua confiança, não são só espinhos.
Para terminar, uma orientação da Vigilância Sanitária: Todo e qualquer preservativo deve ter o selo do Inmetro e registro no Ministério da Saúde. Não poupem centavos comprando uma camisinha contrabandeada que faz "fon-fon" a cada movimento, pode ser engraçadinha, mas não serve para o sexo.

02/11/2007

Mudar? Não; Evoluir




Saudações, caros leitores. Este blog já tem um ano e meio.


Não fiz absolutamente nada de especial por motivos próprios, coisas de Nanael mesmo.


Gosto muito de melhorar a mim e ao que me cerca, mas mudar é outra história. Parto do princípio de que nós nunca conseguimos usufruir de tudo o que o mundo consegue oferecer, de que sempre há um ponto de vista que não experimentamos, enfim, sempre haverá algo a aproveitar para um bom observador. Ao contrário do que pode parecer, querer usufruir de tudo ao mesmo tempo, como está muito em voga, é não aproveitar coisa alguma do que se poderia em doses bem pesadas. O corpo humano não suporta excessos, na verdade não consegue detectar muitos estímulos simultâneos, se atendo aos mais urgentes.


Primeiro vamos ao meu conceito de mudar. Mudar é modificar a essência da situação; Quem muda de casa estará trocando completamente o endereço, qualquer carta que seja enviada para lá, não encontrará o destinatário; Quem muda de comportamento altera até mesmo o modo como as pessoas a enxergam, levando muitas a se afastarem e outras a se aproximarem, modificando completamente a vida da pessoa; Quem muda de aparência estará trocando de identidade, pois as pessoas vão sempre associar o visual anterior ao comportamento que vêem agora, por mais que tentem não ficarão indiferentes à novidade.


Agora a evolução. Evoluir é aprimorar, tornar mais apto; Quem aprimora sua casa poderá continuando a receber as cartas no mesmo lugar, só que vivendo melhor; Quem aprimora seu comportamento poderá não só continuar com os amigos antigos, como ganhar novos; quem aprimora a própria aparência está reafirmando o que é, deixando claro que a efemeridade do mundo não vai lhe afetar tão facilmente.


Tanto a mudança quanto a evolução podem ou não ser boas, mas quando uma coisa é boa eu prefiro aprimorar a modificar. Este blog, por exemplo. No começo eu sequer colocava títulos nos textos, agora têm até ilustrações! Foi um aprimoramento. Sim, não sou um sucesso de acessos, como essa patota aqui:




Entre outros que minha pérfida memória não me permite enumerar. Mas a minha proposta nunca foi ser um campeão de visitas e ganhar dinheiro com isto aqui, foi simplesmente apresentar minhas idéias do melhor modo que eu puder. Tanto que ainda nem sei embutir o endereço das páginas em uma palavra-link. Mas isso é para uma evolução já agendada.



A questão é que, para mim, mudar sem haver o firme propósito de melhorar é nocivo. Eu não sei simplesmente colocar uma figurinha legal lá em cima, na cabeça do blog e ficar rindo de como ficou bonitinho. Eu preciso de uma função para a mudança, ainda que seja facilitar a leitura ou apenas tornar o aspecto mais agradável. É isso que chamo de evolução. Para muitos a simples troca do nome de apresentação já causa um bem-estar imenso, mas não para mim. Eu fico com remorsos. Me sinto tendo traído a mim e às minhas convicções. Preciso de uma função para justificar uma mudança.



Por isso mesmo eu lamento informar aos que já se enjoaram, mas o papel de parede que escolhi para a minha página ficará aqui por um bom tempo, até que eu encontre cousa realmente melhor. Confesso, eu não sei mexer direito nesse negócio de internet e suas linguagens exóticas, mas isso é apenas un dificultador para o que já não quero fazer. Assim como continuarei a escrever philosophia enquanto as duas graphias indicarem a mesma coisa.



Mas eu já efetivei mudanças em mim. Sério. Há até quinze anos eu me vestia como qualquer um; jeans, camiseta, tênis, et cétera. Só que a camiseta ficava sempre para dentro das calças. Me diziam para ficar mais "à vontade" e eu retrucava que não ficaria à vontade transformando uma camiseta em minissaia. Bem, aos poucos parei de usar isso e hoje só compro camisas pólo, o resto é de alfaiate. Tênis? Não, obrigado, fico com um bom e confortável par de sapatos de primeira linha, que actualmente custa bem menos. Encontrei aí o meu visual anos 1960 que uso até hoje. O aprimoramento é o uso de canetas-tinteiro e relógio analógico. Parece um retrocesso, eu sei, mas foi uma boa mudança acompanhada de uma boa evolução. Isso me fez bem tanto quanto o refinamento dos meus modos, tanto à mesa quanto na lida pessoal. Assumi o tiozão que eu tentava reprimir sem saber direito o porquê, mas liberei o aparente conservador que sou. Digo aparente porque, bem, já estou explicando neste texto. Sou infinitamente progressista e democrático, mas não confundo liberdade com libertinagem. Por mim as pessoas poderiam andar nuas, em locais onde isso não ofereça riscos. Me disciplino para não cair nas garras aparentemente bonitinhas dos modismos, para não perder minha identidade. Quando for o momento de mudar, mudarei sem esitar. Não antes.



Gosto muito de uma boa rotina, isso talvez explique boa parte da minha resistência às mudanças, principalmente às desnecessárias. Pois mudar custa muito mais do que aprimorar. Para mudar com sucesso é preciso haver um bom planejamento, ou uma grande e urgente necessidade. Seria bom, por exemplo, ter dos anos 1950 a mesma proximidade e boa educação, a mesma qualidade dos productos, mas com as boas conquistas que há hoje. Uma coisa boa não precisa excluir a outra, isso é evolução.