Talvez não seja exactamente aquilo que gostaria de ser, mas quem é? Oxalá fosse um oitavo do que poderia ser.
Talvez não deja exactamente aquilo que os outros gostariam que eu fosse, mas quem é? Oxalá tivessem uma razão razoável para exigirem isso de mim, ou de qualquer outro. Exijam de si mesmos.
Talvez não goste da vida que levo. Por mais resilente que seja, sempre há um desconforto agudo que não consigo solucionar. Mas por que me culpar? Ainda se a culpa resolvesse algum problema.
Talvez não devesse menosprezar o mundo. Mas não gosto dele, o que hei de fazer? Acho-o grosseiro demais, feio e desnecessariamente agressivo. Tolero.
Talvez devesse me esforçar mais para saber o que as pessoas esperam de mim, isso melhoraria minha sociabilidade. Mas não consigo saber nem o que eu espero de mim! E não devo coisa alguma à sociedade.
Talvez eu esteja envelhecendo mais depressa do que seria desejável. Ou será que tenho razão? Deus queira que não, detesto ter razão. Quando acerto é porque se trata de alguma tragédia ou um prejuízo, então fico o dia todo a ouvir aquela ladainha: "Você tinha razão", como se isso ainda adiantasse de alguma coisa. Não quero ter razão, quero resolver o problema!
Talvez não tenha sabido perdoar as pessoas a contento, ainda que elas me infrinjam uma ferida sem nem dar tempo de a outra cicatrizar, para depois virem me pedir ajuda na primeira crise. Afinal, se pedem ajuda é porque precisam, ainda que suas consciências digam que não merecem.
Talvez não tenha sabido me perdoar. Meu caminho parece ser muito íngreme e inóspito para a maioria. Essas duas qualidades não admitem muita margem para erros, mas eu erro, ou não estaria aqui. Aliás, estou aqui a contragosto, reencarnei com solenes protestos.
Talvez nem goste de mim. Pode ser isso. Olho no espelho e raramente não me entristeço com o que vejo, minhas photographias sempre me deixam mais estúpido do que realmente sou, com cara de vítima.
Mas não tenho certeza nenhuma.
03/02/2007
29/01/2007
Ave Bertha

O céu ainda estava escuro. Ela acordou os filhos, mandou que fizessem silêncio e levou-os ao carro. Empurraram-no por um bom caminho, a fim de não acordarem Karl, mesmo sob protestos dos petizes. Quando estavam a uma distância suficientemente grande para não acordá-lo, então sim começou a aventura...
-- Eugen, dê a partida e suba rápido.
Lá foi o adolescente (se bem que o termo não se usava na época) girar a imensa manivela, sorte que o motor era pequeno e leve, como o carro. O motor pegou e ele subiu ao banco com a mãe e o irmão.
Em momento algum foi uma viagem tranqüila e agradável, pelo contrário. Andando a quatorze quilômetros por hora (quando embalava) muito antes de inventarem a surdina e com aquele cheiro de fumaça mal queimada a entupir o nariz, só uma coisa motivava Bertha Benz: salvar o sonho do marido e ir à desforra. Lembrava-se bem do comentário de um jornal fancês: "Ridículas as invenções dos senhores Daimler e Benz (...) estão fadadas ao rápido esquecimento".
A primeira rampa provou que 3/4 de cavalo não empurrariam trezentos quilos mais passageiros morro acima, não sem uma caixa de câmbio que ainda não existia. Foram Bertha e Eugen empurrar, enquanto Richard acelerava tudo. No alto do morro os dois, cobertos de fuligem, embarcavam e conheciam outro drama: os freios eram tão potentes quanto o motor...
-- Rezem, meninos, rezem!
As rezas deram resultado e a viagem seguiu na mesma dificuldade. Os problemas variavam entre ter que comprar limpador facial (benzina), já que não havia postos de gasolina, nem gasolina havia, encontrar água para pôr no motor, já que era refrigerado por evaporação da mesma, consertar a correia de tração e repetir para si mesma "Eu amo aquele homem, eu amo aquele homem, eu amo aquele homem...". Usar o alfinete de cabelo para desentupir o duto de alimentação, que futuramente originaria o carburador, nem foi tão dramático...
-- Vocês dois, olhem para lá.
E lá se foi um elástico da cinta-liga, provavelmente para substituir uma mola perdida ou quebrada.
Chegou e foi escoltada pela polícia, que via naquela engenhoca maluca um evento sobrenatural, até a casa da mãe...
-- Bertha!!! Meu Deus!!! O que aconteceu com vocês?!!
-- Depois conto, mamãe. Posso tomar um banho?
-- Entrem... Que diabos é aquilo? É coisa do seu marido não é? O que o estafermo inventou desta vez?
-- Uma carruagem auto-móvel. Eugen, Richard, assim que mamãe sair do banho, vocês entram.
Em poucas horas Karl Benz descobriu o que acontecera com a esposa, os filhos e sua invenção tão difamada. Recebeu uma carta de Bertha, pedindo peças de reposição e avisando do sucesso da primeira viagem de carro da história. Claro que ela e a história só revelaram o teor bom da carta, o que ele deve ter ouvido ficou entre os dois.
Os diálogos são uma licença satiropoética, mas refletem o que aconteceu de verdade com aquela que se tornou a primeira motorista e mecânica para valer da história, a mulher sem a qual nossas lindas furrecas não existiriam ou, se existissem, seriam mimos de milionários ainda hoje. Um século e duas décadas depois, façamos um brinde com álcool e biodiesel àquela que deu um tebefe nas fuças dos conservadores com luva de pelica: Bertha Benz. Agora uma vaia aos "maxõis" que geram quase todos os acidentes e culpam as mulheres. Sem elas, nem eles, nem nós, nem ninguém poderia dizer "vou logo ali, a 200km e volto logo". Sem Berta, incontáveis vidas seriam perdidas pela ineficiência das carroças-ambulâncias, das carroças de bombeiros, et cétera. Ave Bertha.
14/01/2007
AEROMÓVEL
Li a respeito, pela primeira vez, em 1983, na revista Quatro Rodas. Mais de vinte e um anos se passaram até ler novamente sobre ele, na revista Eco Spy. Desde então, não tenho mais notícias.
O princípio é simples: Uma estrutura leve, dotada de rodas e uma vela, esta dentro de um túnel pelo qual corre o ar comprimido ou vácuo gerado por ventiladores eléctricos. Teóricamente pode passar de duzentos quilômetros por hora, mas o bom senso aconselha ir mais devagar, afinal é para transporte urbano. Existe uma linha em Porto Alegre e outra em Esteio (RS), que eu saiba as únicas no país.
Seria mais um sonho mirabolante para resolver o problema de transporte urbano, não fossem os detalhes:
- Foi idealizado e concebido por Oscar Coester, brasileiro que está resistindo às tentações de vender a patente para grupos alemães, ianques e japoneses, ele quer que a tecnologia fique aqui;
- É muito mais barato do que o metrô, não só para construir como para manter;
- A pista fica a cinco metros e meio de altura, facilmente acessível aos grupos de resgate, que não precisariam tomar qualquer precaução especial em caso de pane ou acidente;
- A construção é baseada em peças pré-moldadas, que são rápidas para montar e facilmente adaptáveis às condições do percurso.
Por ter custos tão baixos, a passagem do aeromóvel também seria bem em conta. Para grandes empresas seria uma boa idéia usar o invento para a circulação de funcionários, correspondência e pequenas cargas dentro da propriedade, o mesmo se dizendo para o transporte de lavradores da cidade para a lavoura.
O senhor Coester se mostrou optimista na reportagem à Eco Spy, confesso que bem mais do que eu, pois nunca mais ouvi falar dele. Olha que já vai quase um quarto de século desde que tive a primeira notícia do aeromóvel, que teve seu primeiro protótipo bem sucedido feito em 1980 e foi concebido em 1959 (!) por esse verdadeiro herói da tecnologia nacional.
A idéia deste texto me veio antes de ontem, quando do incidente do metrô em São Paulo. Os custos elevados da empreitada não garantiram sequer segurança para os operários. Nas linhas do aeromóvel, bastaria verificar a resistência do solo nos locais onde as vigas (que só tomam meio metro de largura) seriam instaladas, a conclusão de toda a obra seria feita em poucos meses, talvez até os trechos já concluídos pudessem ser usados enquanto o trajeto todo não fosse inalgurado. Mas como eu disse em um dos primeiros textos desta página, o carro do presidente é importado, a despeito de haver gente e empresas brasileiras competentes para fornecer um veículo à altura do cargo, mantendo aqui as divisas e os empregos.
Grande parte da responsabilidade, porém, é nossa. A maioria de nós ainda acredita que o Estado teme um apresentador grosseiro e/ou alienado que solta palavrões e entrevista artistas que nada entendem do assunto, enquanto os programas televisivos que realmente fazem a diferença ficam jogados às traças; Só para citar um exemplo. Não adianta apelar às "autoridades", que estas estão muito ocupadas em ajeitar suas condecorações e ver no espelho se ficaram bem. Não tenho qualquer esperança nessa parcela mais medíocre do funcionalismo público. Ao contrário do inventor, minha única esperança é que nós tomemos a iniciativa de cutucar as devidas pessoas, fazendo-as sentir medo de contrair câncer de bolso ou de urna. Depois de anos tentando fazê-lo sozinho, espero que os caros leitores me ajudem nessa missão (ainda) ingrata.
06/01/2007
Maçã Feinha
Hoje busquei uma camisa nova. Encomendei ao Zé, meu alfaiate, em Dezembro, mas pelo sufoco só ficou pronta agora. O bom de uma roupa sob medida é que lhe serve como se tivesse nascido no teu corpo, não falta nem sobra. R$ 45,00 por uma peça tão bem feita até que não é caro, convenhamos.
Depois fui ao supermercado, onde aproveitei para comprar maçãs. Interessante que não eram maçãs vistosas, brilhantes e uniformes, tampouco eram grandalhonas ou dignas de um comercial. Eram maçãs pequenas, discretas, com coloração e formato mais irregulares, algumas até feinhas. Mas não me importa. São suculentas e as como diariamente. O que me chamou a atenção porém, é que havia um inseto passeando sobre uma delas. Um inseto ordinário, desses que esmagamos todos os dias sem querer, confundindo com a sujeira do chão. Não era uma barata, ou eu teria chamado a Vigilância Sanitária. Era um insetinho apenas, sensível às mudanças climáticas e aos agentes químicos. Aí é que está a boa notícia: O uso de agrotóxicos foi bem mais moderado, ou aquela criaturinha minúscula não estaria lá, as maçãs teriam crescido mais e mais belas, a productividade teria sido muito maior e o preço no caixa seria menor. O que acabou conservando aquelas maçãs foi o resfriamento, a mão de obra deve ter sido ágil, ágil a ponto de não escolher muito as estéticas. Mas fico feliz assim mesmo. Comprei pouco mais de um quilograma e meio, que agora sei que não vai me custar mais do que paguei no caixa.
Como um mão-de... Digo, como um rapaz econômico que se preze, eu não rejeito uma boa promoção, se estiver precisando do artigo, se não estiver, troco a economia de 75% na boca do caixa pela de 100% por nem entrar na loja. Mas há "ecanomias" que não valem a pena. É como a China, que está fomentando a degradação humana e ambiental apenas para suprir suas necessidades imediatas, como um adolescente irresponsável que logo ficará sem nada, mas não sem antes causar estragos também para os outros. Preferível gastar alguns reais a mais, algumas horas a mais, do que conseguir uma dívida que não se pode pagar, como um câncer de intestino ou uma alergia generalizada, que te impedirá de comer quase tudo e tomar quase todos os medicamentos que poderiam ajudar. Nesse caso não é gasto, é investimento que, ao contrário da especulação, tem retorno farto e cem por cento garantido.
Também por isso preferi mandar fazer a camisa, eu sei como ela é feita, pelo menos a parte de corte e costura eu tenho certeza de que não degrada nem explora, pois todos os alfaiates de lá ganham o justo pelo seu trabalho, e no fim do ano fizeram a festa. Tanto que já separei o tecido para as próximas calças, quando for encomendá-las será só cortar e costurar. É meu tecido, está guardado. Coisas que só um alfaiate faz por nós, impensável em uma confecção que subemprega migrantes e imigrantes e falsifica a marca.
Decerto que com isso eu fico fora da moda predominante, mas depois que nos acostumamos a ter o que realmente merecemos, não abrimos mão ainda que seja mais oneroso, percebemos que a economia que fazemos é muito maior. Ainda que eu pudesse pagar dez reais por uma camisa tamanho único ou R$ 0,99 por maçãs regadas com toxinas. Quando se conhece o céu, até a Suécia parece ser miserável.
Depois fui ao supermercado, onde aproveitei para comprar maçãs. Interessante que não eram maçãs vistosas, brilhantes e uniformes, tampouco eram grandalhonas ou dignas de um comercial. Eram maçãs pequenas, discretas, com coloração e formato mais irregulares, algumas até feinhas. Mas não me importa. São suculentas e as como diariamente. O que me chamou a atenção porém, é que havia um inseto passeando sobre uma delas. Um inseto ordinário, desses que esmagamos todos os dias sem querer, confundindo com a sujeira do chão. Não era uma barata, ou eu teria chamado a Vigilância Sanitária. Era um insetinho apenas, sensível às mudanças climáticas e aos agentes químicos. Aí é que está a boa notícia: O uso de agrotóxicos foi bem mais moderado, ou aquela criaturinha minúscula não estaria lá, as maçãs teriam crescido mais e mais belas, a productividade teria sido muito maior e o preço no caixa seria menor. O que acabou conservando aquelas maçãs foi o resfriamento, a mão de obra deve ter sido ágil, ágil a ponto de não escolher muito as estéticas. Mas fico feliz assim mesmo. Comprei pouco mais de um quilograma e meio, que agora sei que não vai me custar mais do que paguei no caixa.
Como um mão-de... Digo, como um rapaz econômico que se preze, eu não rejeito uma boa promoção, se estiver precisando do artigo, se não estiver, troco a economia de 75% na boca do caixa pela de 100% por nem entrar na loja. Mas há "ecanomias" que não valem a pena. É como a China, que está fomentando a degradação humana e ambiental apenas para suprir suas necessidades imediatas, como um adolescente irresponsável que logo ficará sem nada, mas não sem antes causar estragos também para os outros. Preferível gastar alguns reais a mais, algumas horas a mais, do que conseguir uma dívida que não se pode pagar, como um câncer de intestino ou uma alergia generalizada, que te impedirá de comer quase tudo e tomar quase todos os medicamentos que poderiam ajudar. Nesse caso não é gasto, é investimento que, ao contrário da especulação, tem retorno farto e cem por cento garantido.
Também por isso preferi mandar fazer a camisa, eu sei como ela é feita, pelo menos a parte de corte e costura eu tenho certeza de que não degrada nem explora, pois todos os alfaiates de lá ganham o justo pelo seu trabalho, e no fim do ano fizeram a festa. Tanto que já separei o tecido para as próximas calças, quando for encomendá-las será só cortar e costurar. É meu tecido, está guardado. Coisas que só um alfaiate faz por nós, impensável em uma confecção que subemprega migrantes e imigrantes e falsifica a marca.
Decerto que com isso eu fico fora da moda predominante, mas depois que nos acostumamos a ter o que realmente merecemos, não abrimos mão ainda que seja mais oneroso, percebemos que a economia que fazemos é muito maior. Ainda que eu pudesse pagar dez reais por uma camisa tamanho único ou R$ 0,99 por maçãs regadas com toxinas. Quando se conhece o céu, até a Suécia parece ser miserável.
27/12/2006
Miopia pura
Uma empresa deve seguir as leis, ter respeito pelos valores humanos e, no cumprimento destes, atentar para a própria sobrevivência. Discordâncias? Não? Continuemos então. Para sobreviver, deve estar atenta às necessidades do público, oferecer o que ele busca e incentivar novos talentos da área, formando a mais reluzente prata da casa, investir em publicidade e se aproximar da sociedade, dentro de suas possibilidades. Parece lógico? Mesmo? Para muita gente não.
Amigo de donos de bancas de revistas da cidade, vejo-os passando por um drama inusitado. O dono da banca, na verdade, só é dono do ponto, quem diz o que vai ou não expôr para vendas é a distribuidora. Acontece que a distribuidora em questão está fazendo a lição de casa ao contrário. Exemplos:
Revista de automóveis que mais tem demanda: Oficina Mecânica. O que mandam: Hot, que vende pouco; A Oficina chega com dois ou três meses de defasagem, muitas vezes eles pulam números para não "atrasar mais".
Revista de antigomobilismo com maior demanda: Classic Show. Já está com mais de um ano de defasagem e alguns números simplesmente não vieram. Terei que fazer algo que normalmente não faço em solidariedade com as bancas: assinatura.
O que eles mais mandam: revistinhas pornôs, das mais xumbregas, aquelas que o sujeito "usa" uma vez e depois transforma em papel higiênico, tamanha a qualidade do material; Revistinhas de fofoca tão ordinárias e mal feitas, que a maioria não chega a R$ 2,00, e são muitas falando exactamente a mesma coisa, na mesma banca e na mesma prateleira, competindo entre si.
De pouco ou nada adianta o público protestar e pedir as publicações que eles não entregam. Há coisas que preciso pedir do eixo Rio-São Paulo. Ou seja, terei que assinar alguns títulos.
Quem é o mercado que estão negligenciando? Mães e Pais de família (que são os verdadeiros detentores do dinheiro e não seus filhos), hobistas , colecionadores, gente que trabalha e tem poder aquisitivo. Isso não é resultado de pesquisas de alguma agência famosa lá longe e publicada nos programas matutinos, é constactação ao vivo e a cores em hi-fi. Há anos ouço a reclamação dos jornaleiros, de leitores frustrados e gente que viu meu acervo, não sabia que aquilo existia e não tem onde comprar. Notaram? "Não tem onde comprar". Pessoas com dinheiro na mão procuram publicações de seu agrado, tratar na banca mais próxima. Mas a publicação não aparece.
Parece fantasioso? Surreal? Se me contassem eu também custaria a acreditar. Mas a distribuidora em questão não só não atende às demandas de mercado, como jamais fez uma publicidade para incrementar as vendas. Ei, estou falando de propagando regional, não um intervalo inteiro da novela das 20h00 (que há anos não passa nesse horário). O público a que me refiro e que está órfão (não só de revistas) prefere aquelas emissoras menores, mais bem trabalhadas e com mais conteúdo...que cobram mais barato pelo espaço. Essas pessoas estão dispostas a pagar de R$ 10,00 até R$ 20,00 (quando não mais) por uma boa publicação que satisfaça suas necessidades culturais e de informação. Quando digo que existe ou existiu o que elas querem, mas não vem mais para Goiânia, dá até pena de ver suas expressões de descrença. Vejam o contraste: Vender seis ou sete revistas de R$ 10,00 em vez de vinte revistinhas que, muitas vezes, custam menos de R$ 1,00 e rendem menos de R$ 0,25 ao jornaleiro. Sim, é essa a magra margem de lucro de um profissional que vende muito menos do que tem capacidade, não por vontade própria, mas por um capricho de um monopólio. Eu gasto em média R$ 100,00 por mês em revistas, e não sou o maior cliente desse amigo. Imaginem o que ele venderia se tivesse o apoio de que precisa.
Mais: Muita coisa boa e actualizada chega à Brasília, mas não desce para cá.
Mais um contra senso: o tratamento aos profissionais supracitados. Eles têm um único horário fixo para buscar as publicações, todos ao mesmo tempo, não podem dar pitacos sobre o que querem vender, são tratados com descaso pelos funcionários e já ouvi relatos de gente que paga para ser atendida primeiro, mesmo chegando mais tarde. Parece até que estão fazendo um favor em deixá-los trabalhar... Mas já vi isso assegurado em algum lugar... Naquele livrinho cheio de leis que o congresso vota e o presidente sanciona... Ah, sim, a CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Blé! Vai ver eles não conhecem, se tratam a cultura desse jeito!
Recapitulando: Consumidor não tem o que quer comprar, jornaleiro não tem o que precisa vender, então só os dois saem no prejuízo, certo? ER-RA-DO. Se o público não compra, as editoras não vendem, gerando desemprego e reduzindo o padrão de vida de gente talentosa que se vê desestimulada a trabalhar. Ao contrário das revistas que já estamos cansados de ver na tevê, nos jornais e até em outras revistas, é muito difícil fazer uma publicação! Sai caro, principalmente pela carga tributária, já que há muitas etapas e profissionais independentes que emitem nota fiscal. Por isso a maioria das nossas revistas têm poucas páginas, poucos colaboradores e tiragens pequenas.
Em suma, os danos são maiores do que aparentam à primeira vista. A indústria cultural é um entroncamento importante para a economia, o país inteiro perde com esse descaso, pois com certeza não acontece só em Goiânia.
O que fazer? Bem, eu sozinho, berrando aos quatro ventos não vou comover o bolso desses sujeitos, ficarei aphônico e gastarei mais dinheiro com remédios. Em havendo uma onda maciça de reclamações e rejeição ao que querem empurrar, eles se verão obrigados a rever suas diretrizes, se é que têm alguma. Isso vale não só para a cultura, mas para todos os setores da economia. Quem não se sensibiliza com as dificuldades de seus próprios parceiros de trabalho, tem uma mórbida phobia de contrair câncer de bolso.
Amigo de donos de bancas de revistas da cidade, vejo-os passando por um drama inusitado. O dono da banca, na verdade, só é dono do ponto, quem diz o que vai ou não expôr para vendas é a distribuidora. Acontece que a distribuidora em questão está fazendo a lição de casa ao contrário. Exemplos:
Revista de automóveis que mais tem demanda: Oficina Mecânica. O que mandam: Hot, que vende pouco; A Oficina chega com dois ou três meses de defasagem, muitas vezes eles pulam números para não "atrasar mais".
Revista de antigomobilismo com maior demanda: Classic Show. Já está com mais de um ano de defasagem e alguns números simplesmente não vieram. Terei que fazer algo que normalmente não faço em solidariedade com as bancas: assinatura.
O que eles mais mandam: revistinhas pornôs, das mais xumbregas, aquelas que o sujeito "usa" uma vez e depois transforma em papel higiênico, tamanha a qualidade do material; Revistinhas de fofoca tão ordinárias e mal feitas, que a maioria não chega a R$ 2,00, e são muitas falando exactamente a mesma coisa, na mesma banca e na mesma prateleira, competindo entre si.
De pouco ou nada adianta o público protestar e pedir as publicações que eles não entregam. Há coisas que preciso pedir do eixo Rio-São Paulo. Ou seja, terei que assinar alguns títulos.
Quem é o mercado que estão negligenciando? Mães e Pais de família (que são os verdadeiros detentores do dinheiro e não seus filhos), hobistas , colecionadores, gente que trabalha e tem poder aquisitivo. Isso não é resultado de pesquisas de alguma agência famosa lá longe e publicada nos programas matutinos, é constactação ao vivo e a cores em hi-fi. Há anos ouço a reclamação dos jornaleiros, de leitores frustrados e gente que viu meu acervo, não sabia que aquilo existia e não tem onde comprar. Notaram? "Não tem onde comprar". Pessoas com dinheiro na mão procuram publicações de seu agrado, tratar na banca mais próxima. Mas a publicação não aparece.
Parece fantasioso? Surreal? Se me contassem eu também custaria a acreditar. Mas a distribuidora em questão não só não atende às demandas de mercado, como jamais fez uma publicidade para incrementar as vendas. Ei, estou falando de propagando regional, não um intervalo inteiro da novela das 20h00 (que há anos não passa nesse horário). O público a que me refiro e que está órfão (não só de revistas) prefere aquelas emissoras menores, mais bem trabalhadas e com mais conteúdo...que cobram mais barato pelo espaço. Essas pessoas estão dispostas a pagar de R$ 10,00 até R$ 20,00 (quando não mais) por uma boa publicação que satisfaça suas necessidades culturais e de informação. Quando digo que existe ou existiu o que elas querem, mas não vem mais para Goiânia, dá até pena de ver suas expressões de descrença. Vejam o contraste: Vender seis ou sete revistas de R$ 10,00 em vez de vinte revistinhas que, muitas vezes, custam menos de R$ 1,00 e rendem menos de R$ 0,25 ao jornaleiro. Sim, é essa a magra margem de lucro de um profissional que vende muito menos do que tem capacidade, não por vontade própria, mas por um capricho de um monopólio. Eu gasto em média R$ 100,00 por mês em revistas, e não sou o maior cliente desse amigo. Imaginem o que ele venderia se tivesse o apoio de que precisa.
Mais: Muita coisa boa e actualizada chega à Brasília, mas não desce para cá.
Mais um contra senso: o tratamento aos profissionais supracitados. Eles têm um único horário fixo para buscar as publicações, todos ao mesmo tempo, não podem dar pitacos sobre o que querem vender, são tratados com descaso pelos funcionários e já ouvi relatos de gente que paga para ser atendida primeiro, mesmo chegando mais tarde. Parece até que estão fazendo um favor em deixá-los trabalhar... Mas já vi isso assegurado em algum lugar... Naquele livrinho cheio de leis que o congresso vota e o presidente sanciona... Ah, sim, a CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Blé! Vai ver eles não conhecem, se tratam a cultura desse jeito!
Recapitulando: Consumidor não tem o que quer comprar, jornaleiro não tem o que precisa vender, então só os dois saem no prejuízo, certo? ER-RA-DO. Se o público não compra, as editoras não vendem, gerando desemprego e reduzindo o padrão de vida de gente talentosa que se vê desestimulada a trabalhar. Ao contrário das revistas que já estamos cansados de ver na tevê, nos jornais e até em outras revistas, é muito difícil fazer uma publicação! Sai caro, principalmente pela carga tributária, já que há muitas etapas e profissionais independentes que emitem nota fiscal. Por isso a maioria das nossas revistas têm poucas páginas, poucos colaboradores e tiragens pequenas.
Em suma, os danos são maiores do que aparentam à primeira vista. A indústria cultural é um entroncamento importante para a economia, o país inteiro perde com esse descaso, pois com certeza não acontece só em Goiânia.
O que fazer? Bem, eu sozinho, berrando aos quatro ventos não vou comover o bolso desses sujeitos, ficarei aphônico e gastarei mais dinheiro com remédios. Em havendo uma onda maciça de reclamações e rejeição ao que querem empurrar, eles se verão obrigados a rever suas diretrizes, se é que têm alguma. Isso vale não só para a cultura, mas para todos os setores da economia. Quem não se sensibiliza com as dificuldades de seus próprios parceiros de trabalho, tem uma mórbida phobia de contrair câncer de bolso.
12/12/2006
Sem isso não tem negócio.
Um dogma, é preciso pelo menos um dogma forte, que controle a vida do fiél de tal modo que ele acredite estar seguro, sem perceber o cerceamento do livre arbítrio. Sem isso não tem negócio.
O messias é arroz-com-feijão, o fundador tem que ser o único e legítimo representante, senão o próprio. Deve também dizer que o Papa e o Lama são marionetes do demônio, mas principalmente atacar as religiões de cultos a elementais e o espiritismo, fervorosamente. Sem isso não tem negócio.
Cursos, muitos cursos. Quanto mais e mais focados nos dogmas, melhor. O fiél deve estar convicto de que está seguindo uma estrada dourada e que os conhecimentos adquiridos garantirão sua salvação. Sem isso não tem negócio.
Jovens, eles são imprescindíveis. Principalmente na adolescência, quando os hormônios impelem à transgressão. Devem ser convencidos de que estão fazendo a coisa certa, de preferência devem crêr cegamente que estão fazendo a única coisa certa, e que todos os que pensam diferente estão errados, com isso acreditarão que aquele grupo os compreende e que estarão fazendo uma transgressão santa. Sem isso não tem negócio.
As sedes devem ser o mais luxuosas possível, devem inspirar progresso, fartura, a ponto de placas enormes de mármore poderem ser jogadas fora, deixadas na calçada pública para qualquer um levar. O importante é que o fiél entre pensando "vou ser abençoado e vou ficar rico". Sem isso não tem negócio.
Jamais fale abertamente, mas os seguidores devem acreditar que estão acima das leis dos homens, procure, deturpe e invente passagens bíblicas que embasem essa teoria. Sem isso não tem negócio.
A ciência sempre será inimiga, a não ser quando for para comprovar que a cura do câncer linfático não teve relação com os procedimentos médicos. Ignore sumariamente que os músculos deixam sim vestígios nos fósseis, eles se prendem aos ossos pelas ranhuras e concavidades, exactamente como se observa em qualquer animal, inclusive nós. Mas o fiél, ainda que biólogo formado, deve desconsiderar o facto. Darwin era louco e ponto final, ai de quem refutar. Sem isso não tem negócio.
Aponde para si mesmo sempre que for falar do Salvador, mas de modo discreto. Isso age de forma subliminar e vincula a tua imagem à salvação eterna. Sem isso não tem negócio.
Tenha sempre alguma actividade de caridade, gaste dez reais em divulgação para cada real investido lá. Aliás, a mídia deve estar nos planos de aquisição, seja qual for, principalmente concessão de tevê. Sem isso não tem negócio.
Não permita, sob o pretexto de proteger a integridade psicológica e dogmática do fiél, que leiam o que a própria igreja não fornecer. Desestimule qualquer leitura não recomendada com os meios que foram necessários, sejam quais forem. Sem isso não tem negócio.
Cobre por tudo. Desde um copo de água que custará o mesmo que uma taça de vinho fino, pois é água santificada, até as cartilhas de lavagem cerebral que deverão ser muito bem elaboradas, para não darem pistas sobre o que realmente são. Sem isso não tem negócio.
Não sejas idiota. Não deixes nada de muito vultuoso no teu nome. Tenha laranjas, limões e abacaxis, se não quiseres meter o pé na jaca e amargar alguns anos de marmita na cadeia. Haverão muitos fiéis ávidos por se tornarem sócios simbólicos do Salvador. Sem isso não tem negócio.
Reze. Mas reze muito. Pois para onde vais, depois de enganar e atrapalhar a vida de tanta gente, teu dinheiro e tua lábia não valem absolutamente nada. No umbrau... Bem, lá não tem negócio de jeito nenhum.
O messias é arroz-com-feijão, o fundador tem que ser o único e legítimo representante, senão o próprio. Deve também dizer que o Papa e o Lama são marionetes do demônio, mas principalmente atacar as religiões de cultos a elementais e o espiritismo, fervorosamente. Sem isso não tem negócio.
Cursos, muitos cursos. Quanto mais e mais focados nos dogmas, melhor. O fiél deve estar convicto de que está seguindo uma estrada dourada e que os conhecimentos adquiridos garantirão sua salvação. Sem isso não tem negócio.
Jovens, eles são imprescindíveis. Principalmente na adolescência, quando os hormônios impelem à transgressão. Devem ser convencidos de que estão fazendo a coisa certa, de preferência devem crêr cegamente que estão fazendo a única coisa certa, e que todos os que pensam diferente estão errados, com isso acreditarão que aquele grupo os compreende e que estarão fazendo uma transgressão santa. Sem isso não tem negócio.
As sedes devem ser o mais luxuosas possível, devem inspirar progresso, fartura, a ponto de placas enormes de mármore poderem ser jogadas fora, deixadas na calçada pública para qualquer um levar. O importante é que o fiél entre pensando "vou ser abençoado e vou ficar rico". Sem isso não tem negócio.
Jamais fale abertamente, mas os seguidores devem acreditar que estão acima das leis dos homens, procure, deturpe e invente passagens bíblicas que embasem essa teoria. Sem isso não tem negócio.
A ciência sempre será inimiga, a não ser quando for para comprovar que a cura do câncer linfático não teve relação com os procedimentos médicos. Ignore sumariamente que os músculos deixam sim vestígios nos fósseis, eles se prendem aos ossos pelas ranhuras e concavidades, exactamente como se observa em qualquer animal, inclusive nós. Mas o fiél, ainda que biólogo formado, deve desconsiderar o facto. Darwin era louco e ponto final, ai de quem refutar. Sem isso não tem negócio.
Aponde para si mesmo sempre que for falar do Salvador, mas de modo discreto. Isso age de forma subliminar e vincula a tua imagem à salvação eterna. Sem isso não tem negócio.
Tenha sempre alguma actividade de caridade, gaste dez reais em divulgação para cada real investido lá. Aliás, a mídia deve estar nos planos de aquisição, seja qual for, principalmente concessão de tevê. Sem isso não tem negócio.
Não permita, sob o pretexto de proteger a integridade psicológica e dogmática do fiél, que leiam o que a própria igreja não fornecer. Desestimule qualquer leitura não recomendada com os meios que foram necessários, sejam quais forem. Sem isso não tem negócio.
Cobre por tudo. Desde um copo de água que custará o mesmo que uma taça de vinho fino, pois é água santificada, até as cartilhas de lavagem cerebral que deverão ser muito bem elaboradas, para não darem pistas sobre o que realmente são. Sem isso não tem negócio.
Não sejas idiota. Não deixes nada de muito vultuoso no teu nome. Tenha laranjas, limões e abacaxis, se não quiseres meter o pé na jaca e amargar alguns anos de marmita na cadeia. Haverão muitos fiéis ávidos por se tornarem sócios simbólicos do Salvador. Sem isso não tem negócio.
Reze. Mas reze muito. Pois para onde vais, depois de enganar e atrapalhar a vida de tanta gente, teu dinheiro e tua lábia não valem absolutamente nada. No umbrau... Bem, lá não tem negócio de jeito nenhum.
09/12/2006
Serena
Ela nasceu tão frágil e pequena, mas também tão serena, quão feliz nós ficamos! Quase não chorava, também pouco sorria, mas o tempo se encarrega de devolver a alegria.
Passou o tempo e minha filha tão serena foi se tornando tão linda e tão educada. Mas pouco interagia com as crianças que chamavam para brincar, conversar, ela nunca ia.
Aos dois anos já falava com perfeição, seguindo os meus exemplos cuidadosos expressava um português maravilhoso, dizendo naturalmente versos dos mais primorosos.
Mas minha filha tão querida, se ao mundo encantava, dele parecia isolada, com a alegria perdida. Indiferente aos aniversários, indiferente aos esforços que fazíamos para agradá-la, sempre calma e compenetrada com seus olhares plácidos.
Por anos em terapia psicológica e médica, nem autismo, nem neuropatia ou qualquer anomalia que justificasse sua conduta tão métrica. Eu estava aflita, embora ela não.
Aos cinco anos já falava dezesseis idiomas, em todos alphabetizada. Começou a se corresponder com gente de fora, me deixando aliviada, mas permaneciam os sintomas. Seu sorriso era meigo, mas seu humor muito leigo.
Certa feita um espanhol veio para conhecê-la, se dizendo apaixonado pela dama tão nobresca que escrevia deste endereço. Chocou-se ao ver que a dama (rio ou choro?) de cultura nababesca era só uma criança que as fraldas mal havia deixado. Ele mostrou consternado as cartas tão bem escritas, de caligraphias tão bonitas, de conselhos tão sábios que o levaram a querer ouvir aquelas palavras de seus lábios. O pobre homem voltou desolado à Cataluña, nunca mais deu recado.
Serena crescia tão bela e inteligente, mas tão ingênua ao meu ver, parecia tristonha no que tinha a dizer, me perguntava onde teria sido negligente.
Na escola os amigos, tanto quanto os mestres aturdidos, se sentiam inibidos com o conteúdo de suas palavras que, para eles, tinham pouco sentido. A verdade é que Serena, em sua placidez, não travava diálogos com qualquer um mais jovem que seus pais, o que acentuava mais sua imensa lucidez. Mas saiu daquela escola que nada tinha a acrescentar, a aluna se tornara mestra dos que iam lhe procurar.
Uma noite, não me lembro qual, minha filha veio a mim no esplendor de seus doze anos perguntar qual era o meu mal. Me encontrara chorando sem poder disfarçar o meu rubror. Ela me olhou nos olhos e o que descrevo agora foi a mais poderosa experiência que já me abateu; Seus olhos castanhos luminesciam, quase me cegavam de tanta luz, mas também me prendiam, me obrigavam a ser sincera a despeito da vontade de preservar minha filha da aflição e receio que agora se calavam. O assombro era maior. O olhar sereno, penetrante, mas também calmante me deixou sem chão e contei. Ela sorriu como raramente faz e me falou "Eu? Eu triste? De onde tiraste tal disparate? Só porque não canto pela casa nem choro por garotos? Eu sou feliz". Tal afirmação me deu tremor, queria chorar e chorei, não sei se de alívio ou o que for, e ela continuou: "Eu sei que difiro, que a muitos assusto, mas é o que sou e não há recurso. Não penses que não tenho percebido tua tromba e tua preocupação, mas precisava te encontrar desarmada para ouvir não tua boca, mas teu coração, porque este não zomba se está ferido. De hoje em diante, vamos combinar, todas as noites vamos à varanda para conversar, desarmadas".
Na primeira noite eu não sabia o que falar, ela falou e me fez perceber que o problema que pensava estar em minha filha, na verdade era meu e não queria reconhecer. As tristezas que via nela eram minhas, meus sonhos frustrados, minhas flores secas, minhas ervas daninhas. Ainda assim não se poderia desmerecer o facto, Serena era diferente, e neste mundo quem é direfente tem primazia em sofrer.
Chegaram os quinze e Serena era quase uma mulher. Aceitou a festa, mas que fosse discreta, som baixo, sem um luxo sequer. Minha filha era austera e muito elegante, apareceu de toilleur branco e azul, com luvas e coque. Que choque. Os convidados babavam, mas por respeito ante a dama que se mostrava sem medo o seu jeito. Em pouco tempo, dos trinta que vieram, seis ficaram e souberam respeitar os recatos de meu rebento.
Meu marido trouxe um computador, instalou banda larga e entrávamos na era da internet. Menos de uma semana depois, Serena estava empregada, trabalhando pela rede. Trinta idiomas fluentes, mais dialetos diferentes, ligava Pequim à Nova Iorque, Munique à Moscou, Brasília à Berlim. Ganhava. Ninguém queria saber de sua idade, só de sua eficiência e disponibilidade. Mas nunca teve uma vida social de verdade, o que lhe confessei noutro fim de tarde, ela respondeu com serenidade "Mãe, não se preocupes com a transitoriedade. Esse trabalho é efêmero e logo começa o meu de verdade". Não compreendi o que ela quis dizer, mas antes de perguntar ela se pôs a esclarecer "Vocês dois não são muito religiosos, não sei se vais acreditar; sou tua avó, Batatinha. Estou na terra em missão e precisei reencarnar".
Não dormi naquela noite. Ninguém mais sabia do apelido que tinha quando muito criança, só minha avó me chamava de "batatinha", quando estávamos sozinhas. Procurei esquecer para não enlouquecer.
Minha irmã apareceu para nos convidar para uma comemoração do centro que freqüentava. Foi dar um abraço na sobrinha que ao computador trabalhava "Você vem, não vem?", "Vou", respondeu de pronto "Só não se esqueça do quindim, guarde ao menos um para mim", "Gente, a sua bisavó adorava quindim! Vou fazer uma fornada só para você". Fiquei assustada.
No sábado em questão, estávamos lá, Serena nucleando toda a atenção. Moça alta, de beleza rara, modos finos e cultura vasta. Quase se esquecia de sua idade. Mas fui me enturmando, me divertindo, esquecendo que era mãe de minha avó. Até que Serena chamou a todos para uma prece, nada mais natural em uma comunidade religiosa, mas nós nunca tínhamos rezado em casa. Ela começou "Pai, faça deste espírito o instrumento de Vossa vontade. Faça destes olhos os faróis de Vossa luz ao mar bravio deste orbe. Faça desta voz o clarim possante de Vossos ensinamentos. Permita que o Vosso amor nos cubra com a luz mais pura, que nossas sombras sucumbam ao bom uso de nossos arbítrios, que a sabedoria sublime da humildade nos torne os reis e rainhas que já fomos um dia. Pai, se estamos aqui é por nossos erros. Permita-nos beber na fonte fecunda de Vossa verdade absoluta, permita que nossos inimigos encontrem a paz, que nossos filhos trilhem o caminho da verdade e do amor incondicional. Pai, não sou mais do que uma fagulha semi-apagada de Vossa criação. Acenda minha luz para que eu possa levá-la aos irmãos que dela carecem, permita que meu pão possa alimentar a todos os meus semelhantes, para que ninguém saia da minha presença sem estar melhor do que quando chegou. Não peço, Pai, senão que me auxilie na jornada efêmera que ora trilho no orbe terreno, para que não ceda aos encantos pérfidos que o mal nos oferece. Este corpo não me pertence, Pai, por isso me resigno à sua perda quando for de Vossa vontade, até quando cuidarei dele para devolvê-lo na melhor forma possível. Pai, afaste de mim a ilusão, deixe que o amor ocupe o lugar da paixão, que o vigor e a persistência tomem o lugar do entusiasmo, que o gosto pelo conteúdo ocupe o lugar do vazio que nos vendem. Não Vos peço mais do que as condições para lograr êxito em minha missão, porque compreendo que Vós e eu somos uno, pelo que a minha felicidade é a Vossa felicidade, a minha dor é a Vossa dor, que me maltratando maltratarei também a Vós e a todos os meus irmãos. Agradeço, Pai, por ter retornado e recebido mais uma chance de reparar as minhas faltas, e se tenho algum defeito é porque o que me falta me poria em desnecessária tentação, conforme disse nosso Mestre Jesus. Muito obrigada, Pai, por ser Vossa filha!". Não suportei ter ouvido aquilo sem chorar. Quando enxuguei as lágrimas vi que mais gente também chorou. Compreendi que ela não era minha avó que voltou. Pois nosso parentesco é apenas um papel que se encerra no acto funesto, mas os laços que douramos persistem. Para a maioria presente era difícil vincular a sabedoria exibida ao aspecto vigente: rosto delicado, corpo perfeito, estatura elevada, cintura fina e boas medidas de quadril e peito. A beleza personificada era minha filha alí nobrescamente apresentada.
Hoje sou avó, nem cinqüenta anos completei quando minha neta entrou para a escola. Serena não se abalou com a viuvez precoce, "Era a hora de ele descansar" me disse de uma vez só. Se ela não parecia uma criança comum, eu deveria ter percebido, é que não há criança comum. Meu medo de ela fugir ao padrão me fez sofrer, por mim mesma ainda que não quisesse adimitir. Padrão se aplica à manufatura, jamais a uma filha ainda mais tão doce e pura. Por não me preocupar com o que os outros vão pensar, estou hoje mais jovem do que na infância que pus a lembrar. Seu único homem foi o marido, mas algumas de suas amigas foram mães ainda solteiras, nem por isso as tratava diferente, formando com elas uma equipe de obreiras. Piscina e biquini, tardes de entretenimento, Serena faz de tudo, só não comete as faltas de que tem conhecimento.
Pai, permita que eu tenha aprendido uma fração do que essa menina me ensinou.
Passou o tempo e minha filha tão serena foi se tornando tão linda e tão educada. Mas pouco interagia com as crianças que chamavam para brincar, conversar, ela nunca ia.
Aos dois anos já falava com perfeição, seguindo os meus exemplos cuidadosos expressava um português maravilhoso, dizendo naturalmente versos dos mais primorosos.
Mas minha filha tão querida, se ao mundo encantava, dele parecia isolada, com a alegria perdida. Indiferente aos aniversários, indiferente aos esforços que fazíamos para agradá-la, sempre calma e compenetrada com seus olhares plácidos.
Por anos em terapia psicológica e médica, nem autismo, nem neuropatia ou qualquer anomalia que justificasse sua conduta tão métrica. Eu estava aflita, embora ela não.
Aos cinco anos já falava dezesseis idiomas, em todos alphabetizada. Começou a se corresponder com gente de fora, me deixando aliviada, mas permaneciam os sintomas. Seu sorriso era meigo, mas seu humor muito leigo.
Certa feita um espanhol veio para conhecê-la, se dizendo apaixonado pela dama tão nobresca que escrevia deste endereço. Chocou-se ao ver que a dama (rio ou choro?) de cultura nababesca era só uma criança que as fraldas mal havia deixado. Ele mostrou consternado as cartas tão bem escritas, de caligraphias tão bonitas, de conselhos tão sábios que o levaram a querer ouvir aquelas palavras de seus lábios. O pobre homem voltou desolado à Cataluña, nunca mais deu recado.
Serena crescia tão bela e inteligente, mas tão ingênua ao meu ver, parecia tristonha no que tinha a dizer, me perguntava onde teria sido negligente.
Na escola os amigos, tanto quanto os mestres aturdidos, se sentiam inibidos com o conteúdo de suas palavras que, para eles, tinham pouco sentido. A verdade é que Serena, em sua placidez, não travava diálogos com qualquer um mais jovem que seus pais, o que acentuava mais sua imensa lucidez. Mas saiu daquela escola que nada tinha a acrescentar, a aluna se tornara mestra dos que iam lhe procurar.
Uma noite, não me lembro qual, minha filha veio a mim no esplendor de seus doze anos perguntar qual era o meu mal. Me encontrara chorando sem poder disfarçar o meu rubror. Ela me olhou nos olhos e o que descrevo agora foi a mais poderosa experiência que já me abateu; Seus olhos castanhos luminesciam, quase me cegavam de tanta luz, mas também me prendiam, me obrigavam a ser sincera a despeito da vontade de preservar minha filha da aflição e receio que agora se calavam. O assombro era maior. O olhar sereno, penetrante, mas também calmante me deixou sem chão e contei. Ela sorriu como raramente faz e me falou "Eu? Eu triste? De onde tiraste tal disparate? Só porque não canto pela casa nem choro por garotos? Eu sou feliz". Tal afirmação me deu tremor, queria chorar e chorei, não sei se de alívio ou o que for, e ela continuou: "Eu sei que difiro, que a muitos assusto, mas é o que sou e não há recurso. Não penses que não tenho percebido tua tromba e tua preocupação, mas precisava te encontrar desarmada para ouvir não tua boca, mas teu coração, porque este não zomba se está ferido. De hoje em diante, vamos combinar, todas as noites vamos à varanda para conversar, desarmadas".
Na primeira noite eu não sabia o que falar, ela falou e me fez perceber que o problema que pensava estar em minha filha, na verdade era meu e não queria reconhecer. As tristezas que via nela eram minhas, meus sonhos frustrados, minhas flores secas, minhas ervas daninhas. Ainda assim não se poderia desmerecer o facto, Serena era diferente, e neste mundo quem é direfente tem primazia em sofrer.
Chegaram os quinze e Serena era quase uma mulher. Aceitou a festa, mas que fosse discreta, som baixo, sem um luxo sequer. Minha filha era austera e muito elegante, apareceu de toilleur branco e azul, com luvas e coque. Que choque. Os convidados babavam, mas por respeito ante a dama que se mostrava sem medo o seu jeito. Em pouco tempo, dos trinta que vieram, seis ficaram e souberam respeitar os recatos de meu rebento.
Meu marido trouxe um computador, instalou banda larga e entrávamos na era da internet. Menos de uma semana depois, Serena estava empregada, trabalhando pela rede. Trinta idiomas fluentes, mais dialetos diferentes, ligava Pequim à Nova Iorque, Munique à Moscou, Brasília à Berlim. Ganhava. Ninguém queria saber de sua idade, só de sua eficiência e disponibilidade. Mas nunca teve uma vida social de verdade, o que lhe confessei noutro fim de tarde, ela respondeu com serenidade "Mãe, não se preocupes com a transitoriedade. Esse trabalho é efêmero e logo começa o meu de verdade". Não compreendi o que ela quis dizer, mas antes de perguntar ela se pôs a esclarecer "Vocês dois não são muito religiosos, não sei se vais acreditar; sou tua avó, Batatinha. Estou na terra em missão e precisei reencarnar".
Não dormi naquela noite. Ninguém mais sabia do apelido que tinha quando muito criança, só minha avó me chamava de "batatinha", quando estávamos sozinhas. Procurei esquecer para não enlouquecer.
Minha irmã apareceu para nos convidar para uma comemoração do centro que freqüentava. Foi dar um abraço na sobrinha que ao computador trabalhava "Você vem, não vem?", "Vou", respondeu de pronto "Só não se esqueça do quindim, guarde ao menos um para mim", "Gente, a sua bisavó adorava quindim! Vou fazer uma fornada só para você". Fiquei assustada.
No sábado em questão, estávamos lá, Serena nucleando toda a atenção. Moça alta, de beleza rara, modos finos e cultura vasta. Quase se esquecia de sua idade. Mas fui me enturmando, me divertindo, esquecendo que era mãe de minha avó. Até que Serena chamou a todos para uma prece, nada mais natural em uma comunidade religiosa, mas nós nunca tínhamos rezado em casa. Ela começou "Pai, faça deste espírito o instrumento de Vossa vontade. Faça destes olhos os faróis de Vossa luz ao mar bravio deste orbe. Faça desta voz o clarim possante de Vossos ensinamentos. Permita que o Vosso amor nos cubra com a luz mais pura, que nossas sombras sucumbam ao bom uso de nossos arbítrios, que a sabedoria sublime da humildade nos torne os reis e rainhas que já fomos um dia. Pai, se estamos aqui é por nossos erros. Permita-nos beber na fonte fecunda de Vossa verdade absoluta, permita que nossos inimigos encontrem a paz, que nossos filhos trilhem o caminho da verdade e do amor incondicional. Pai, não sou mais do que uma fagulha semi-apagada de Vossa criação. Acenda minha luz para que eu possa levá-la aos irmãos que dela carecem, permita que meu pão possa alimentar a todos os meus semelhantes, para que ninguém saia da minha presença sem estar melhor do que quando chegou. Não peço, Pai, senão que me auxilie na jornada efêmera que ora trilho no orbe terreno, para que não ceda aos encantos pérfidos que o mal nos oferece. Este corpo não me pertence, Pai, por isso me resigno à sua perda quando for de Vossa vontade, até quando cuidarei dele para devolvê-lo na melhor forma possível. Pai, afaste de mim a ilusão, deixe que o amor ocupe o lugar da paixão, que o vigor e a persistência tomem o lugar do entusiasmo, que o gosto pelo conteúdo ocupe o lugar do vazio que nos vendem. Não Vos peço mais do que as condições para lograr êxito em minha missão, porque compreendo que Vós e eu somos uno, pelo que a minha felicidade é a Vossa felicidade, a minha dor é a Vossa dor, que me maltratando maltratarei também a Vós e a todos os meus irmãos. Agradeço, Pai, por ter retornado e recebido mais uma chance de reparar as minhas faltas, e se tenho algum defeito é porque o que me falta me poria em desnecessária tentação, conforme disse nosso Mestre Jesus. Muito obrigada, Pai, por ser Vossa filha!". Não suportei ter ouvido aquilo sem chorar. Quando enxuguei as lágrimas vi que mais gente também chorou. Compreendi que ela não era minha avó que voltou. Pois nosso parentesco é apenas um papel que se encerra no acto funesto, mas os laços que douramos persistem. Para a maioria presente era difícil vincular a sabedoria exibida ao aspecto vigente: rosto delicado, corpo perfeito, estatura elevada, cintura fina e boas medidas de quadril e peito. A beleza personificada era minha filha alí nobrescamente apresentada.
Hoje sou avó, nem cinqüenta anos completei quando minha neta entrou para a escola. Serena não se abalou com a viuvez precoce, "Era a hora de ele descansar" me disse de uma vez só. Se ela não parecia uma criança comum, eu deveria ter percebido, é que não há criança comum. Meu medo de ela fugir ao padrão me fez sofrer, por mim mesma ainda que não quisesse adimitir. Padrão se aplica à manufatura, jamais a uma filha ainda mais tão doce e pura. Por não me preocupar com o que os outros vão pensar, estou hoje mais jovem do que na infância que pus a lembrar. Seu único homem foi o marido, mas algumas de suas amigas foram mães ainda solteiras, nem por isso as tratava diferente, formando com elas uma equipe de obreiras. Piscina e biquini, tardes de entretenimento, Serena faz de tudo, só não comete as faltas de que tem conhecimento.
Pai, permita que eu tenha aprendido uma fração do que essa menina me ensinou.
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