Imagine chegar mais cedo e ser recebido assim. 1950s-60s |
Não existe um tempo realmente certo para se tirar férias ou folgas prolongadas, primeiro porque a civilização geralmente nos provê o necessário para escolhermos quando isso vai acontecer, segundo porque essa mesma civilização precisa de nós tanto quanto nós dela, por isso essa escolha precisa ser bem pensada e feita com alguma antecedência sem garantias de que não haverá prejuízos De qualquer forma, é imoral que nos deixem morrer de fome, então com maior ou menor presteza haverá algum socorro; não espere por isso em comunidades isoladas, elas são tão restritas que quando um membro precisa parar, todos os outros sentem o peso e todos padecem junto em maior ou menor grau. Em uma comunidade isolada, ou mesmo no caso de eremitas, o que dita a época de trabalho e a época de descanso é o clima. Em época de fartura, trabalha-se duro para prover o necessário, reparar eventuais danos inclusive à saúde, reforçar a despensa e planejar a próxima estação restritiva, quando o repouso compulsório para a preservação dos recursos amealhados se dá.
Era mais ou menos assim a até não muito tempo, na verdade até a revolução industrial muita gente nem sabia o que era um relógio, então não estranhava dormir mais no inverno do que no verão; provavelmente a maioria nem percebia esse fenômeno, simplesmente tratava de dançar de acordo com a música circadiana e ponto final. As coisas começaram a mudar quando deslocar-se deixou de ser algo de estrita necessidade à sobrevivência, e ser analphabeto não era mais uma "obrigação". As pessoas passaram a ler e escrever à luz de velas, sair para visitar alguém na primeira folga, coisas que incentivavam varar algumas horas além do ocaso. Com isso o hábito de dormir em dois turnos durante a noite, regra quase absoluta até a idade média, começou a dar lugar às horas corridas de sono. Foi um efeito colateral especialmente para a caótica era de reurbanização ocidental, quando sair para visitar alguém no fiofó da madrugada deixou de ser socialmente aceitável; isso é hábito medieval do sono de dois turnos. Para quem ainda não soube, na idade média as pessoas iam dormir com o sol, então sobravam horas de vida noturna que não cabiam no sono, então eles simplesmente tocavam a vida como se fosse dia, incluindo ir visitar pessoas no meio da madrugada, então voltavam para mais uma soneca. Imagine isso no inverno, com suas noites tão longas!
Com o avanço dos meios de produção, que tornaram até um tecido caro como o algodão acessível aos mais pobres, as pessoas passavam a prestar mais atenção aos detalhes e não só ao conjunto, posto que sua sobrevivência agora dependia também disso, inclusive pelas novas regras sociais, por outro lado essas mesmas regras novas e sua fome por novidades deixaram as pessoas do povão cada vez menos parecidas, dando ao trabalhador braçal noções mínimas de individualidade. Embora as novidades tecnológicas da bélle époque ainda fossem inacessíveis, posto que eram tecnologias muito novas e com produção ainda consideravelmente rudimentar para se manter a qualidade em larga escala, antigos luxos como livros e relógios já não eram mais surpresas em casas pobres. As pessoas estavam mais cientes de si mesmas e de seu tempo disponível, então todas essas celebrações pessoais que temos hoje se alastraram. Já não se era mais um reles passageiro do tempo, já se era membro da tripulação, já se poderia fazer um mínimo para organizar a vida com relativa eficiência. Quando do advento das férias, com elas o hábito de viajar, que era reservado aos muito ricos e à extrema necessidade, a preferência especialmente setentrional pelo verão tornou-se mais cultural.
Ficou quase que padronizado, o verão seria a época de se descansar e divertir, o inverno a de maior recolhimento mesmo com as actividades laborais ainda vigentes, primavera e outono seriam épocas festivas com ecos das tradições pagãs e tudo mais. O interessante disso é que justo nas épocas de maior fartura, as pessoas estão mais propensas a descansar. O irônico nisso é que do meio da primavera até o auge do outono temos a melhor época para acumular recursos e enfrentar os rigores invernais. Então seria o verão, com os bons efeitos da primavera ainda vigentes e as colheitas do outono se anunciando, a melhor época para fazer horas extras e não precisar trabalhar quando for mais necessário poupar energia. Aqueles memes que tratam o frio como tendo mais vida, deixam de lado por sua natureza satírica o facto de que o corpo trabalha mais para manter-se funcionando, com isso reclamando ingestão de mais calorias, que dão a sensação de saciedade que um quilo de brócolis não conseguem; dá um trabalho enorme digerir brócolis e, vai muita energia embora nisso. Assim consumimos os recursos que as fábricas fornecem, pois já há tecnologia mais do que suficiente para isso acontecer sem perda de qualidade, garantindo a quem precisa andar de ônibus uma subsistência mais confortável do que os ricos da baixa idade média tinham, até em casas de nobres a garantia de sobreviver ao frio era questionável. Um pobre de hoje pode ser mais rico do que os ricos de então, não romantizem tanto a idade média, na verdade ela era bem abaixo da nossa média.
Ficou muito fácil produzir calorias de modo que não apodreçam em uma semana. Sim, a qualidade nutricional de um alimento industrializado é geralmente questionável, na maioria dos casos eles são alimentos recreativos, mas adivinha o que acontece se modificarem o sabor de uma barra doce para ser mais funcional do que saborosa. Ainda vai tempo até tudo ser saudável e saboroso sem custar os olhos da cada, até lá não subestime o poder de um refrigerante e suas altas doses de açúcar para quem está sofrendo de hipotermia e não tem outro recurso à mão. O facto é que essas calorias abundantes e baratas, com extensa validade, simplesmente não podem faltar em uma despensa de emergência, e um inverno rigoroso é uma emergência prolongada. Só temos algo parecido no Brasil na região Sul e olhe lá, não dura muito, mas enquanto dura ela castiga quem vive lá; admirar-se pela televisão com o espetáculo da neve caindo é coisa de gente tropical. Bem, se é fácil e barato produzir alimentos em plena era glacial provisória, imagine fazendo isso quando o clima é propício! Não que se deva parar no inverno, imprevistos ocorrem e precisam ser supridos, mas o ritmo biológico é naturalmente mais lento quando há menos luz, e em certas partes do mundo há mais de três meses de breu. Seria então mais econômico e até mais producente trabalhar mais nos meses mais quentes e confortáveis, para trabalhar uma ou duas horas diárias a menos no inverno, aproveitando mais a família e os amigos, bem como dedicando mais tempo à própria pessoa.
Há de se pensar que o ocidental já é um trabalhador compulsivo, que passa horas no trânsito todos os dias, mas isso pode ser resolvido com planejamento, as empresas combinando de os operários da indústria de base entrar e sair uma hora mais cedo, por exemplo, mantendo esse escalonamento para as etapas econômicas consecutivas, bem como incentivar o quanto se puder o trabalho remoto. Nem tudo pode ser feito remotamente, não se desamassa um capô com planilhas e e-mails, mas boa parte da actividade intelectual pode, pelo menos uma parte da semana. Nisso se aproveitaria não só o clima favorável como também o dia mais longo para desestressar o trânsito em horários de pico. Com tudo propício para se produzir mais com menos dispêndio de recursos, com o calor e a luz solares incrementando o crescimento vegetal, animais engordando com mais rapidez, lâmpadas acesas por menos tempo, aquecimentos obrigatórios demandando menos energia e tudo mais, os custos de produção dos recursos necessários à época de escassez diminuiriam consideravelmente, pelo muito maior aproveitamento dessa janela energética. Nos meses consecutivos os preparos para o inverno incluiriam a redução gradual da jornada de trabalho, para facilitar a adaptação de nossos corpos que ainda são os mesmos da pré-história. A produção apenas para reposição e manutenção demandaria horas a menos de trabalho diário, dando às pessoas a serenidade que a estação demanda.
Sim, é claro que é lícito entreter-se e esbaldar-se com a fartura veraneia, para isso se tem o excedente de produção, em nenhum momento eu disse o contrário. O que eu disse é que as estações mais claras e quentes são as melhores para se trabalhar mais e acumular recursos. E é este o ponto, porque as pessoas à amiúde querem aproveitar o dia mais longo para justamente aproveitar o dia, como se uma ou duas horas extras coletivas bem planejadas não o permitissem. Muito ajuda a manter essa mentalidade o cinema, que louva o verão como a estação do usufruto, como se pessoas não precisassem trabalhar duro para que alguns usufruam. Assim como a passagem da mentalidade laboral medieval para a moderna/contemporânea, não seria algo abrupto e impositivo, isso simplesmente não funciona. teria que ser incentivada a adesão voluntária ao modelo de cargas horárias cíclicas, em que se trabalha um pouco mais todos os dias nos meses quentes e o contrário nos mais frios, do modo mais gradual possível. Claro que o mesmo cinema que atrapalha aqui, ajudaria a incentivar essa adesão, da mesma forma como mostra o não trabalho como objectivo de vida.
Decerto que nos países tropicais essa mudança seria bem menor e traria menos benefícios, fazer o quê? A economia gerada pelo resto do mundo, entretanto, seria benéfica para nós, que não precisando trabalhar menos nos poucos momentos de frio real que temos, venderíamos para eles o de que necessitam e, afinal, há artigos que simplesmente não são cultiváveis em zonas temperadas, não sem um custo abusivamente alto. Além do quê, não é para cá que eles viajam quando o inverno aperta lá? E esse mesmo inverno, com seu convite à introspecção e à meditação, tem tudo para se tornar uma época extremamente aprazível e romântica. Não, não estou apresentando uma agenda para impor e tampouco ordenando ao cancelamento de quem não aderir, meu grau de idiotice ainda é bastante baixo. Como diz o título, isto é apenas uma coisa que me veio à mente e que daria algo decente para publicar, mas também algo em que eu acredito, ou não teria me dado o trabalho de um dia inteiro dedicado a este labor. Desse modo nós deixaríamos de lutar contra o relógio, ele seria nosso aliado.
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