1955 Packard |
É
consenso no mundo militar que o seu inimigo mais poderoso pode vir a ser, e sem
grandes surpresas muitas vezes torna-se, seu maior aliado. Foi por isso que os
americanos, mesmo com o risco confirmado, armaram e deram suporte ao exército
soviético durante a segunda guerra mundial. Com os soviéticos indignados e
furiosos, espumando de raiva, esfregando as caras dos nazistas no asfalto
quente, eles puderam se dedicar mais a tirar satisfações de quem os atacou
pelas costas. E o Japão derrotado, mas não rendido, tornou-se décadas depois o
maior aliado contra a nova ameaça, que francamente não tinha feito nenhuma
questão de esconder suas ambições e seus métodos; as gerações seguintes
novamente não aprenderam nada com seus ancestrais. É assim em todas as áreas da
vida, em todos os ambientes, provavelmente em todos os supostos planetas
habitados e civilizados do universo; até mesmo um parasita pode se converter em
aliado, como acabou acontecendo com as mitocôndrias, que de meros coletores de
material se tornaram parte indissociável das células modernas.
Assim como a economia, a gravidade e a termodinâmica, não é uma lei inventada por uma pessoa, é uma regra inerente à própria existência. Um oponente honesto, que prime por jogar limpo, é o melhor parceiro que uma pessoa ou uma empresa pode ter, mesmo tendo às vezes ganas de torcer seu pescoço. A pessoa porque um, por assim dizer, inimigo franco deixa todas as suas falhas à mostra, sem disfarces, mas sem cair na armadilha de exceder a dose necessária. Ele não te romantiza, te enxerga com uma crueza que nenhum psicoterapeuta é capaz porque depende disso para te sobrepujar. Assim, com essa franqueza ferina, a proximidade desse inimigo te deixa a estrada limpa e sinalizada para o teu crescimento, com todos os alertas contra as armadilhas que o teu ego espalhou pelo caminho; é ele, o ego, o único e potencial inimigo que alguém realmente pode ter. Para não dar a esse “inimigo” o espaço que ele almeja, tua atenção à virtude e aos riscos te farão exemplo até para ele, que em último caso será o único a levar uma flor ao teu túmulo, ainda que para ter a satisfação de ter sobrevivido ao adversário, mesmo que caia fulminado antes de sair do cemitério.
Por causa de um oponente de valor, uma pessoa se esforça sempre e dá sempre o seu melhor, sabendo que o menor deslize dará preciosos milímetros de faixa para ele ultrapassar e ganhar preferência. Com o tempo, e fazendo as contas que esse adversário atento nos obriga a fazer sempre, vem a sabedoria de não precisar temer e tampouco perder tempo remoendo pequenas falhas e atrasos, porque a disputa é, ainda que palmo a palmo, de longo prazo. Aflições desnecessárias e ansiedades nutridas por eventos adversos é que te deixarão real e nitidamente para trás. Pode até haver o caso de esse inimigo te ajudar em segredo, é claro que ele JAMAIS vai admitir tê-lo feito, ou de forma dissimulada, porque ele também terá percebido que o teu progresso é que o faz perceber suas falhas antes que elas se tornem casos perdidos. Os erros que um rival vê o outro cometer com sua família, e ele prestará toda a atenção do mundo a eles, se esforçará para não repetir na sua, e o sucesso do rival logo chamará a atenção do outro para suas falhas. Assim um se torna para o outro um compêndio dos erros que não deve cometer, ou pelo menos deve-se abster-se ao máximo e corrigir com a maior presteza possível.
Não vamos nos iludir que inimigos sempre farão tudo diferente, é conversa mole. Eles fazem rigorosamente as mesmas coisas de formas diferentes, mudando estilos e adereços, nada mais do que isso. O seu inimigo em uma guerra vai guerrear, em uma corrida vai correr, em um teatro vai encenar, em um palco vai cantar e assim por diante. Se fizerem realmente coisas diferentes, um não incomodará o outro e não haverá motivos para contendas, assim não haverá rivalidades. O seu inimigo é você mesmo jogando no outro time. Ele te conhece tão bem que poderia ler sua mente apenas olhando nos seus olhos, e seguramente se aproveitaria dessa baixa de guarda para tirar vantagem. O facto de ser um “inimigo” leal, não significa que ele não entrará no seu território sempre que puder, por exemplo, para conquistar sua família falando bem de você e demonstrando qualidades que só ele notou até hoje, assim te deixando de mãos atadas para falar mal dele em público.
Ele não vai tirar proveito de sua família, muito pelo contrário, vai defendê-la como se fosse dele. Contraditório? Não! Humilhante! Ele fará de tudo para você perceber que ele é que está certo, e sua família acreditar que a sua implicância não tem nenhum fundamento. As flores que você deixou de dar à esposa, os agraços de boas-vindas que nunca mais deu ao marido, as conversas francas de que uma criança necessita e seus filhos já nem lembram como são, as datas de aniversário que a correria fez mofar na agenda, os detalhes na indumentária que o tédio da rotina jogaram ao esquecimento, as promessas que a falta de uma pressão moderadora te fizeram quebrar e muito mais, tudo isso está nos planos do rival. Se tiver um mínimo de juízo, ainda que como instinto de sobrevivência, o troco há de ser dado na mesma moeda, mas de forma personalizada. É uma aliança compulsória, bipolar e a certa altura será indispensável.
Da mesma forma um concorrente honesto será capaz de reconhecer o valor da tua empresa, mas se valerá justamente disso pra exaltar a dele e convencer a tua clientela a experimentar o que ele oferece. Ele vai agregar valores e diferenciais que remeterão imediatamente àquilo que você oferece, mas sem os problemas crônicos que você negligenciava por custos, por tradição, teimosia ou o que quer que seja, seu concorrente terá se debruçado sobre o problema até encontrar uma solução razoável e economicamente viável. Quem se lembra da Kia Besta, sabe dos benefícios que trouxe à Kombi. Por décadas sem concorrência, permaneceu praticamente sem qualquer aprimoramento, limitando-se a atender minimamente a legislação ano a ano, só evoluindo de facto quando a coreana chegou e chamou para si as atenções do público que simplesmente não tinha escolha. Quando a Besta saiu de linha, a Kombi novamente parou no tempo e, sem concorrentes, a VW não exitou em descartá-la sem deixar descendência assim que não era mais rentável… e perdeu a liderança que nunca mais vai conquistar de volta.
Assim como a Cadillac é a única coisa que impede a Ford de cometer mais uma asneira e enterrar a Lincoln, a concorrência com a Besta e em menor escala com a Towner era o que motivava as atenções que a Kombi recebia da marca. A bem da verdade, a falta de concorrência real e leal tem corroído nossa indústria há tempos, em todo o ocidente. E é o pior tipo de corrosão, pela falta de uso. Foi de tal forma que quando as importações foram abertas, muito de nossa indústria se reduziu a pó, principalmente as fábricas de brinquedos e de tecidos. A falta de concorrência ostensiva nos deixou particularmente de tal forma despreparados, que quando ela veio quase decretou a extinção de nosso parque industrial. A própria indústria automotiva nacional, que cometeu o pecado de simplesmente eliminar marcas adquiridas, em especial a VW que mentiu descaradamente que manteria Chrysler e DKW, nosso portfólio era tão pobre a acanhado que mesmo as marcas de luxo fizeram a festa. Nós tínhamos os fora de série, claro, alguns deles muito sofisticados, mas eram incapazes de suprir uma demanda séria, demoravam muito para ser entregues e custavam o mesmo que esportivos puro-sangue e sedãs de alto luxo consagrados que povoavam o imaginário do brasileiro, eles a pronta entrega. Tivessem dado o devido apoio aos fora-de-série, que aliás eram clientes das grandes montadoras, teriam enfrentado melhor os importados, diluído os custos na maior escala de produção de componentes vitais e hoje teriam um portfólio digno de exportação… Não nos esqueçamos da Troller.
Para quem não sabe, e infelizmente o brasileiro tem memória de areia, a própria predadora VW já precisou recorrer à concorrência no Brasil. Claro que Scania e Toyota, à época, não eram concorrentes directas, embora a Bandeirante disputasse com a Kombi a preferência nos lugares onde não havia estradas. O problema foi na seção de pintura, que nos anos 1970 simplesmente pegou fogo, obrigando os executivos a fazerem negociações emergenciais rapidamente em uma época em que o Fusca vendia mil carros por dia no Brasil, na época metade da nossa frota motorizada era só Fusca. Isso não só resolveu o problema como salvou a Toyota do Brasil, cujo aluguel da ociosa seção de pintura deu fôlego financeiro em uma época de vacas anoréxicas. Isso além te ter enriquecido um pouco nossas ruas, com Fuscas usando as paletas da Scania e da Toyota se diferenciando dos outros. Mas passou a crise e os benefícios da cooperação com os rivais foi esquecida. Os primeiros caminhões VW, para constar, nada mais eram do que Caminhões Dodge com cabines VW… e as propagandas da ápoca, como aconteceu com a DKW, diziam que os clientes Chrysler então poderiam contar com a rede VW.
Não muito diferente da indústria americana, que com a perda gradativa das pequenas e criativas marcas, foi perdendo também o incentivo doméstico e os toques de criatividade de que as três grandes tanto sentem falta hoje. Essas pequenas tiravam leite de pedra, faziam modelos obsoletos continuarem bons por muito tempo, até terem condições de apresentar uma geração realmente nova, com isso ainda se davam o luxo de zombar da mesmice de General Motors, Chrysler e Ford; e mesmo essa “mesmice” deixava a indústria brasileira no chinelo. Com o ocaso das marcas pequenas, as japonesas tomaram conta. Um problema disso é que ao menos na época, elas não primavam pela lealdade na concorrência, o Iene era, ainda mais do que hoje, mantido baixo pelo governo japonês justamente para forçar uma competitividade maior, o resto vocês já sabem. Mais tarde veio a China que fez essa tática parecer brincadeira, fazendo dumping descarado e descaradamente desmentido diante dos números expostos, o resto vocês já sofrem. Às vezes, mesmo em se tratando de um rival, é preciso ajudar a resolver seus problemas para que eles não cresçam demais, saiam da casa dele e entrem na sua. Uma parceria com a AMC para produzir compactos, para os quais a GM não tinha cabedal nenhum, teria freado os orientais e feito bem a ambas; foi justo para os orientais que a clientela das extintas pequenas migrou, e todos perderam. Dar o devido valor e esporádico amparo ao concorrente doméstico, talvez tivesse minimizado a crise de 2008 a ponto de não haver riscos de insolvência. Hoje eles têm centenas de pequenos fabricantes, mas são como os nossos saudosos fora-de-série, e a maioria só produz kits para montar ou modificar carros já existentes.
E no dia 5 deste mês tivemos mais um exemplo de como a falta de concorrência é danosa, com a queda do grupo que controla o Facebook, Instagram e WhatsApp. A burrice de colocar todos em um só lugar ajudou a agravar o problema, porque a queda de um se estendeu quase que imediatamente aos outros. Para quem pensa que foram apenas seis horas sem redes antissociais, muita gente tem nessas plataformas, na verdade essa plataforma única de três faces em que os três serviços se aglutinaram, o seu meio de vida. Soube de microempresários que tiveram trinta mil ou mais reais de prejuízo, e isso para quem só tem uma porta ou um pequeno estoque em casa, é muito dinheiro! Para quem vive de circular rapidamente bens e serviços, seis horas em horário comercial são uma eternidade. O hábito de se tratar o website como uma loja física piorou o quadro, porque uma loja física não pode ser simplesmente derrubada por um problema tecnológico, enquanto uma virtual só precisa de uma oscilação de energia para travar uma venda; ou pior, para travar o cartão do cliente no site, aí a coisa fica realmente feia! Houvesse cooperação com outras plataformas, inclusive as que foram engolidas, transtornos e prejuízos teriam sido mitigados.
Por último, mas não menos importante, vejamos o exemplo dos Estados Unidos, que perdeu um oponente poderoso, que o impelia a ser sempre melhor, mas cujo vácuo foi ocupado por um parasita que mente diante da verdade exposta e dá de ombros para os métodos, inclusive contra seu próprio povo. Aquela rivalidade elegante e inspiradora, ainda que perigosa, mantinha as atenções e os esforços no seu progresso, sempre migrando o mais rapidamente possível os avanços da área militar e espacial para o cotidiano do cidadão, que na época ainda conseguia se maravilhar e usufruir o máximo dessas conquistas. Hoje o que temos é uma parcela perigosamente grande da população americana simplesmente acomodada em confortos, simplesmente se deitando na almofada sem mais se encantar com o facto de tê-la e poder usufruir dela, consumindo entretenimentos que fazem os mais bestas dos shows dos anos 1970 parecerem altamente intelectualizados, somando-se a isso intelectuais moradores de bolhas que querem decidir até o que as pessoas devem pensar. Na falta de um rival real, aceitaram os inimigos imaginários que picaretas impuseram. Não deveriam ter deixado a Rússia à própria sorte, esta que sempre foi madrasta para os russos. Hoje são eles que precisam ocupar parte do vácuo deixado, a custos altos, porque o império parasita já quer forçar vácuos para ocupar, agindo como uma figueira estéril, que estrangula e vampiriza seu hospedeiro, gerando frutos ruins de aparência aceitável, só produzindo de verdade para si mesma. A esse parasita não interessam alianças, só subserviência.
Agora, empresário, olhe bem ao seu redor. Veja tudo o que seu esforço e suas estratégias conseguiram amealhar. Faça um breve histórico das últimas crises severas, desde 1998, dê especial atenção às vezes em que seu empreendimento correu o risco de fechar as portas, faça uma análise crítica honesta de tudo o que precisou enfrentar e das decisões amargas que precisou tomar até agora. Antes de bater no peito se achando o máximo, acenda uma vela para o seu concorrente, com toda certeza ele é um dos grandes responsáveis pelo seu sucesso.
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