Enquanto a
maioria se contenta em assistir ao espetáculo, alguns se perguntam o que teria
acontecido ou ainda estaria acontecendo detrás do cenário, aquele fundo
geralmente pintado ou encoberto por uma espessa cortina que separa os actores
dos trabalhadores de suporte. Esse lugar oculto aos olhos do público chamamos
de bastidores. Em princípio eles não teriam importância, e para o fim a que se
destina a compra do ingresso, realmente raramente tem, a maioria das pessoas
tem uma idéia básica do que acontece lá e crê que isso não afeta suas vidas;
quando o teatro em questão é realmente só um teatro cenográfico, geralmente não
mesmo… mas às vezes o teatro é a metáfora da realidade que se desenrola em
nosso cotidiano, então as actividades dos bastidores importam sim ao cidadão
comum, que como no espetáculo, nem sempre se importa com o que seus olhos não
podem ver. À amiúde, esse cidadão acredita que os funcionários desses
bastidores devem simplesmente fazer seu serviço e quer que esteja pronto quando
precisar dele, mas nem sempre é assim e nem sempre esse “pronto” é o pronto que
gostaria que fosse, ou deveria ser.
Comecemos
pelo conceito errôneo que temos de “bastidores”, que para a maioria se aplica
àquele espaço oculto ao público já citado. É oculto, mas não inacessível. Na
realidade tampouco são os bastidores da peça. Podem ser considerados os
bastidores da ação em andamento, até certo ponto, com influências de
precedentes sem os quais o suporte a essa ação não teria sido possível. Começando
pelo prédio, ou seja lá qual for o espaço do teatro, existe um comando para que
todos os detalhes aconteçam a contento, ou para que dêem o menos errado
possível. Esse comando geralmente inacessível ao grande público precisa de um
lugar privativo e com o mínimo de interrupções possível, para poder planejar o
espetáculo e resolver os problemas que sempre aparecem, tudo em tempo hábil e
de modo suficientemente bom. Inclusive o planejamento dos bastidores da ação,
que então já não merecem ser “os bastidores”, eu chamaria aquele lugar de
“conta-palco”, já que mesmo o que acontece lá é tão efêmero quanto o espetáculo
ao qual dá suporte. Entretanto ainda não temos os reais bastidores da peça,
porque aquela pessoa com as decisões em suas mãos não fará tudo sozinha… quase
nada, na verdade, nem mesmo a totalidade das decisões imediatas cabem a essa
pessoa.
Sairemos do
prédio do teatro. Aqui chegamos aos personagens menos considerados pela grande
massa que paga pelos ingressos, e que por ser o sustento do teatro, mesmo
alienada, merece o devido respeito. Primeiro a peça precisará de corpos que se
emprestem às personagens, então pode ser necessário que agências de artistas
entrem no jogo, ou, pelo menos, olheiros que indiquem as pessoas certas. Por
mais profissionais e racionais que sejam, estamos falando de seres humanos, e
mesmo inteligências artificiais precisariam aprender conosco a fazer o serviço,
então será preciso negociar e talvez os artistas desejados não estejam todos no
elenco. Se isso às vezes é uma janela para a exibição de novos talentos, é um
contratempo que pode comprometer a execução do espetáculo justamente porque
estamos falando de seres humanos, ou de softwares que agem dentro de parâmetros
criados por humanos. Se vocês não conhecem o show business, não sabem os
problemas que artistas veteranos podem dar a novatos que demonstrem algum
talento consistente. É hora de conversar e tomas as decisões menos ruins para o
andamento dos trabalhos. Uma vez postos os pingos nos is, vamos viabilizar a
realização do espetáculo, enquanto os actores estudam seus papéis.
Chegou a
hora de deixar o amor pela arte um pouco de lado, porque é das raízes feias e
sujas que tiramos as mais belas e suculentas maçãs. Precisaremos de patrocínio.
Pode ser uma tarefa mais ou menos árdua, dependendo da credibilidade e da
popularidade dos productores do espetáculo, SEMPRE NESTA ORDEM porque ninguém
dará um centavo a um sujeito popular com fama de arruinar tudo. Seja como for,
é sempre uma tarefa árdua que demanda tempo, paciência e muita diplomacia. Por
exemplo, os patrocinadores almejados podem simplesmente não ter interesse em
vincular suas marcas àquela peça em questão, por melhor que seja a argumentação
do negociador, em alguns casos o empresário pode até temer que aquele roteiro
arranhe a imagem pública que ele levou anos, talvez décadas para construir.
Também complica se o cacife dos produtores não lehs der acesso a grandes
patrocinadores, o que os obriga a gastar mais tempo, combustível e sola de
sapato para viabilizar tudo. E aqui estamos falando de um empresário, que pode
ser demovido por números, resultados, garantias e ofertas de bons espaços
publicitários, as coisas complicam e muito quando os únicos patrocinadores a
que se tem acesso, em princípio, não teriam ou não almejam retorno financeiro,
porque aqui a subjectividade canta de galo.
Uma igreja
pode simplesmente vetar tudo assim que seus titulares virem o título, como
aconteceu no clássico do cinema trash “Plano X do Espaço Sideral”, que
originalmente seria algo como “Plano Satânico do Espaço Sideral”. Fora que
cenas mais quentes foram sumariamente suprimidas. Mas não sejamos injustos com
os religiosos, a maioria não age com tamanha tacanhez, só faz exigências
pontuais e pedidos a membros da paróquia ou congregação. Só isso… mas mesmo “só
isso” pode desagradas deveras tanto o elenco quanto outros patrocinadores,
então meus amigos, vai mais sapato, mais combustível e mais tempo, o que pode
comprometer o cronograma e aumentar os custos da empreitada. E por falar nesses
outros patrocinadores, há os que simplesmente não aceitam participar do mesmo
projecto que determinados outros, especialmente se forem empresas concorrentes
ou, pior, se forem pessoas inimigas… e ninguém vem com “eu odeio aquele fulano”
tatuado na testa, então é um risco real e iminente… e uma tentativa de
conciliação pode resultar na perda de ambos.
Não fica
mais simples quando o patrocinador é o erário. Mesmo que o contribuinte
raramente ou nunca possa definir onde o dinheiro resultante de seu árduo trabalho
será aplicado, fica a cargo de um funcionário público interpretar as regras
quase sempre prolixas e mal escritas, repletas de vícios de linguagem que
permitem fazer do lobo mau uma vítima da sedução da maldosa Chapeuzinho
Vermelho. O patrocínio pode nunca sair e, dependendo das regras, o produtor é
obrigado a não buscar patrocínio privado até todo o processo ser concluído, o
que pode levar meses, anos talvez, e sua conclusão pode simplesmente não ser
comunicada. O interessado então precisa fazer o trabalho que meus colegas de
serviço público são pagos para fazer, mas não sofrem nenhuma represália se o
serviço não feito não afetar seus chefes. Infelizmente a liberação ou não é
mais independente das regras propostas pelos idealizadores da lei do que vocês imaginam,
pelos motivos já citados neste parágrafo. Mais uma coisa, se um político
influente dentro da repartição não for com a sua cara ou com o seu projecto… já
sabe… É como se houvesse, e há, bastidores paralelos a todas essas camadas de
que estou falando, eles mesmo com suas próprias camadas obscuras.
Espero ter
até agora dado uma idéia clara do que quero dizer. Temos uma camada de bastidor
que vai além das paredes do teatro, então seriam três camadas de bastidores, se
fose simples assim. Tanto com empresas quanto com entidades sem fins lucrativos
e o serviço público, isso é como uma cebola que sempre tem várias camadas, e
cebolas podem ser enormes! Tanto maiores quanto mais antigas e bem nutridas
forem antes da colheita. O CEO de uma corporação não estará à sua espera no
departamento de marketing, no máximo o director de marketing daquela filial vai
atender o interessado, após o agendamento devidamente formalizado com a
assessoria. Então, durante a entrevista, por mais liberdade que tenha, existe
uma cadeia de hierarquia que o director ou a directora de marketing precisa
obedecer para não perder seu emprego, eu diria pelo menos mais duas camadas
nesta cebola. O que dá, sem contar o contra-palco, uns cinco ou seis
bastidores, mesmo no caso de pessoas e entidades sem fins lucrativos.
Agora
chegamos ao que pode ser a última camada de bastidores, mas às vezes não é: o
autor to texto. Mesmo que haja mais de um autor, um deles vai preponderar, por
mais sutil que seja. Por exemplo, simplesmente não dá para adaptar O Guarani de
José de Alencar para se passar em um convento de carmelitas descalças com foco
na cultura hiphop, por mais boa vontade e talento que o escritor tenha, por
mais inspiração divina que receba simplesmente não vai funcionar! Todas as
adaptações possíveis respeitarão os personagens, o enredo e o roteiro básico da
obra, o que torna evidente qualquer adaptação desejada, especialmente quando se
trada de uma obra clássica consagrada. Não, simplesmente não funciona se o
autor não for rigorosamente obedecido, é ele o mestre e condutor de tudo por
detrás de todo o trabalho pós texto, mesmo que já esteja morto. Ainda que não
tenha sido reconhecido em vida, diga-se de passagem. Assim, mesmo que pareça
que o ciclo esteja fechado, ainda não está. A obra que sair da mente do
escritor terá recebido influência de muita gente, mesmo que não directametne.
Pessoas do convívio ou que serviram de inspiração estão lá, mesmo que ocultas
em frases que seus entes achariam familiares, mas também há outro caso, o de a
obra ser encomendada.
Um autor em
crise financeira não pode deixar de comer e morar, assim como nem todos os
autores têm vocação para criar do zero um texto novo e dependem de demandas
para seu processo criativo, e mesmo os que têm não são obrigados a assinar tudo
o que escrevem. Nesse caso a obra estaria subordinada às exigências de quem a
tiver encomendado, tocando ao escritor o trabalho de colocar no papel o que lhe
for ordenado. Por mais estilo próprio e de sua linha de pensamento que consiga
colocar nas páginas, é basicamente por esses dois quesitos que o cliente o terá
escolhido. Se ele quiser demonizar alguém e santificar outro, por ter
concordado e aceitado o serviço o autor deverá desenvolver um roteiro que faça
isso, mesmo que suas opiniões sejam completamente contrárias a isso. Não cabe
ao autor questionar os motivos e os anseios por detrás daquela encomenda, neste
momento ele é só um soldado com uma missão a ser cumprida, cabe ao contractante
fornecer todas as informações de que ele necessitar, nada além disso.
E por falar
em contractante, ele pode não ser o autor da demanda, mas um intermediário
trabalhando para terceiros, talvez um grupo. Nem todos querem ou podem se expor
ao público, por ais glórias que o espetáculo lhes rendesse se o fizessem.
Medos, interesses, necessidades ou simplesmente opção de vida influenciam muito
mais do que vocês imaginam. Eu poderia encher lingüiça com um texto prolixo e
divertido para falar de cada uma das possibilidades de motivações e camadas
dessa cebola de bastidores, mas eu me irritaria muito me me daria um murro no
nariz. Assim como acontece com uma simples peça de teatro, acontece também no
mundo que o sustenta, desde as tarefas da escolinha primária até as mais
emaranhadas entranhas da geopolítica mundial. Os bastidores, os verdadeiros
bastidores de um acontecimento podem estar extremamente longe do teatro em que
a ação se desenrola, e os motivos primários de tudo aquilo geralmente estão
muito longe do óbvio, geralmente longe também dos noticiários generalistas, às
vezes até dos especializados. Não raro, meia dúzia de pessoas decide por seus
próprios critérios os destinos de um bilhão de indivíduos inocentes de tudo,
apenas a aplaudir o espetáculo que se desenrola no palco, sem nem imaginar o
que acontece no contra-palco.
2 comentários:
Com essa reflexão percebemos toda dificuldade de se fazer cultura Aplicável a vários cenários
E olha que eu resumi muito, mas o exemplo do teatro foi o teatro perfeito para a peça que precisei encenar.
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