Goiânia. Avenida Goiás, Centro, 1950s |
Eles vivem fora da cidade, em uma cidade privativa. Nesta cidade privativa, só entra quem for residente, empregado ou convidado. É um mundo à parte onde as leis ordinárias do país podem bem ser ignoradas, se houver suficiente coesão de interesses para tanto, e geralmente há. Não me refiro apenas a episódios como um do Rio de Janeiro, ainda no fim do século passado, em que um fedelho mimado estúpido foi flagrado dirigindo de forma perigosa dentro das ruas privativas. Chegando em casa, impune por que era menor, encarou a imprensa e gritou "dirijo sim e vou continuar dirigindo". Se isso é aceito pelos moradores, então mais infrações podem ser, bastando haver um código de silêncio, seja voluntário, seja imposto; como o que os traficantes impõe às favelas e bairros periféricos. Não muda muita coisa, até porque já disse que há décadas não temos uma elite, temos um bando de deslumbrados com dinheiro na conta, mas isso verei mais tarde, noutro texto, se for pertinente. Em ambos os casos, as pessoas crescem em realidades paralelas, muitas vezes agindo como estrangeiros, ou alienígenas, quando vão à cidade dos comuns e nem sempre conseguem falar o mesmo idioma dos locais.
Deixo claro que não sou contra condomínios, cada um mora onde quer e pode. Não me importo com o tamanho e os materiais usados na construção da casa, não dou a mínima, eu sequer abro "notícias" a esse respeito. O problema vem quando a alienação do mundo real atinge quem não deveria sequer se afastar dele. Ainda me lembro, em meados nos anos 1990, de uma reportagem que levou às ruas dois garotos que nasceram e quase nunca tinham saído de seu condomínio, pelo visto jamais o faziam a pé. Ao contrário daquele fedelho insuportável, eram bons garotos, gentis e interessados pelo mundo extra muros. Viram pela primeira vez um policial de perto, conversaram com ele diante das câmeras, a certa altura perguntavam o quanto esse policial ganhava, chutaram um valor que dava umas cinco ou seis vezes o soldo. As carinhas macias com expressões de perplexidade deixaram clara a pergunta mental de "como é que ele vive com isso"; provavelmente era o que cada um gastava com shopping e entretenimento.
O mote de um condomínio fechado é a comodidade, a segurança é apenas um agregado mais utilizado em países violentos como o nosso. Essa comodidade, que tem seu preço, inclui uma infraestrutura mais sólida e moderna, locais de consumo de bens e serviços dentro do complexo, robustas estruturas de lazer exclusivas para os condôminos, jardinagem, paisagismo, serviços essenciais entre outros. Muito disso o controle da corrupção poderia oferecer facilmente ao cidadão comum e, bem, isso tem a ver um pouco com a facilidade com que esses loteamentos têm proliferado, nem vou agora abordar os métodos e os interesses dessas facilitações. Não não são negócios ilícitos e nem imorais, não são os negócios em si que causam os problemas, mas os facilitadores que se servem deles. E é mais grave do que permitir a construção de um alto edifício em local impróprio, onde a sombra e o tráfego resultantes vão agravar o trânsito, sobrecarregar os sistemas de energia, água e esgoto, chamar mais a atenção de meliantes, comprometer a privacidade dos moradores e tornar o bairro menos habitável; tudo isso é muito ruim, mas a coisa é bem pior.
Foi-se a época em que políticos viviam em bairros nobres, estes também já sofrendo com a negligência, aonde o cidadão do bairro mais afastado e desassistido poderia ir para tirar satisfações. Casas luxuosas, amplas, com vastos quintais e as melhores empresas do país a poucos minutos, prontas para atender a qualquer hora; mas todas essas casas em logradouros públicos, ao alcance do mais humilde dos cidadãos. É aqui que entra a sedução de uma cidade privativa com muros e total restrição de acesso. Aquela conversa de o político eleito simplesmente sumir após o pleito, agora é literal. Não bastasse os eleitos se refugiarem na bolha artificial de seus condomínios, os primeiros escalões do poder público também o fazem, e o cidadão passa a só ter acesso aos baixos escalões, muitas vezes apenas ao de base, que simplesmente não têm autonomia para fazer muita coisa, mas estão expostos e de mãos matadas à indignação do contribuinte. Os carros que os figurões usam mal os deixa sentir as ondulações do asfalto mal cuidado, e alguns deles sequer usa as ruas para se deslocar; notaram como ficou comum ver dois ou mais helicópteros ao mesmo tempo? Eles se esmeraram e realmente conseguiram se isolar do mundo real, e dos problemas que eles mesmos causaram.
Não sei em suas cidades, mas os bairros centrais e mais nobres de Goiânia, antes jóias que rendiam photos e suspiros, estão se degradando a olhos vistos. Eles não vão investir de verdade em lugares que não freqüentam, não se não forem persuadidos a isso, mesmo que seja um bairro de mais abastados. O máximo que fazem é remendar o asfalto, passar tinta rala nas guias de calçadas, roçar a grama e trocar algumas lâmpadas. Em época de eleições a coisa muda, mas não muito, porque tudo é feito com economia, para não durar muito mais do que os últimos meses do ano. O Marista, que já foi o sonho de loteria do goianiense, perdeu o brilho. Fora algumas ilhas residenciais, que lutam bravamente para manter o nível do setor, a urgência de outrora não existe mais no atendimento às demandas do morador; calçadas mal conservadas já dão um ar de decadência à jóia da cidade, com isso o interesse do próprio morador pelo bairro diminui. Mas é claro que no condomínio fechado do doutor excelência está tudo bem! Até o paço municipal é hoje um lugar quase inacessível ao trabalhador comum, que não pode simplesmente deixar de trabalhar um dia para viajar até lá.
Se o bairro mais nobre da cidade está relegado, o centro, que foi concebido para ser habitado por funcionários públicos, está se tornando uma gigantesca boca de fumo. As intervenções feitas o foram para atender aos anseios políticos ou dogmas ideológicos dos últimos prefeitos, como derrubar centenas de árvores do largo canteiro central da Paranaíba para fazer um circo, que não resolveu nem de longe o problema dos ambulantes, como se propunha na época. O famigerado BRT, que teve obras interrompidas várias e longas vezes, pelo judiciário, e já consumiu o suficiente para uma linha de metrô, este pelo qual esperamos há mais de trinta anos, ainda gera transtornos para os comerciantes e os já poucos moradores do centro. Enquanto prédios históricos ao longo da Avenida Goiás caem aos pedaços, alguns já demolidos para dar lugar a prédios feios de atacadistas shing ling, e os muitos vazios permanecem sem solução, a tal obra permanece como um buraco negro espaguetificando o erário. Há ainda muitas casinhas dos anos 1940 e 1950 em ilhas que ainda têm relativo sossego, mas a pressão é grande... e sair à calçada à noite para conversar com os vizinhos, está fora de questão. Mas na bolha de realidade paralela do excelentíssimo pomposo ninguém reclama da vida.
O caso mais antigo e agora escancarado, é o de Campinas. Várias casas históricas foram demolidas e viraram estacionamentos idiotas para sacoleiros, ajudando a piorar muito o já pesado e traumático trânsito em ruas que foram dimensionadas para carroças. Os tais sacoleiros fazem um pandemônio no trânsito, parando seus carros NO MEIO da rua e ameaçando quem achar ruim. Muitas dessas casas eram do mais puro e autêntico art déco, uma delas ainda era art nouveau... É que Campinas já era uma cidade centenária, quando Goiânia foi fundada, com o tempo a capital cresceu e anexou, transformando a cidade em bairro. Ainda houve a abertura de saídas directas para a perimetral, que é uma pista dupla com tráfego intenso de imensos ônibus e caminhões com cargas gigantescas, ambos se utilizam do frágil asfalto de nossas ruas estreitas. Cheguei aqui em 1992, quando as mãos de trânsito ainda eram ao contrário, havia muitas pequenas vendas servindo a população e era seguro perambular pelas ruas, mas na época os problemas de esgoto já eram famosos, e não melhoraram nesse meio tempo. Aqueles que moram em mundos paralelos e só se deslocam por via aérea, mesmo sabendo do destino de casas históricas, fizeram-se de desentendidos e não puseram o assunto em pauta até TODAS estarem no chão. Mas nos paraísos fajutos do olimpo caipira ninguém ouviu um tijolo cair... vão todos para Miami quando querem ver art déco.
Agora, quanto aos bairros mais afastados, que não faz muito tempo que conheceram o asfalto, e alguns ainda nem isso, vocês podem imaginar o regaço em que estão. O Jardim Novo Mundo ainda hoje carrega o estigma que NINGUÉM se preocupou em pelo menos atenuar. A falta do metrô trens urbanos se sente muito mais nesses lugares, muitos deles resultados de invasões que foram toleradas e negligenciadas por interesses eleitorais, e depois legalizados sem a mínima condição de receber infraestrutura decente... que nem bairros mais centrais têm, mas vá lá. E a quem reclamar? Ao judiciário que passa um traficante na frente de mais de 1400 pedidos de habeas corpus sem se importar com os precedentes? Seus membros também não moram mais nas cidades há muito tempo! O que era uma idéia para suplementar a infraestrutura, trazer conforto interiorano a quem se dispusesse a manter, tornou-se uma barreira física e sólida entre o poder público e quem o sustenta.
2 comentários:
So falou verdades, aquelas verdades inconvenientes. Ate Pilatos perguntou a Jesus, o que eh a Verdade ? Sendo que ele estava diante dela !
A verdade é uma pedra que te dá a opção de vê-la, mas não ver não detém sua trajetória.
Postar um comentário