30/08/2019

A lição do peixe-espada

Fairey Swordfish


            A bela matéria de Ernesto Klotzel para a revista Aero Magazine nº 302 tem apenas quatro páginas, três com texto, infelizmente, pois o assunto teria preenchido facilmente mais duas ou três sem perder conteúdo. E é justo a última matéria da edição, cuja leitura poderia ter sido melhor encerrada com algumas páginas a mais, que deu o gancho para um assunto que quero tratar há muito tempo.



            Vamos ao foco. Com a competência de sempre, a publicação contou mais um capítulo da história da aviação, no caso a militar, tratando de um avião que teria tudo para ser um desastre completo em ação, mas foi o pesadelo da então moderníssima frota naval nazifascista. O torpedeiro Fairey Swordfish era obsoleto em 1933, quando o primeiro protótipo ficou pronto. Uma aeronave biplano que levava a tripulação exposta, com baixo desempenho e estrutura coberta por tela em vez de metal era o retrato tridimensional dos anos 1910. Teria sido um sucesso na 1ª guerra, mas o foi na 2ª. Mais ou menos como se o Fusca Itamar fosse lançado hoje para concorrer com o Kwid e roubasse seu público.



            Claro que a Alemanha ria com escárnio de uma aeronave que não excedia 130
"Bismarck". Art by Nick Clarke.
milhas por hora, numa época em que 300 milhas por hora não eram grande coisa na aviação de guerra. O Swordfish era quase como o caranguejo ferradura, um fóssil vivo entre espécies modernas, muito fácil de ser derrubado por qualquer artilharia da época, se fosse atingido. Entretanto, essa obsolescência lhe dava trunfos. A configuração biplano e a baixa velocidade operacional lhe davam uma manobrabilidade extraordinária, tendo havido relatos de caças alemães se chocando contra o mar ou até contra outro caça amigo, no melhor estilo da Esquadrilha Abutre da Hanna Barbera.




            O maior trunfo do modelo era justo deixar o piloto pilotar, e com isso a Real Força Aérea conseguia tripulações de altíssimo nível, com alguns pilotos extraordinários manobrando aviões capazes de acrobacias impossíveis nos velozes e pesados caças modernos da época. As más-línguas compatriotas diziam que sua artilharia estava um nível acima do arco e flecha, mas foi suficiente. Seus torpedos eram igualmente anacrônicos e limitados, mas eles afundaram quase um milhão de toneladas da frota nazifascista; e olha que os navios da época parecem de brinquedo, se comparados às cidades flutuantes de hoje, ou seja, um pterodátilo mecânico forrou o leito do mar com o moderno aço alemão e italiano.



            A arrogância inglesa não é um mito e eles pagaram caro por isso, tanto que agora pagam caro pelo excesso do oposto, mas a arrogância nazista era não maior que fazia os britânicos parecerem carmelitas descalças, e isso era agravado pelo excesso de confiança em seus equipamentos. Não é difícil imaginar um jovem alemão ou italiano entrando na cabine de seu poderoso e bem munido caça, imaginando que em cinco minutos derrubaria sozinho toda a Royal Air Force e voltaria para continuar a conversa com os amigos. Mas a realidade era outra, os atrevidos que ousaram enfrentar o orgulho da ilha nunca retomaram suas conversas.



            Basicamente, embora um equipamento mais aprimorado faça sim a diferença, os invasores enxergavam apenas alvos a serem abatidos por suas máquinas, enquanto os ingleses enxergavam insolentes pedindo por um murro no nariz; era pessoal. Enquanto alemães e italianos se deixavam levar pela superioridade de seus aviões, os Swordfishes é que eram levados por seus pilotos; o homem fez a diferença. Alemães e italianos se viam
A máquina e seus mestres.
como parte de suas máquinas, os ingleses viam as máquinas como partes de si mesmos; a visão humana fez a diferença. E essa diferença afundou o orgulho nazista junto com o encouraçado Bismarck. Não havia heróis de propaganda do lado inglês, eram todos ingleses lutando na guerra. Eles não choravam pela perda de um salvador, mas pela perda de mais um filho. A diferença era o ser humano, e assim a pequena e isolada Inglaterra deu uma surra nos nazistas.




            Sete décadas foram mais do que suficientes para que essa lição fosse esquecida. O caso mais bizarro é o de donos de Teslas dormindo enquanto os carros viajam sozinhos pelas vastas estradas americanas. Esse excesso de confiança na inteligência artificial da marca já tem resultados amargos, incêndios e óbitos por colisões em alta velocidade já estamparam várias vezes os noticiários. A comodidade chegou a tal nível, que até carros básicos têm mimos atrofiantes. Não digo que não deva haver facilidades, digo que não devemos ser dependentes delas.



            Mas desde antes as pessoas têm se deixado mimar pelas conveniências artificiais, se tornando dependentes de coisas que deveriam apenas facilitar a vida, mas ora funcionando como droga e muleta. O caso chegou ao ponto de muita gente, especialmente mais jovens e ditos “esclarecidos”, ter explícita preferência por ser conduzida a se conduzir; isso infelizmente teve reflexo na política, com essa mesma gente querendo que os governos regulamentem tudo e decidam até procedimentos para duas pessoas se aproximarem, fora dos quais até um olhar poderia ser considerado assédio ou mesmo estupro. Essas pessoas não querem crescer e, pior, não querem que os outros cresçam.



            Há uma diferença entre não resolver a equação de Bhaskara e não ser capaz de fazer contas simples sem ajuda de uma calculadora. E mesmo a calculadora está em vias de extinção, porque tudo pode ser simulado no smartphone. O excesso de confiança nos algoritmos se deve basicamente ao conforto da impressão de que “alguém” está cuidando de sua vida por você e que por isso pode se concentrar só no que dá prazer. O “papai” algoritmo te dá tudo na mão: calculadora, mapa, redes sociais, jornais, entretenimento, serviços de transporte, entrega de comida, tradutor, contador de calorias perdidas, diagnóstico preliminar de saúde, possíveis fontes remotas de renda, namoro virtual, ativismo virtual, vida paralela virtual, felicidade virtual e (pasmem) até uma linha telephônica! UAU! Só não consegue compreender um comendo de voz de quem não tiver sotaque padrão e dicção perfeita… experimente gripar e falar àquela trolha para ver!



            Agora, se o aparelho pifar, tua vida inteira está comprometida. Gente que não aprendeu fazer sozinho o caminho da barra até a gola da camisa, não vai mais conseguir se vestir sem gritar por ajuda; e se viver entre iguais tecnodependentes, ficará pelado. Muitos vão me apontar seus dedos cheios de babas e enumerar as melhorias à vida que tudo isso gerou. Mas por acaso em algum ponto do texto, eu disse que não houve melhorias de vida? Hein? Não, em nenhum ponto até o momento eu disse isso… mas digo agora: NÃO HOUVE MELHORIA DE VIDA PORCARIA NENHUMA!!! Houve incremento para a subsistência, mas não à vida. Esta, em muitos casos, está se tornando insuportável para cada vez mais pessoas, que querem cada vez mais satisfação cada vez mais rápido e cada vez por mais tempo. Se não acontecer AGORA, não querem mais.


Supositório para Hitler
 


            Não por acaso, cresce o desinteresse de pessoas por automóveis e casas amplas. Não é só pela neurose ecochata que tomou o mundo. Ter um carro e uma boa casa, mesmo que esta seja de aluguel, implica em ter compromisso com o que se tem. Compromisso significa arcar também com os ônus, e isso pode ser altamente frustrante! Se nem com outras pessoas eles querem se comprometer, imagine com uma infraestrutura pessoal! Não, melhor encontrar todo mundo já na balada, mandar um motoboy trazer a comida, jogar os descartáveis no lixo, ser levado e trazido no banco do passageiro, enfim, há aplicativos para tudo, até para buscar novos aplicativos… de quebra ainda pode-se culpar o outro por qualquer coisa que dê errado… não se tem compromisso nenhum com ele mesmo…



            Assim como os soldados do Eixo, temos uma geração que menospreza o passado, pensa que sabe mais sobre a vida do que os que sobreviveram às épocas de poucos recursos, se vêem como bons e desprezam quem pensa minimamente diferente, sentem-se infinitamente poderosos sem serem capazes de suportar uma simples frustração, agem como se fossem o centro do mundo e… a lista não tem fim. Pessoas acostumadas a fazer besteiras e pagar para consertá-las, basta ver o sucesso de academias com modas e dietas idiotas, são incapazes de aceitar uma negativa e tomam como inimigo qualquer um que não atenda às suas expectativas. Às vezes esse ódio fácil se vira contra o próprio odiador. Antigamente os ricos mimavam seus filhos e eram criticados por isso, hoje os mais pobres também o fazem e não toleram sequer que alguém faça diferente com seu próprio filho. Sem compromisso com a vida de verdade, que é insuportável para quem vive em uma bolha de mimos e razões, muitas vezes se matam.



            Se aqueles nazifascistas aparecessem HOJE, teriam uma facilidade imensa em conseguir seus intentos em meio a essa geração floco-de-neve. Acontece que eles ESTÃO aqui, com outras roupagens, outros nomes, outras estratégias e a velha determinação em reduzir a humanidade a apenas um tipo de pessoa. Estão sendo tão bem-sucedidos, que o bordão nazista “miscigenação é o fim da raça” já é usado por quem vocês nem imaginam… sim, por negros. Não todos, é claro, a maioria ainda sabe que faz parte da humanidade, só os autodeclarados “intelectuais e defensores de causas”.



            Não somos fungos, condições ambientais de prosperidade e segurança estão longe de serem suficientes para uma pessoa viver. Os carros, como já citado, estão ficando tão “seguros”, que já tem idiota pensando em eliminar o volante, eliminando também a figura do motorista, o que deixaria as pessoas ainda mais indolentes e dependentes da tecnologia. Estamos formando uma geração totalmente dependente da certeza do que vai acontecer daqui a meia hora, e que não sabe o que fazer se essa previsão imediatista não se concretizar. Claro, é um caminho fácil para eliminar as mortes por acidentes… ou seria, se o universo desse a mínima para nossos planos. Acidentes com protótipos de carros realmente autônomos, não são mais novidades. Os carros estão hiperseguros, mas as mortes evitadas no trânsito estão se transferindo para a vida privada… de que adiantou o caminho mais fácil?



            Além do completo despreparo para a vida real, nessa dependência em relação às facilidades cada vez mais baratas e eficientes tem emergido um novo tipo de bullying, o da “felicidade”. Existe uma cobrança perversa que é tanto maior quanto mais acesso à comodidade a pessoas tiver, para que ela seja feliz e se expresse assim publicamente. Tudo até parece cheio de afeto e boas intenções, mas é uma cobrança para ser feliz e próspero o tempo todo e diante de todo mundo, sem direito a introspecção e descanso para as bochechas cansadas pelo sorriso prolongado. O pior é que tudo isso tem ficado muito barato, a ponto de até moradores de rua terem acesso a um pouco dessa droga lícita. Já existe o selfbullying, que faz da pessoa seu próprio algoz, se cobrando ser feliz e bem resolvido a qualquer custo, não raro repelindo quem se aproxima para ajudar.


Esquadrilha Abutre dos estúdios Hanna Barbera


            A vida não é fácil. A vida não é piedosa. A vida não é um aplicativo. A vida não tem obrigação nenhuma com você. Quem não for capaz de conviver com isso e ser (ou saber pedir ajuda para ser) feliz apesar disso, não tem preparo mínimo para sair da casa dos pais; e isso inclui trabalhar pelo próprio salário, não viver de mesada em outro endereço; pelo menos tentar viver realmente por conta própria, já seria um mérito e um aprendizado valioso. Na verdade, não teria preparo nem para sair do útero. Vivemos a era em que as pessoas compram seus próprios feitores e se deixam escravizar felizes por eles, nisso os tiranos de verdade se aproveitam.



            Ao que parece essa perda de referências é tão forte, que nem os descendentes directos daqueles bravos ingleses se lembram mais das lições do Swordfish.

Sobre suicídio em países "felizes", clicar aqui, aqui e aqui.

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