19/06/2019

O destino dos SUVs


O que vai ser? Pick-up, furgão ou o "carrão" da família?

    Imagine um Range Rover Evoque, o que lhe vem à mente? Um shopping? Boate? Um passeio em um condomínio fechado de alto padrão? Um jogador se exibindo com uma modelo que sequer conhece direito? Sim, talvez, hoje é mais ou menos isso que acontece mesmo. Mas imagine esse modelo com o interior depenado, do motorista para trás, pintura descascando, plásticos quebrados, usando motor e pneus de D20, carregando equipamento de construção civil e um servente suarento de carona; quiçá até mesmo uns sacos de cimento e alguns tijolos. Oh, já estou vendo pêlos eriçarem e olhos esbugalhando! Não me batam ainda.



    Por ter revolucionado, até certo ponto, o design automotivo, ele é o queridinho dos “suveiros”, mas por isso mesmo tem o ônus de envelhecer rápido. E o que envelhece rápido, cai em desgraça no conceito do mesmo público que o ascendeu. Fora que, reclamação recorrente, a manutenção de um Land Rover moderno paga fácil a compra de outro carro, e por isso é fácil uma seguradora dar perda total por qualquer dano mais sério. Às vezes basta a colisão ser forte o bastante para acionar o airbag, o que não é difícil.



    Mas vamos para um patamar mais mundano e classimediano. Imagine o antigo Tucson simplesmente cortado para servir de pick-up, com pneus de S10 e um Perkins no lugar do motor original. Imagine-o executando trabalhos pesados para os quais simplesmente não foi dimensionado (ou seja, para o qual não tem estrutura física) e com sensores apitando a toda hora pela falta de resposta dos equipamentos que foram retirados na transformação. Herdaria assim a sina que hoje castiga e sucateia Belinas e Caravans. Para elas ainda existe farta oferta de peças e boa mão de obra, já esses hatches abrutalhados de suspensão elevada e preços desproporcionais, costumam ser hóspedes prolongados em oficinas. Adivinha o que acontece quando envelhecem?



    O caso do Tucson é mais tênue, porque ele foi pensado como “SUV para as massas”, por isso sofre menos com desvalorização e não leva a pecha de resto de rico, ou de penso-que-sou-rico. Ninguém, ou quase ninguém, vai se sentir mal em sair da garagem e ver outro Tucson modelo antigo carregando sucata com a tampa traseira aberta, ou mesmo rodando sem ela. Ao menos não por enquanto e não com o modelo antigo. Por menos de trinta mil se compra um com dez anos de uso em boas condições, esse dificilmente viraria burro de carga, mas basta encontrar um dos mais antigos e em situação mais precária para enxergar um carro de frete. Enquanto funcionarem, os equipamentos serão usados, mas será pifar e a troca por outros genéricos vir, ou mesmo abrir-se mão deles. Então um carro que veio recheado de fábrica, torna-se um pé de boi com contagem repressiva para o ferro-velho.



    Feirante, serralheiro e pedreiro, no Brasil, não se importam com seus carros. Quase todos eles. Simplesmente usam até fundir e abandonam sem olhar para trás. Há exceções, claro, mas não pesam na estatística. Para aparecer um SUV com para-choques improvisados, sem praticamente nenhum plástico externo, com todos os componentes à mostra, rodando clandestinamente repleto de caixas, barracas, ferragens e afins, não vai muito mais tempo. Carro batido nunca foi bonito, mas carro moderno batido é horrível! E olha que me referi ao “Fusca” dos SUVs! Imagine um Mojave nessas condições! Maior e mais robusto, viraria carregador de tralhas sem cerimônia! Bateu forte atrás? Vira pick-up sem choro e nem vela! E assim rodaria até pifar de vez e virar carga de alto-forno.



    Agora a coisa preocupou um pouco mais, não só aos amantes de carros; aliás, esses não são afeitos à onda de SUVs, preferem as tradicionais e recatadas peruas. Mojave está pelo menos dois degraus sociais acima do velho Tucson, já incomoda quem compra esse tipo de carro pelo status ou para seguir a moda. Daí já é possível imaginar uma Freemont na mesma situação, de onde se pode imaginar um Compass (infinitamente mais competente) puxando um enorme reboque para a feira, e já estamos batendo às portas da classe média alta se pensarmos que faltaria pouco para imaginar um Audi série Q na mesma situação. Eu posso imaginar. E imagino com gosto.



    Não é só pela minha antipatia a essa “categoria” de veículos que escrevo este texto, nem só pela arrogância asquerosa com que pseudointelectuais da imprensa automotiva apontam o dedo pra o meu nariz dizendo “Você ainda vai ter um, queira ou não”. É pela observação de fatores que a empolgação cega deixa passar. O mercado está saturado de modelos e versões, de tal modo, que falar “SUV” não significa mais nada, qualquer veículo de dois volumes (compartimento do motor e carroceria bem distindos) com suspensão elevada e plásticos idiotas espalhados, é considerado um SUV; exceto os “cross” da vida, esses nem para isso servem. Uma olhada numa tabela de modelos e versões e vocês verão o quão rapidamente estamos saturando o mercado com SUV.



    Simplesmente estão banalizando e, para compensar, apelando para estratégias marketing mais agressivas e apelativas, tanto que às vezes descambam para a infantilidade. TODOS são intitulados “O SUV dos SUVs”. Todos são superiores aos outros. Todos sofrem pela absoluta carência de argumento de venda. Todos são mais caros, mais pesados, mais desajeitados e menos espaçosos do que seus equivalentes em carrocerias hatch e perua. Não são como Veraneio e Rural, que saem da estrada sem medo de perder plásticos pelo caminho e não são condenadas à sucata por uma colisão grave. SUV só serve para desfilar em lugares caros e atrapalhar a visibilidade dos pedestres.



    Quando a Audi cometeu a estupidez de lançar “SUV coupé”, eu achei ridículo. Piorou quando foi um sucesso de vendas, se agravando quando as outras marcas começaram a copiar o (falta de) conceito e também obtiveram êxito de vendas. Falar de coupé quatro portas já me faz perder a fé na humanidade, colocar pneus aro 20” e suspensão alta, com penduricalhos de plástico em baixo inutilizando essa altura livre, me faz ligar para a central de atendimento do apocalipse e perguntar onde está o maldito meteoro.



    Por que? Porque isso demonstra que as pessoas não querem SUV porcaria nenhuma! Estão simplesmente agindo como gado! O formato tradicional que caracterizaria um utilitário esportivo não é mais levado em conta, é como decair o teto de um furgão até a altura das lanternas e ainda assim o venderem como furgão! A Maybach apresentou recentemente um “conceito” de “SUV sedã”, que nada mais é do que um carro comum compacto ampliado em cerca de 50% em todas as suas medidas, resultando em um desenho tosco, sem proporções e indigno da marca. O Gordini foi mais bem desenhado, e era mais honesto.



    As pessoas querem carros espaçosos e imponentes, mas mal conseguem o primeiro e nem de longe o segundo. Conseguem aparente imponência com a suspensão elevada, mas mesmo assim os adereços desenhados para atenuar a péssima aerodinâmica fazem a frente raspar em qualquer guia de calçada. Uma Fiat Weekend NORMAL é muito mais baixa e sofre bem menos com isso, tem muito mais espaço do que um SUV com o mesmo comprimento e, enfim, seria um texto só para enumerar as vantagens das boas e velhas peruas. Nem vou falar da saudosa Caprice Wagon com sua capacidade de levar até nove pessoas e ainda ter espaço para malas.



    O que o comportamento tem me revelado é que as pessoas querem carrões. Carrocerias vastas com espaço interno de sobra e capacidade para passar por irregularidades do asfalto sem transformar o carro em um liquidificador. Acontece que ficou socialmente menos aceitável ter um carro assim, pois consome mais combustível e ocupa vagas maiores no estacionamento, mentalidade que deu aos picaretas imobiliários licença informal para construir aquelas vagas IMPRATICÁVEIS em edifícios residenciais. Mas essa restrição social não se aplica a veículos de trabalho, mesmo que tenham conforto para passageiros. Um sedã ocupar dez metros quadrados é um escândalo, mas um utilitário ocupar o mesmo espaço e ainda obstruir a visão de uma criança que esteja para atravessar a rua, é perfeitamente aceitável. Se for um “utilitário esportivo”, então até parar em local proibido é perdoável.



    As pessoas não estão mais agindo pela emoção, como quando se escolhia um caro de desenho rebuscado, estão agindo simplesmente pelo efeito manada, e dentro desse efeito escolhem o que a manada permite escolher. Só que uma manada muda de direção ao menor sinal de perigo ou escassez, e o risco de perder status é neste caso ambos. Nem todos os SUVs vão directo do leilão da seguradora para a sucata, já tem gente querendo o gosto de dirigir um desses mesmo que por pouco tempo, daí para pipocarem os utilitários de rico em casa de pobre, então as pessoas verão a quantidade de Cherokee mal conservadas que rodam por aí, ainda invisíveis pelo deslumbramento coletivo; quando isso acontecer, a queda será cara e dolorosa, porque a indústria automobilística está quase totalmente comprometida com a fabricação de SUVs.



    Claro que muita gente vai comprar carros relativamente bons a preços baixos, mas quase ninguém vai querer restos de ricos. A classe média, que poderia absorver esses restos, é ávida demais por status para se permitir ser apontada nas ruas, então há dois caminhos plausíveis: sucata e casa de pobre na periferia, para virar pau pra toda obra em estradas ruins e enfrentando escassez de manutenção. Enquanto houver sucata suficiente e a preços acessíveis, eles rodam como carro da família, ou do mano. Quando as peças de sucata escassearem, vai tudo virar mula de carga.



    Decerto que os colecionadores terão farta oferta de um registro triste da história de nossa indústria e da decadência de nossa cultura, mas fora eles, quase ninguém vai querer esses carros, assim como ninguém queria os Dodge V8, Maverick e Landau nos anos 1980; com o agravante de que SUVs não têm carisma e nem estilo que sobram naqueles carrões. Também não têm memória afetiva como eles. SUV é, na maioria absoluta dos casos, carro para exibicionismo puro e simples. Um sedã full size, por outro lado, traz toda a tradição e memória de épocas em que a vida era muito mais simples, em que havia optimismo, que as moças podiam manobrar sem precisar de auxílio hidráulico, ao redor do qual a família se reunia para lavar e depois ir passear, com um porta-malas cavernoso à disposição… se fosse um conversível familiar então… enfim… Não é algo que se conversa no programa de televisão e some da memória quando se muda de canal, é uma experiência de vida que se guarda no subconsciente e é fácil de ser compartilhada e, assim, vivida virtualmente por quem ouve a história. Já as “aventuras” vazias da balada…



    Um executivo da Ford perguntou a um jornalista especializado, quando foi a última vez em que ele suspirou por um sedã da marca, então me veio a pergunta “Qual foi a última vez em que desenharam carros para gente comum com a mesma paixão de outrora e mesmo empenho com que desenham um SUV”? Já viram a dificuldade para se entrar e sair pelas portas traseiras desses sedãs modernos, por causa do desenho do teto e da soleira alta? Os japoneses se cansaram de dar sinais, cada vez mais escancarados, de que estavam fazendo corpo mole e perdendo a mão. Ouviram? Não, não ouviram. A culpa de tudo isso é deles mesmos. E a fatura do fim da famigerada era dos SUVs também será. E veremos Evoque baratinho no Mercado Livre, esperando meses para trocar de mãos, para então ser transformado em caminhoneta de serralheiro.

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