26/01/2018

Da Lapônia tão distante, vêm os Sami

 

    Quem já pensou em "Círculo Polar Ártico", provavelmente trocou as bolas. A maioria logo pensa nos Inuits, que não gostam muito de serem chamados de "esquimós", vivendo em iglus, caçando focas e pescando em buracos no gelo. Isso quando não pensa em pinguins, que são aves antárticas. Não é de se recriminar, o que acontece naquela região fica quase sempre restrito aos países que ela une, quando algo vem ao resto do mundo é quase sempre alguma matéria rasa e sem noção sobre Papai Noel, com "Oh, eles matam renas para comer", como se nós não fizéssemos o mesmo com bois; os indianos também comeriam renas, se pudessem.

    Bem, os Inuits até estão nesse rolo, mas são apenas a parte mais conhecida e estereotipada da que tem sua maior parte na Finlândia, assim como a Amazônia, que abrange vários países, está quase toda no Brasil Como? Sim, é onde vive Papai Noel! Agora já sabe para onde mandar sua cartinha, mas isso é outra conversa, então boa sorte e voltemos ao tema.

    Graças ao Alasca, comprado dos russos por uma fortuna bem antes de o petróleo ter peso econômico, os Estados Unidos têm uma pequena área dentro do Círculo Polar Ártico, que abrange o norte também do Canadá, Islândia, Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. Na Europa, é a região convencionalmente chamada de Lapônia. A região é chamada de Sápmi pelos nórdicos, e seus habitantes, que chamamos de lapões, são os Sami, que chegaram lá há mais de quatro mil anos, ou seja, antes de os países escandinavos existirem formalmente. Já havia lá gente há pelo menos oito mil anos, mas as coisas mudavam muito devagar naquela época. Não é um lugar para qualquer um viver, só mesmo os sami (ou saami, ou same) se sentem à vontade em um lugar onde gelo à temperatura ambiente, ao ar livre, não causa espanto. Daí vocês podem deduzir que eles não matam renas por sadismo, elas são o centro de toda a sua cultura, por séculos eles dependeram quase que exclusivamente delas para sobreviver. Isso é por necessidade, não por maldade. Com quatro milênios nessas condições, pedir que troquem repentinamente o bife de rena por uma salada macrobiótica, francamente, é idiotice!

    Apesar de todos falarem o idioma sami (mas fluentes em sueco, norueguês, finlandês, russo, alemão e francês, até vão bem no inglês) e terem peles apropriadas a uma região que passa metade do ano no escuro, as caraterísticas físicas deles são muito, mas muito diversificadas. Desde indivíduos de aparência embrutecida até adultos que parecem bebês, o leque é quase infinito. Lembremos que havia habitantes na Lapônia quatro mil anos antes de os sami chegarem, o longo isolamento preservou características primitivas, como queixo forte, nariz largo, lábios fartos e cenho proeminente. Diga-se de passagem, são características comuns a muitos grupos de negros africanos, o que ajudou pesquisadores a descobrirem as origens da espécie humana.

    O gosto por padrões em cores fortes também é algo em comum entre os samis e as tribos africanas, mas a própria separação geográfica milenar encerra por aqui as semelhanças. Para começar, viver com pouco, quase nenhum sol a maior parte do ano, com uma pele muito pigmentada, é um problema sério. Pele negra é espessa e forte, quase não entra luz nela, com isso a produção de vitamina D fica prejudicada, imaginem isso em lugares mais centrais, longe de qualquer fonte de pesca. E pele negra com a neve de fundo, mesmo usando peles com pelagem clara, fica muito evidente, perigoso em uma época em que a camuflagem natural era uma das poucas defesas de um primata desengonçado: nós. Uma pele muito clara, se é bem mais frágil, aproveita melhor a pouca luz disponível, e a facilidade com que cora permite ver com rapidez e precisão qualquer problema causado pelo frio, a transição do rosado para o arroxeado fica muito evidente. Não que não haja gente mais corada entre os sami, há, o que só enriquece muito a genética deles, mas é regra encontrar gente com praticamente nenhuma melanina e cabelos praticamente transparentes. Esses cabelos acabam agindo como um isolamento, deixando a luz passar, mas separando o couro cabeludo do ar frio.

    Decerto que com o tempo, e a organização social mais sofisticada, se esconder de predadores não era mais tão necessário, mas identificar alguém do grupo de longe, era, especialmente crianças. Com tanto tempo de isolamento, eles desenvolveram sua própria cultura, e o gosto por cores fortes migrou para a indumentária, que tem em matizes intensas de cores primárias e secundárias quase uma identidade nacional. Talvez tenham deles os russos herdado a arquitetura básica de seus trajes típicos, há muitas semelhanças. A necessidade de se destacarem da neve, em prol de sua própria sobrevivência, os faz harmonizar cores fortes até com o bege do couro cru. Com variações étnicas e de vestuário típico de país para país, um sami reconhece outro e todos são reconhecidos pelos escandinavos.


    A índole sami é boa e agradável, eles são muito acolhedores e gostam de tratar bem as visitas, mas não é chegar como tu chegas à asa da tua avó e ir abrindo a geladeira (que no caso pode ser qualquer porta de saída) auto lá! Eles são pastores, faz pouco tempo que "sami" e "pobreza" eram quase sinônimos, em países que só começaram a desenvolver seus interiores depois da segunda guerra. Faz bem pouco tempo que o preconceito contra os índios da Escandinávia começou a baixar. Sim, "índios", pois eram a população original do extremo norte da Europa, é assim que até hoje são vistos. E sabe o que mais? Isso não os incomoda, desde que tratados com respeito. Por tudo isso, apesar de se alegrarem com praticamente qualquer coisa, eles são bem reservados, ainda hoje havendo quem viva do pastoreio de renas, tanto mais quanto mais ao norte, onde plantar uma horta é quase impossível; o Alasca sabe o que é pagar peso de ouro por uma folha de alface!

    Por essa lida tão antiga com as renas, os pastores se tornaram habilidosos no pastoreio, preparando o laço e indo ao seu alvo com a desenvoltura que só vemos em espetáculos de cowboys americanos, tudo com uma naturalidade espantosa, para quem não é sami. Embora a tração animal ainda seja MUITO importante, snowmobils modernos são comuns, e os esquis são para eles quase como as
bicicletas para nós, só que sem o risco de soltar a corrente. Eles até acham engraçado quando alguém de fora ATÉ HOJE chega e se espanta ao verem-nos morando em confortáveis casas de madeira, com todas as conveniências modernas. Até hoje, mesmo na Europa, há quem pense que eles vivem naquelas mesmas tendas de couro com armação de madeira, no estilo dos índios americanos, que também há muito não vivem assim. Um sami está mais bem adaptado ao modo de vida moderno até do que a gente do sul, o que para eles é praticamente todo mundo. E usufrui dessa modernidade sem medo, sem as culpas e neuroses que tomaram conta do ocidente.


    Meu amigo, estamos no século XXI! Ninguém foi para a parte mais inóspita do continente em buscca de refúgio espiritual, aquela gente migrou para onde era mais fácil sobreviver na época. Toda a cultura que eles formaram, foi forjada pelo ambiente! Eles preservam essa cultura com muito prazer, mas não faz sentido correr o risco de morrer de hipotermia só para atender às expectativas de puristas. Virtualmente tudo está preservado, inclusive a "Aceitação" que equivale mais ou menos ao debute. A vida dura de trabalho árduo faz parte dessa cultura, faz parte da identidade sami. A simplicidade quase previsível dos campos gelados, facilita meditar e desestressar, porque eles sabem que as coisas não virão antes do tempo porque querem que venham, então nem adianta fazer beicinho, não é para baladeiros. Claro que com isso, a civilidade também é potencializada, porque eles sabem que vão cedo ou tarde, depender da ajuda dos amigos.

    Quando eu digo "gente civilizada" não me refiro à finesse sofisticada e repleta de códigos da aristocracia inglesa. Eles não são grossos, mas se reconhecem como indígenas, que no caso é quase o mesmo que "caipira". Sua boa educação é adaptada à rusticidade da vida que ainda é comum entre eles. A civilidade é voltada mais ao respeito pelo próximo e pelo que é do próximo; inclusive o espaço do próximo, entenderam, manés de som automotivo? São fortes, dado o estilo de vida que levam, mas não se privam de apreciar as delicadezas que sua própria cultura ajudou a valorizar. Se tu irritares um deles, saberá o que é um casca-grossa no pior estilo viking. Se caíres em suas graças, meu amigo, pode deixar e-mail, perfis de redes sociais, endereço e até número de telephone; vão te cobrar mais visitas.


    No início do século, eles começaram a se organizar e exigir tratamento digno de seus países. Nada de pedir favores a políticos e órgãos estatais, eles foram mostrar que existem e eram tratados como se não existissem, que os escandinavos estavam enriquecendo rápido, mas o fluxo de recursos públicos não chegava como deveria até eles. Daquela forma ordeira e contundente dos nórdicos, eles se fizeram ouvir e respeitar. Em países acostumados a respeitar seu povo, isso foi relativamente fácil. A cultura, que era a identidade sami, torna-se hoje também um negócio. Os europeus, especialmente nórdicos, vão ver e até viver um pouco de suas origens. Ainda há tendas tradicionais, ainda há gente vivendo como há milênios, mas não com a precariedade de outrora.


    Agora, quanto ao que eu disse sobre a aparência deles... Quando eu falei de adultos parecendo bebês, eu não estava brincando! É ver um rosto arredondado e suave, com boca pequena e olhos vivos, mas com corpos esculturalmente formados abaixo do pescoço. Não é modo de falar, é literalmente assim! É comum entre os escandinavos, às vezes gera constrangimento com quem sai do continente americano, mas naquela latitude, é muito comum! Por isso recomendo cautela aos turistas, porque a unidade familiar ainda é muito valorizada naquela latitude, mesmo com toda a liberdade de que novas gerações usufruem. Justamente essas novas gerações são as que mais tem literalmente vestido suas tradições, especialmente vendo o europeu médio pisar em ovos para assumir a própria.


    Não são uma sociedade fechada, tampouco arreganhara para qualquer um, a hospitalidade que citei reforça isso, mas aprender o idioma sami ajuda muito a lidar com eles. Não, não é obrigatório, mas é um sinal de boa vontade que eles sabem retribuir. Respeitando a cultura deles, ao contrário do que acontece na maior parte do oriente, eles respeitarão e se interessarão pela sua. Afinal eles são a raiz de praticamente toda a Europa, mesmo assim se valem de toda a tralha cibernética moderna como qualquer pessoa comum, especialmente os jovens, como eu já disse, para divulgar e perpetuar sua cultura ocidental bem diante dos detratores idólatras de utopias.


    Eles não fazem discursos prolixos e retóricos, quando dão bom dia, simplesmente se assumem sami com tudo a que tem direito, naturalmente. São pessoas simples, pragmáticas pela necessidade histórica, que não vão perder tempo com o que e quem não lhes interessa. Ninguém verá em seus perfis no facebook "Bom dia, eu sou sami! Eu que sou sami, estou aqui para dizer que sou sami, como vão vocês, sami e não sami?" eles sabem quem são e vivem o que são, não precisam que lhes seja ensinado por quem não vive entre eles.

    Enfrentam alguns problemas comuns com o resto do ocidente, como a baixa da natalidade, o que só fez aumentar o arraigamento cultural. Eles querem que a posteridade usufrua de sua cultura, mas para isso precisam de uma posteridade, e estão lutando bravamente para a terem. Porque se dependerem de gente de fora, mesmo dos "bem intencionados" o sami some.

Um artigo interessante de quem viveu algum tempo com eles, clique aqui.

Sobre os sami, ver aqui e aqui.

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