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Praia do Arpoador 1966-67 |
Sempre
foi um garoto normal, dentro do que se pode considerar normal em um
adolescente, é claro. Fazia homenagens solitárias no banheiro, nem
sempre se lembrando de limpar a bagunça, sempre dando aos “amigos”
as satisfações de suas aventuras sexuais imaginárias. Os pais
tinham vontade de torcer-lhe o pescoço pelo menos uma vez ao dia,
como normalmente acontece nesta fase crítica da vida humana.
Implicava
com as amigas da irmã, embora xavecando quando ela não estava por
perto, implicava com seus namoricos, com as primas, com qualquer
coisa que respirasse, enfim. Era um adolescente, caramba!
Certa
feita, pelas ondas magnéticas da internet, encontrou um site de um
colégio antigo e conceituado; até porque os de hoje só se
interessam pelo vestibular, fazem os alunos memorizarem horrores que
esquecerão assim que saírem da sala de provas. Lhe chamou a atenção
a página de álbuns. Começou a ver só para poder implicar. Um
narigudo que sustentaria o tráfico sozinho se começasse a cheirar,
um balofo que faria sucesso no cinema como dublê de baleia, uma
garota que rendeu uma homenagem solitária, outra que só se casaria
com um cego, et cétera.
Começou
a ver photos mais antigas e começou a implicar com elas também.
Usando prints, já que o site não permitia salvar suas imagens,
começou a postar algumas no facebook, com comentários maldosos
sobre a moda de eras passadas. Os anos setenta e oitenta arrancaram
risadas e piadas até perversas de seus contatos, em especial o
comprimento de saias e shorts. Nenhum deles imaginou que poderia
estar xingando seus próprios pais, em especial suas mães, a quem
exigiam respeito sacrossanto e reverência antes de serem citadas por
terceiros.
Retroagindo,
começou a ver com alguma simpatia os anos sessenta, ainda que as
saias fossem ainda mais curtas. Mais homenagens solitárias, mas
tendo o cuidado de não deixar meleca espalhada no banheiro. O acervo
do colégio era bem vasto, ele se divertiu muito vasculhando tudo, e
salvando com um print screen o que lhe interessava. Em dado momento,
chegando à segunda metade dos anos cinqüenta, começou a se
encantar com uma aluna da época, de volumosos cabelos curtos.
Sorrisinho singelo cerrando os olhos, franja bem penteada, cinturinha
marcada e jeitinho maroto. Na época, deveria ser um pouco mais velha
do que ele hoje. Vê os nomes no rodapé da photographia, identifica
o dela e passa a buscar por mais. O registro mais antigo dela é de
1948, ainda menina.
Ele
comete o erro de se apaixonar perdidamente por alguém que pode já
estar morta. Já está meio tarde e amanhã precisa acordar cedo para
ir ao colégio, mas salva o site nos seus favoritos, para continuar
amanhã, assim que voltar das aulas. Sonha com ela durante a noite
inteira, acordando a casa no meio da madrugada com os pulos na cama.
Sua irmã grita de nojo ao ver o cobertor melecado. Chama-o de
moleque pervertido e o proíbe de chegar perto de suas amigas, diz
que vai avisar aos irmãos delas e tudo mais. A mãe dele é mais
amena, embora lhe dê uma reprimenda por ter interrompido o sono de
gente que dá duro o dia todo. O pai fica calado, na adolescência
apanhou da mãe pelo mesmo motivo. Ele terá que lavar a roupa de
cama, para aprender.
Nos
dias seguintes ele toma mais cuidado, alivia as tensões no banho
imediatamente anterior ao sono. Frio, sempre que o clima permite. Com
as tensões desfeitas, os sonhos são menos eróticos, mas o
travesseiro continua amanhecendo ensopado de baba, de tanto que troca
beijos de língua com sua namorada onírica.
O
caso não prejudica sua vida social nem a escolar, menos mal. Ele não
quer ser punido com o cancelamento de sua internet, sem a qual
ficaria sem poder conhecer melhor sua paixão virtual, talvez até
póstuma, ele está se preparando psicologicamente para isso. Quase
um ano depois do “amor à primeira vista”, ele consegue quebrar o
sistema de segurança e ter acesso livre a todas as dependências do
site. Entra em arquivos reservados, encontrando photographias de
acesso restrito, quando encontra sua paixão em trajes de banho. Fica
maluco ao vê-la de biquini, mesmo os da época serem enormes para os
padrões vigentes. Salva tudo, não deixa um bit sem ser vasculhado.
Fica louco de tesão mesmo ao vê-la em trajes de baliza, de quando
liderava os desfiles do colégio com aquela minissaia curtíssima.
Começa a achar que se houvesse nternet nos anos sessenta, gostaria
de ter vivido neles.
Um
dia a irmã o flagra beijando avidamente o monitor. Ela imagina que
se aquilo fosse uma garota, seria uma endoscopia de língua, não um
beijo. Quando ele sai, ela entra rapidamente e vê o histórico,
encontra centenas de buscas pelos anos de 1940 aos 1960. Começa a
ver alguma ternura nisso, a ter um tênue e frágil fio de esperança
no irmão. Acha tudo aquilo muito fofo para ser coisa de um fedelho
pervertido. Fica de butuca ligada, saindo imediatamente quando o vê
pela janela, chegando do banco. Vai à mãe, contar a coisa mais fofa
que já viu. A mulher estranha, pede para ver assim que ele for para
o colégio, na segunda-feira. Pois na segunda-feira lá estão as
duas...
- Gente!!!
- Não é fofo, mãe?
- É o colégio da sua avó! Mamãe estudou aí, quando tinha a sua idade!
Vasculham
os arquivos, já com o sistema de segurança domado pelo garoto.
Photos do pátio, da sala de aula, dos desfiles, dos carnavais, do
clube, da praia e até algumas particulares, cedidas ao colégio. A
garota reconhece que as moças cheinhas de então, eram muito
atraentes, apesar de hoje se apregoar o contrário, conclusão que
aos poucos desfaz os sorrisos das duas...
- Não, não pode ser isso!
- Será que ele tá esquisito assim por causa dessas garotas??
- Pior! Será que ele está esquisito assim por causa da minha mãe??
- Fodeu... A gente conta pra ele?
- … Primeiro pro seu pai... Depois pra mamãe, pra prevenir... Bem, sou eu...
O
homem cai na cadeira da secretária. Pragueja, diz que vai torcer o
pescoço do moleque, mas depois se acalma. Embora sem tanta
gravidade, ele já foi apaixonado por Greta Garbo, a ponto de não
cogitar ter outra mulher, até conhecer a sua. Nisso reflete e
releva, ele é só um garoto, um adolescente boboca como qualquer
outro, afinal ser boboca é quase um sinônimo da adolescência.
Apressa as remessas, antecipa algumas entregas e dirige seu Atron
1635 verde e preto para casa. Pára o caminhão do lado de fora mesmo
e vai ver. Odeia, simplesmente odeia figadalmente reconhecer, mas sua
sogra já foi um tremendo avião. Quem o conhece sabe o quanto lhe
sai caro ter que admitir isso, especialmente diante do sorriso de
triunfo da esposa. Mas decide que o moleque vai ter que saber e já
deixa uma consulta psiquiátrica agendada. Toca o telephone e quem é?
Sim,. A sogra. A mesma de quem ele disse maravilhas há alguns
minutos, fazendo-o pensar “Vou esfolar esse moleque!”. Ele não
sabe o que a dita cuja está falando à filha, mas ela não fez
questão de moderar a voz ao reproduzir seus elogios; quase pode ver
o sorriso de triunfo da jarraca, que decide passar algum tempo com
eles, até para ver se pode ajudar com o neto.
No
sábado, trazendo photographias de sua juventude, ela está lá. O
homem começa a se odiar, porque já não consegue mais ver a broaca
horrorosa e disforme que conseguia ver nela, simplesmente porque ela
é uma idosa bonita e charmosa, tem que admitir mesmo com o estômago
doendo. O garoto faz festa na volta do colégio, vendo a avó, mas
dura pouco...
- Você sabe quem é essa moça?
- Conhece ela, vó? Ela tá viva?
- Olha pra ela e depois pra mim.
Ele
o faz. O faz dezenas de vezes, com todas as photographias, se
enchendo aos poucos de desespero. Dá um berro e sai correndo
descontrolado. O Mercedes-Benz do pai lhe tira a visão e é colhido
por um Scania R620, felizmente em baixa velocidade, mas duas dezenas
de toneladas não precisam de muita velocidade para fazer muito
estrago. Ele é jogado dez metros para frente e rola até bater em um
Fusca verde 1967.
Acorda
quase um mês depois, vendo a avó ao seu lado. Não houve danos
irreversíveis, mas a quebra dos ossos da face obrigaram a várias
cirurgias delicadas de reconstrução, que o deixaram um bocado
diferente, a ponto de os colegas talvez não reconhecerem suas novas
feições. Antes de chamar a filha, ela segura a mão do rapazote,
que chora feito um bebê. Como todo adolescente foi radical, tinha
depositado todos os seus sonhos em uma época que já não existia.
Chorando pede desculpas à avó, que o cala e se limita a abraçá-lo,
até o choro cessar, então liga para a filha.
Volta
para casa no mesmo dia, mas não a mesma pessoa. A psicoterapia o
ajuda a digerir a quase tragédia que aconteceu, o faz perceber que a
responsabilidade foi da visão pubiana que ele tem das relações
pessoais, que o impediram de ver as coisas como elas realmente são.
Os colegas realmente não o reconheceram, mas não foi só pelo novo
rosto, ele já não era o mesmo. Via agora as pessoas, especialmente
as mulheres, com um respeito cavalheiresco, mesmo que aos olhos do
senso comum elas não se dessem a esse respeito. Bem, o respeito era
dele, ele o dava a quem quisesse. No final das contas, e de um ano
inteiro trabalhando o trauma, ele saiu uma pessoa muito melhor do que
a que foi atropelada. Virou vintagista, aceitou uma vaga de ajudante
de motorista, trabalhando no mesmo caminhão que o pai, já ciente do
quanto desperdiçava sua vida nas esbórnias “secretas” com
colegas, que todo mundo sabia onde e quando aconteciam. Não gostou
de ter sido atropelado e quase feito em pedaços por aquele mostro
mecânico, até porque poderia ter morrido, porque aquele moleque
insuportável morreu. E já foi tarde.
Ainda
acha que se houvesse internet nos anos sessenta, adoraria ter vivido
neles.