21/03/2009

Mesmo lugar, outro lugar

A cidadela oprimia, sufocava todos os seus sonhos, seus devaneios e seus desejos.
Queria ser livre, não dar satisfações, não ter hora para voltar, simplesmente pegar uma mochila e sair pelo mundo.

Era, porém, muito jovem. Tinha rédeas a segurá-la no lugar, para que não saísse da linha, para que fosse moça de família e respeitasse a sociedade.

Sem escolha, ninguém aprende. Não teve oportunidade para servir de pronta vontade, sempre obrigavam previamente, faziam compromissos à sua revelia e a beliscavam por trás, para forçar um sorriso à photographia.

Mas o que é a força sem o respeito? Ela acaba e só fica este. Respeito é via de mão dupla, mas o retorno foi bloqueado e a maioridade se recusou a permanecer.

Deixou o quarto como estava, não se sentou à mesa para o desjejum, não voltou para a festinha de aniversário, não deu satisfações nem a si mesma. Se escondeu na carroceria do primeiro caminhão que viu, no meio da carga de bananas, sem saber para onde iria, só com a identidade e a roupa do corpo.

Dois meses e meio pouco tendo o que comer, dormindo onde se arranjava, pegando roupas descartadas e estudando as pessoas. Estava no buraco, mas estava sobre suas pernas, de livre arbítrio e ciente das conseqüências que já sofria. Sofria por suas escolhas, não pela imposição alheia. Esta certeza lhe consolava o coração.

Juntou alguns trocados ganhos em biscates e comprou um vestido usado, lavou e cortou os cabelos, passou um batom e foi fazer panfletagem. Já conseguia comer todos os dias o suficiente para se manter saudável. Abandonou a carcaça de ônibus em que morou para viver nos fundos de uma residência.

Viajou de novo, desta vez com destino, para outra morada e outro emprego. Fazia já um ano que tinha saído de casa. Casa? Sua casa era o mundo, sua família era ela mesma e sua liberdade o único bem que prezava.

Conseguiu estudar, se formar e se firmar. Compromisso somente com aquilo em que acreditava, não com pessoas ou seus dogmas. Às vezes a voz humana a irritava profundamente, a ponto de decidir se aventurar de novo.

Atravessou o Atlântico, saracoteou pela França e se estabeleceu em Dinnan, onde aprendeu bretão e lecionou português. Os empresários pagavam caro pelo curso, mas se saíam melhor nos negócios. Ela sabia o valor de seus préstimos e não fazia abatimentos.

Se mudou para Dublin, aprendeu gaélico, se encheu de cultura e estudou as tradições celtas. Por lá ficou seis anos. Seis anos de inesperada calmaria em sua sanha aventureira, estabelecendo laços inesperados, romances inesperados e uma serenidade inesperada. Já não estava totalmente no comando, mas não reclamava. Estava em seu pleno arbítrio.

Mesmo todos os cuidados podem não funcionar o tempo todo. Veio uma gestação e a muralha de granito se transformou em manteiga. Já aceitava mimos, cuidados, recomendações e todo o amparo que os irlandeses disponibilizavam.

Mas a paz acabou. Um passo em falso e rolou trinta degraus escada abaixo. Sofreu um aborto e ficou dois meses internada. Um para curar o corpo, um para tratar da pessoa.

Foi Para San Francisco, cheia de bagagem, mas nada de material. O que o dinheiro comprou, deixou para os amigos em Dulin. Dois anos passaram, recebeu uma proposta e foi para Nova Iorque, organizar shows na Broadway. Cinco anos com pouca, às vezes nenhuma vida pessoal, até virar de vez a página da perda.

Casou-se com um motorista de limousine. A distância econômica que os separava era enorme, mas não há cousa que uma boa esposa não consiga de e para um bom marido. Foi sua vela e seu leme, o fez prosperar e calou as bocas levianas que o chamavam de gigolô. Dois filhos.

Passou a ajudar a família, sempre foi desapegada e generosa. Chegou a trazer os pais para que conhecessem os netos. Mas não aceitava os convites para voltar à cidadela onde nasceu, ainda não era hora.

O que aprendemos vem de Deus, o que sofremos vem do homem, às vezes das próprias mãos. Perdeu filhos e marido para atiradores ensandecidos, dentro da escola.

Um ano às custas de anti depressivos, a tragédia calou os que criticavam a violência no Brasil, mas não se consolava por isso. Foram mais cinco anos sem vida pessoal. Mais um até conseguir virar a página.

Voltou para o Brasil, se estabeleceu em Curitiba. Abriu um restaurante irlandês, com o funcionalismo à caráter e arranhando bem no gaélico. Não fez propaganda convencional. Chamou gente conhecida que passava pela cidade para a inauguração, mandou e-mails para quem realmente interessava e a casa ganhou fama pelos próprios fregueses. Não tolerava certas músicas lá dentro, queria alegria, ainda que serena, mas muita alegria. Queria que os comensais saíssem mais felizes do que entrassem. Trazia artistas de boa estirpe quase desconhecidos na região, contribuindo para a divulgação da cultura com conteúdo e espalhando a boa fama da casa. Literalmente casa, morava no sótão do restaurante.

Abriu uma filial em São Paulo, três anos depois de inaugurar a matriz. Foi preciso muito choro para a convencerem a abrir um no Rio. Mas longe da algazarra do centro, abriu em um bairro de classe média tranqüilo e com o seu público alvo por perto. Tudo sob a sua rigorosa supervisão.

Depois dos quarenta anos, voltou à cidade natal. A garota maluca e semi-nua que se destrambelhou pela estrada, voltou uma mulher madura e depurada, até mais bela. Já não tinha mais os pais, reformou e se instalou na casa onde nasceu. Os poucos amigos que disseram "Vá atrás da tua vida" encheram a sala de lágrimas, alguns temiam nunca mais vê-la. E realmente nunca mais verão. Não é a mesma pessoa, assim como aquela não é a cidade que a oprimia. Ambas mudaram muito.

Para os que calçaram luvas de pelica para tocar no assunto, ela avisa que está aberta à constituição de uma família. O que passou está no passado e não vai assombrá-la. Leva a todos para a varanda, às poltronas de vime, para falar e ouvir, repassar suas experiências cosmopolitanas e receber as dos amigos. Estes, no fim das contas, sempre foram sua única família.

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