06/01/2007

Maçã Feinha

Hoje busquei uma camisa nova. Encomendei ao Zé, meu alfaiate, em Dezembro, mas pelo sufoco só ficou pronta agora. O bom de uma roupa sob medida é que lhe serve como se tivesse nascido no teu corpo, não falta nem sobra. R$ 45,00 por uma peça tão bem feita até que não é caro, convenhamos.
Depois fui ao supermercado, onde aproveitei para comprar maçãs. Interessante que não eram maçãs vistosas, brilhantes e uniformes, tampouco eram grandalhonas ou dignas de um comercial. Eram maçãs pequenas, discretas, com coloração e formato mais irregulares, algumas até feinhas. Mas não me importa. São suculentas e as como diariamente. O que me chamou a atenção porém, é que havia um inseto passeando sobre uma delas. Um inseto ordinário, desses que esmagamos todos os dias sem querer, confundindo com a sujeira do chão. Não era uma barata, ou eu teria chamado a Vigilância Sanitária. Era um insetinho apenas, sensível às mudanças climáticas e aos agentes químicos. Aí é que está a boa notícia: O uso de agrotóxicos foi bem mais moderado, ou aquela criaturinha minúscula não estaria lá, as maçãs teriam crescido mais e mais belas, a productividade teria sido muito maior e o preço no caixa seria menor. O que acabou conservando aquelas maçãs foi o resfriamento, a mão de obra deve ter sido ágil, ágil a ponto de não escolher muito as estéticas. Mas fico feliz assim mesmo. Comprei pouco mais de um quilograma e meio, que agora sei que não vai me custar mais do que paguei no caixa.
Como um mão-de... Digo, como um rapaz econômico que se preze, eu não rejeito uma boa promoção, se estiver precisando do artigo, se não estiver, troco a economia de 75% na boca do caixa pela de 100% por nem entrar na loja. Mas há "ecanomias" que não valem a pena. É como a China, que está fomentando a degradação humana e ambiental apenas para suprir suas necessidades imediatas, como um adolescente irresponsável que logo ficará sem nada, mas não sem antes causar estragos também para os outros. Preferível gastar alguns reais a mais, algumas horas a mais, do que conseguir uma dívida que não se pode pagar, como um câncer de intestino ou uma alergia generalizada, que te impedirá de comer quase tudo e tomar quase todos os medicamentos que poderiam ajudar. Nesse caso não é gasto, é investimento que, ao contrário da especulação, tem retorno farto e cem por cento garantido.
Também por isso preferi mandar fazer a camisa, eu sei como ela é feita, pelo menos a parte de corte e costura eu tenho certeza de que não degrada nem explora, pois todos os alfaiates de lá ganham o justo pelo seu trabalho, e no fim do ano fizeram a festa. Tanto que já separei o tecido para as próximas calças, quando for encomendá-las será só cortar e costurar. É meu tecido, está guardado. Coisas que só um alfaiate faz por nós, impensável em uma confecção que subemprega migrantes e imigrantes e falsifica a marca.
Decerto que com isso eu fico fora da moda predominante, mas depois que nos acostumamos a ter o que realmente merecemos, não abrimos mão ainda que seja mais oneroso, percebemos que a economia que fazemos é muito maior. Ainda que eu pudesse pagar dez reais por uma camisa tamanho único ou R$ 0,99 por maçãs regadas com toxinas. Quando se conhece o céu, até a Suécia parece ser miserável.

27/12/2006

Miopia pura

Uma empresa deve seguir as leis, ter respeito pelos valores humanos e, no cumprimento destes, atentar para a própria sobrevivência. Discordâncias? Não? Continuemos então. Para sobreviver, deve estar atenta às necessidades do público, oferecer o que ele busca e incentivar novos talentos da área, formando a mais reluzente prata da casa, investir em publicidade e se aproximar da sociedade, dentro de suas possibilidades. Parece lógico? Mesmo? Para muita gente não.

Amigo de donos de bancas de revistas da cidade, vejo-os passando por um drama inusitado. O dono da banca, na verdade, só é dono do ponto, quem diz o que vai ou não expôr para vendas é a distribuidora. Acontece que a distribuidora em questão está fazendo a lição de casa ao contrário. Exemplos:

Revista de automóveis que mais tem demanda: Oficina Mecânica. O que mandam: Hot, que vende pouco; A Oficina chega com dois ou três meses de defasagem, muitas vezes eles pulam números para não "atrasar mais".

Revista de antigomobilismo com maior demanda: Classic Show. Já está com mais de um ano de defasagem e alguns números simplesmente não vieram. Terei que fazer algo que normalmente não faço em solidariedade com as bancas: assinatura.

O que eles mais mandam: revistinhas pornôs, das mais xumbregas, aquelas que o sujeito "usa" uma vez e depois transforma em papel higiênico, tamanha a qualidade do material; Revistinhas de fofoca tão ordinárias e mal feitas, que a maioria não chega a R$ 2,00, e são muitas falando exactamente a mesma coisa, na mesma banca e na mesma prateleira, competindo entre si.
De pouco ou nada adianta o público protestar e pedir as publicações que eles não entregam. Há coisas que preciso pedir do eixo Rio-São Paulo. Ou seja, terei que assinar alguns títulos.

Quem é o mercado que estão negligenciando? Mães e Pais de família (que são os verdadeiros detentores do dinheiro e não seus filhos), hobistas , colecionadores, gente que trabalha e tem poder aquisitivo. Isso não é resultado de pesquisas de alguma agência famosa lá longe e publicada nos programas matutinos, é constactação ao vivo e a cores em hi-fi. Há anos ouço a reclamação dos jornaleiros, de leitores frustrados e gente que viu meu acervo, não sabia que aquilo existia e não tem onde comprar. Notaram? "Não tem onde comprar". Pessoas com dinheiro na mão procuram publicações de seu agrado, tratar na banca mais próxima. Mas a publicação não aparece.

Parece fantasioso? Surreal? Se me contassem eu também custaria a acreditar. Mas a distribuidora em questão não só não atende às demandas de mercado, como jamais fez uma publicidade para incrementar as vendas. Ei, estou falando de propagando regional, não um intervalo inteiro da novela das 20h00 (que há anos não passa nesse horário). O público a que me refiro e que está órfão (não só de revistas) prefere aquelas emissoras menores, mais bem trabalhadas e com mais conteúdo...que cobram mais barato pelo espaço. Essas pessoas estão dispostas a pagar de R$ 10,00 até R$ 20,00 (quando não mais) por uma boa publicação que satisfaça suas necessidades culturais e de informação. Quando digo que existe ou existiu o que elas querem, mas não vem mais para Goiânia, dá até pena de ver suas expressões de descrença. Vejam o contraste: Vender seis ou sete revistas de R$ 10,00 em vez de vinte revistinhas que, muitas vezes, custam menos de R$ 1,00 e rendem menos de R$ 0,25 ao jornaleiro. Sim, é essa a magra margem de lucro de um profissional que vende muito menos do que tem capacidade, não por vontade própria, mas por um capricho de um monopólio. Eu gasto em média R$ 100,00 por mês em revistas, e não sou o maior cliente desse amigo. Imaginem o que ele venderia se tivesse o apoio de que precisa.
Mais: Muita coisa boa e actualizada chega à Brasília, mas não desce para cá.

Mais um contra senso: o tratamento aos profissionais supracitados. Eles têm um único horário fixo para buscar as publicações, todos ao mesmo tempo, não podem dar pitacos sobre o que querem vender, são tratados com descaso pelos funcionários e já ouvi relatos de gente que paga para ser atendida primeiro, mesmo chegando mais tarde. Parece até que estão fazendo um favor em deixá-los trabalhar... Mas já vi isso assegurado em algum lugar... Naquele livrinho cheio de leis que o congresso vota e o presidente sanciona... Ah, sim, a CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Blé! Vai ver eles não conhecem, se tratam a cultura desse jeito!

Recapitulando: Consumidor não tem o que quer comprar, jornaleiro não tem o que precisa vender, então só os dois saem no prejuízo, certo? ER-RA-DO. Se o público não compra, as editoras não vendem, gerando desemprego e reduzindo o padrão de vida de gente talentosa que se vê desestimulada a trabalhar. Ao contrário das revistas que já estamos cansados de ver na tevê, nos jornais e até em outras revistas, é muito difícil fazer uma publicação! Sai caro, principalmente pela carga tributária, já que há muitas etapas e profissionais independentes que emitem nota fiscal. Por isso a maioria das nossas revistas têm poucas páginas, poucos colaboradores e tiragens pequenas.
Em suma, os danos são maiores do que aparentam à primeira vista. A indústria cultural é um entroncamento importante para a economia, o país inteiro perde com esse descaso, pois com certeza não acontece só em Goiânia.
O que fazer? Bem, eu sozinho, berrando aos quatro ventos não vou comover o bolso desses sujeitos, ficarei aphônico e gastarei mais dinheiro com remédios. Em havendo uma onda maciça de reclamações e rejeição ao que querem empurrar, eles se verão obrigados a rever suas diretrizes, se é que têm alguma. Isso vale não só para a cultura, mas para todos os setores da economia. Quem não se sensibiliza com as dificuldades de seus próprios parceiros de trabalho, tem uma mórbida phobia de contrair câncer de bolso.

12/12/2006

Sem isso não tem negócio.

Um dogma, é preciso pelo menos um dogma forte, que controle a vida do fiél de tal modo que ele acredite estar seguro, sem perceber o cerceamento do livre arbítrio. Sem isso não tem negócio.

O messias é arroz-com-feijão, o fundador tem que ser o único e legítimo representante, senão o próprio. Deve também dizer que o Papa e o Lama são marionetes do demônio, mas principalmente atacar as religiões de cultos a elementais e o espiritismo, fervorosamente. Sem isso não tem negócio.

Cursos, muitos cursos. Quanto mais e mais focados nos dogmas, melhor. O fiél deve estar convicto de que está seguindo uma estrada dourada e que os conhecimentos adquiridos garantirão sua salvação. Sem isso não tem negócio.

Jovens, eles são imprescindíveis. Principalmente na adolescência, quando os hormônios impelem à transgressão. Devem ser convencidos de que estão fazendo a coisa certa, de preferência devem crêr cegamente que estão fazendo a única coisa certa, e que todos os que pensam diferente estão errados, com isso acreditarão que aquele grupo os compreende e que estarão fazendo uma transgressão santa. Sem isso não tem negócio.

As sedes devem ser o mais luxuosas possível, devem inspirar progresso, fartura, a ponto de placas enormes de mármore poderem ser jogadas fora, deixadas na calçada pública para qualquer um levar. O importante é que o fiél entre pensando "vou ser abençoado e vou ficar rico". Sem isso não tem negócio.

Jamais fale abertamente, mas os seguidores devem acreditar que estão acima das leis dos homens, procure, deturpe e invente passagens bíblicas que embasem essa teoria. Sem isso não tem negócio.


A ciência sempre será inimiga, a não ser quando for para comprovar que a cura do câncer linfático não teve relação com os procedimentos médicos. Ignore sumariamente que os músculos deixam sim vestígios nos fósseis, eles se prendem aos ossos pelas ranhuras e concavidades, exactamente como se observa em qualquer animal, inclusive nós. Mas o fiél, ainda que biólogo formado, deve desconsiderar o facto. Darwin era louco e ponto final, ai de quem refutar. Sem isso não tem negócio.

Aponde para si mesmo sempre que for falar do Salvador, mas de modo discreto. Isso age de forma subliminar e vincula a tua imagem à salvação eterna. Sem isso não tem negócio.

Tenha sempre alguma actividade de caridade, gaste dez reais em divulgação para cada real investido lá. Aliás, a mídia deve estar nos planos de aquisição, seja qual for, principalmente concessão de tevê. Sem isso não tem negócio.

Não permita, sob o pretexto de proteger a integridade psicológica e dogmática do fiél, que leiam o que a própria igreja não fornecer. Desestimule qualquer leitura não recomendada com os meios que foram necessários, sejam quais forem. Sem isso não tem negócio.

Cobre por tudo. Desde um copo de água que custará o mesmo que uma taça de vinho fino, pois é água santificada, até as cartilhas de lavagem cerebral que deverão ser muito bem elaboradas, para não darem pistas sobre o que realmente são. Sem isso não tem negócio.

Não sejas idiota. Não deixes nada de muito vultuoso no teu nome. Tenha laranjas, limões e abacaxis, se não quiseres meter o pé na jaca e amargar alguns anos de marmita na cadeia. Haverão muitos fiéis ávidos por se tornarem sócios simbólicos do Salvador. Sem isso não tem negócio.

Reze. Mas reze muito. Pois para onde vais, depois de enganar e atrapalhar a vida de tanta gente, teu dinheiro e tua lábia não valem absolutamente nada. No umbrau... Bem, lá não tem negócio de jeito nenhum.

09/12/2006

Serena

Ela nasceu tão frágil e pequena, mas também tão serena, quão feliz nós ficamos! Quase não chorava, também pouco sorria, mas o tempo se encarrega de devolver a alegria.
Passou o tempo e minha filha tão serena foi se tornando tão linda e tão educada. Mas pouco interagia com as crianças que chamavam para brincar, conversar, ela nunca ia.
Aos dois anos já falava com perfeição, seguindo os meus exemplos cuidadosos expressava um português maravilhoso, dizendo naturalmente versos dos mais primorosos.
Mas minha filha tão querida, se ao mundo encantava, dele parecia isolada, com a alegria perdida. Indiferente aos aniversários, indiferente aos esforços que fazíamos para agradá-la, sempre calma e compenetrada com seus olhares plácidos.
Por anos em terapia psicológica e médica, nem autismo, nem neuropatia ou qualquer anomalia que justificasse sua conduta tão métrica. Eu estava aflita, embora ela não.
Aos cinco anos já falava dezesseis idiomas, em todos alphabetizada. Começou a se corresponder com gente de fora, me deixando aliviada, mas permaneciam os sintomas. Seu sorriso era meigo, mas seu humor muito leigo.
Certa feita um espanhol veio para conhecê-la, se dizendo apaixonado pela dama tão nobresca que escrevia deste endereço. Chocou-se ao ver que a dama (rio ou choro?) de cultura nababesca era só uma criança que as fraldas mal havia deixado. Ele mostrou consternado as cartas tão bem escritas, de caligraphias tão bonitas, de conselhos tão sábios que o levaram a querer ouvir aquelas palavras de seus lábios. O pobre homem voltou desolado à Cataluña, nunca mais deu recado.
Serena crescia tão bela e inteligente, mas tão ingênua ao meu ver, parecia tristonha no que tinha a dizer, me perguntava onde teria sido negligente.
Na escola os amigos, tanto quanto os mestres aturdidos, se sentiam inibidos com o conteúdo de suas palavras que, para eles, tinham pouco sentido. A verdade é que Serena, em sua placidez, não travava diálogos com qualquer um mais jovem que seus pais, o que acentuava mais sua imensa lucidez. Mas saiu daquela escola que nada tinha a acrescentar, a aluna se tornara mestra dos que iam lhe procurar.
Uma noite, não me lembro qual, minha filha veio a mim no esplendor de seus doze anos perguntar qual era o meu mal. Me encontrara chorando sem poder disfarçar o meu rubror. Ela me olhou nos olhos e o que descrevo agora foi a mais poderosa experiência que já me abateu; Seus olhos castanhos luminesciam, quase me cegavam de tanta luz, mas também me prendiam, me obrigavam a ser sincera a despeito da vontade de preservar minha filha da aflição e receio que agora se calavam. O assombro era maior. O olhar sereno, penetrante, mas também calmante me deixou sem chão e contei. Ela sorriu como raramente faz e me falou "Eu? Eu triste? De onde tiraste tal disparate? Só porque não canto pela casa nem choro por garotos? Eu sou feliz". Tal afirmação me deu tremor, queria chorar e chorei, não sei se de alívio ou o que for, e ela continuou: "Eu sei que difiro, que a muitos assusto, mas é o que sou e não há recurso. Não penses que não tenho percebido tua tromba e tua preocupação, mas precisava te encontrar desarmada para ouvir não tua boca, mas teu coração, porque este não zomba se está ferido. De hoje em diante, vamos combinar, todas as noites vamos à varanda para conversar, desarmadas".
Na primeira noite eu não sabia o que falar, ela falou e me fez perceber que o problema que pensava estar em minha filha, na verdade era meu e não queria reconhecer. As tristezas que via nela eram minhas, meus sonhos frustrados, minhas flores secas, minhas ervas daninhas. Ainda assim não se poderia desmerecer o facto, Serena era diferente, e neste mundo quem é direfente tem primazia em sofrer.


Chegaram os quinze e Serena era quase uma mulher. Aceitou a festa, mas que fosse discreta, som baixo, sem um luxo sequer. Minha filha era austera e muito elegante, apareceu de toilleur branco e azul, com luvas e coque. Que choque. Os convidados babavam, mas por respeito ante a dama que se mostrava sem medo o seu jeito. Em pouco tempo, dos trinta que vieram, seis ficaram e souberam respeitar os recatos de meu rebento.
Meu marido trouxe um computador, instalou banda larga e entrávamos na era da internet. Menos de uma semana depois, Serena estava empregada, trabalhando pela rede. Trinta idiomas fluentes, mais dialetos diferentes, ligava Pequim à Nova Iorque, Munique à Moscou, Brasília à Berlim. Ganhava. Ninguém queria saber de sua idade, só de sua eficiência e disponibilidade. Mas nunca teve uma vida social de verdade, o que lhe confessei noutro fim de tarde, ela respondeu com serenidade "Mãe, não se preocupes com a transitoriedade. Esse trabalho é efêmero e logo começa o meu de verdade". Não compreendi o que ela quis dizer, mas antes de perguntar ela se pôs a esclarecer "Vocês dois não são muito religiosos, não sei se vais acreditar; sou tua avó, Batatinha. Estou na terra em missão e precisei reencarnar".
Não dormi naquela noite. Ninguém mais sabia do apelido que tinha quando muito criança, só minha avó me chamava de "batatinha", quando estávamos sozinhas. Procurei esquecer para não enlouquecer.

Minha irmã apareceu para nos convidar para uma comemoração do centro que freqüentava. Foi dar um abraço na sobrinha que ao computador trabalhava "Você vem, não vem?", "Vou", respondeu de pronto "Só não se esqueça do quindim, guarde ao menos um para mim", "Gente, a sua bisavó adorava quindim! Vou fazer uma fornada só para você". Fiquei assustada.
No sábado em questão, estávamos lá, Serena nucleando toda a atenção. Moça alta, de beleza rara, modos finos e cultura vasta. Quase se esquecia de sua idade. Mas fui me enturmando, me divertindo, esquecendo que era mãe de minha avó. Até que Serena chamou a todos para uma prece, nada mais natural em uma comunidade religiosa, mas nós nunca tínhamos rezado em casa. Ela começou "Pai, faça deste espírito o instrumento de Vossa vontade. Faça destes olhos os faróis de Vossa luz ao mar bravio deste orbe. Faça desta voz o clarim possante de Vossos ensinamentos. Permita que o Vosso amor nos cubra com a luz mais pura, que nossas sombras sucumbam ao bom uso de nossos arbítrios, que a sabedoria sublime da humildade nos torne os reis e rainhas que já fomos um dia. Pai, se estamos aqui é por nossos erros. Permita-nos beber na fonte fecunda de Vossa verdade absoluta, permita que nossos inimigos encontrem a paz, que nossos filhos trilhem o caminho da verdade e do amor incondicional. Pai, não sou mais do que uma fagulha semi-apagada de Vossa criação. Acenda minha luz para que eu possa levá-la aos irmãos que dela carecem, permita que meu pão possa alimentar a todos os meus semelhantes, para que ninguém saia da minha presença sem estar melhor do que quando chegou. Não peço, Pai, senão que me auxilie na jornada efêmera que ora trilho no orbe terreno, para que não ceda aos encantos pérfidos que o mal nos oferece. Este corpo não me pertence, Pai, por isso me resigno à sua perda quando for de Vossa vontade, até quando cuidarei dele para devolvê-lo na melhor forma possível. Pai, afaste de mim a ilusão, deixe que o amor ocupe o lugar da paixão, que o vigor e a persistência tomem o lugar do entusiasmo, que o gosto pelo conteúdo ocupe o lugar do vazio que nos vendem. Não Vos peço mais do que as condições para lograr êxito em minha missão, porque compreendo que Vós e eu somos uno, pelo que a minha felicidade é a Vossa felicidade, a minha dor é a Vossa dor, que me maltratando maltratarei também a Vós e a todos os meus irmãos. Agradeço, Pai, por ter retornado e recebido mais uma chance de reparar as minhas faltas, e se tenho algum defeito é porque o que me falta me poria em desnecessária tentação, conforme disse nosso Mestre Jesus. Muito obrigada, Pai, por ser Vossa filha!". Não suportei ter ouvido aquilo sem chorar. Quando enxuguei as lágrimas vi que mais gente também chorou. Compreendi que ela não era minha avó que voltou. Pois nosso parentesco é apenas um papel que se encerra no acto funesto, mas os laços que douramos persistem. Para a maioria presente era difícil vincular a sabedoria exibida ao aspecto vigente: rosto delicado, corpo perfeito, estatura elevada, cintura fina e boas medidas de quadril e peito. A beleza personificada era minha filha alí nobrescamente apresentada.

Hoje sou avó, nem cinqüenta anos completei quando minha neta entrou para a escola. Serena não se abalou com a viuvez precoce, "Era a hora de ele descansar" me disse de uma vez só. Se ela não parecia uma criança comum, eu deveria ter percebido, é que não há criança comum. Meu medo de ela fugir ao padrão me fez sofrer, por mim mesma ainda que não quisesse adimitir. Padrão se aplica à manufatura, jamais a uma filha ainda mais tão doce e pura. Por não me preocupar com o que os outros vão pensar, estou hoje mais jovem do que na infância que pus a lembrar. Seu único homem foi o marido, mas algumas de suas amigas foram mães ainda solteiras, nem por isso as tratava diferente, formando com elas uma equipe de obreiras. Piscina e biquini, tardes de entretenimento, Serena faz de tudo, só não comete as faltas de que tem conhecimento.
Pai, permita que eu tenha aprendido uma fração do que essa menina me ensinou
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25/11/2006

Guarde um pouco para o carnaval

Dezembro é reconhecidamente o mês em que os sentimentos de fraternidade mais afloram, e isso não é plágio de propaganda de tevê, as instituições filantrópicas atestam. Infelizmente elas também atestam que toda essa nobreza de espírito desaparece nos primeiros acordes do carnaval; as despensas esvaziam, os armários de remédios ficam às moscas e os assistidos caem com o choque de, sem mais nem menos, verem aquela fartura de doações e visitas desaparecerem como que por encanto.
Não estou fazendo campanha contra a diversão alheia, longe de mim, embora não participe da folia. Estou dizendo que a fraternidade não precisa estar presa a uma época, assim como a alegria não precisa estar presa às vésperas da quaresma. Não há lei que regule isso.
Notemos que as pessoas parecem ansiar por coisas que poderiam fazer no cotidiano, como dançar um pouco, depositar cinco reais na caixinha da igreja (chega daquelas notinhas de um real já cheias de remendos, pelo amor de qualquer coisa!), abrir mão de um happy hour para ir ver os filhos ainda acordados, dar um presente singelo sem a permissão da sociedade por não ser a época "adequada", abrir mão de um jogo para visitar uma creche. Tudo isso pode ser feito ao longo do ano, dando satisfação permanente, fazendo o capital girar permanentemente, diluindo o desejo de se entregar aos excessos, como se fosse a última oportunidade de abraçar alguém e cantar com ele.
Na época do carnaval a mendicância (constactação pessoal) cresce, as pessoas andam tão imersas em seus impulsos biológicos que se esquecem até do que estão fazendo daquele momento. Falta dinheiro para pagar os impostos à vista, mas surge do nada para encher a casa de garrafas de cerveja; Viaja-se longe para usufruir, com muito mais riscos, daquilo que muitas cidades oferecem em suas praças e lagos, praticamente de graça... Para não dizer de graaaaça, os petizes vão querer comer, mas com certeza será mais barato do que nos "points" badalados. Aliás, levar uma criança para um lugar onde ela vai se perder, se ferir ou coisa pior, é mesmo querer desocupar um cômodo em casa.
Os recursos aplicados na diversão e os aplicados na solidariedade fazem a economia girar do mesmo jeito, só que neste é com menos holofotes e menos criminalidade. Não estou vinculando as duas coisas, mas elas têm o mau hábito de se encontrarem em vias públicas. Pode-se organizar um baile no próprio bairro, que sairá ao gosto de quem vai, o que aproximaria em vez de afastar famílias. Não precisa esperar pelo natal para festejar com a sua gente, nem precisa encerrar por lá a convivência. Essa mesma convivência estimula olhar para além do umbigo, fazendo notar que as pessoas ajudadas em Dezembro não desapareceram com a virada do ano, elas ainda estão lá, um pouco menos famintas por enquanto, mas estão lá. Estão esperando alguém dizer que há vagas, mas enquanto isso não acontece, qualquer biscate já ajuda, muitos concordam em trabalhar por um prato de comida, se é o que pode oferecer pela capina ou por vigiar o carro. Estômago cheio inibe idéias arriscadas, como praticar um assalto, pois a fome (biológica ou não) é o primeiro vagão da criminalidade, que gosta de trens longos.
Sobra panettone na virada do ano, sobram brinquedos na virada do ano, sobra todo tipo de coisas que acabam sendo vendidas com descontos e vantagens. Não precisa abrir mão do chester e do champanhe, basta guardar um pouco, deixar a extravagância para o próximo natal (que será mais próspero, acredite e trabalhe nisso) e depositar em uma poupança ou porquinho o que foi economizado. Não só as finanças domésticas, mas também aquela carinha com uma janelinha no sorriso vai agradecer. Não só pelo novo presente, mas por não ter sido esquecida, por ter sido chamada pelo nome (ninguém se chama "psiu, coisinha") e por poder contar a mais alguém como foram o seu natal e o seu reveillón. Não quero ser piegas, mas estou compelido a sê-lo. Aquela carinha sapeca vai crescer e vai se lembrar do teu rosto, se te encontrar na rua. Elas sempre se lembram, nós é que damos pouca importância ao que fazemos por elas, acreditando que também vão se esquecer. O real dado àquela criança será restituido de uma forma ou de outra, e poderá ser a diferença entre a gargalhada de escárnio e o socorro que vai lhe prestar. Quem disse que dinheiro não conta? Se aplicado no autruismo, conta deveras.
Não fosse o bastante, é no povo que os políticos se espelham. Quanto mais egoístas somos, mas eles se sentem no direito de ser. Quanto mais equilibrados e autruístas formos, mais eles se verão na obrigação de ser, sob o risco de perder eleitorado. Não dependem deles as mudanças pelas quais esperamos, dependem de nós. É o povo e ninguém mais o guardião da liberdade e da democracia, que começam em casa, no cotidiano, em actos simples como não deixar a egrégora natalina perecer na virada do ano.

04/11/2006

Palavra de Nanael



Os dois em suas respectivas roças. Não eram matutos, tampouco tinham real necessidade de se mudar para o campo, mas escolheram viver lá.
No começo tudo foi dificuldade. Ela plantando rosas para vender e legumes para se sustentar, havia também um pequeno pomar que já estava lá antes de sua chegada. Ele plantando tubérculos e pimenta, criando algumas galinhas e também tinha um pomarzinho pré-existente.
Nada jamais foi, perdoem o trocadilho, um mar de rosas para nenhum dos dois, mas com o passar dos meses eles começaram a pegar o jeito para a coisa. Ambos prosperavam lenta e solidamente, no compasso da natureza, aumentando e diversificando a produção. Logo descobriram que cascas, pétalas e caules finos poderiam servir para fazer papel reciclado, passaram então a vender o que antes era refugo, aumentando a renda. Mas aqui acabam as semelhanças.
Ele, que sempre repetia para si mesmo que era homem humilde e rústico, só queria sobreviver.
Ela, que queria formar um patrimônio para poder criar filhos com dignidade, não era menos humilde, mas não confundia humildade com subserviência e cabeça baixa, queria progredir.
Nos dois primeiros anos os dois seguiam suas vidas em igualdade de condições, mas ele tomou uma curva e se distanciou da vizinha. Todos os anos ambos pegavam sacas de sementes e plantavam, no decorrer do trabalho as sacas esvaziavam e a carga ficava menor, assim como no decorrer dos anos o trabalho parecia menos extenuante. Mas ele só queria sobreviver, viu que já tinha mais do que o necessário para tanto e, no meio do plantio, abandonou as sementes. À sua frente, metade do campo ainda esperava pelo plantio. Vieram as chuvas e a terra fofa e fértil, revolvida durante a aragem, foi carregada pela água, indo parar no roseiral bem cuidado. Passou-se um ano e as dificuldades começaram a aumentar, como se eximindo de qualquer responsabilidade, procurou "amigos" para se distrair, nisso consumindo seus recursos.
No primeiro lustro a diferença era gritante, escandalosa até. Ele em uma tapera cheia de goteiras, com uma roça de fazer chorar de pena, as galinhas espalhadas a procurar por conta própria o que comer, no que comiam insetos contaminados com agrotóxicos e morriam, uma a uma, até a última. O último ovo acabou e ele agora só tinha os tubérculos e a pimenta para comer. Para quê mais? Afinal era homem macho, sem frescuras, comeria até fezes se fosse preciso. Pois começou a comer as das saudosas galinhas, já que tinha acabado com as frutas do pomar. Os amigos? Que amigos?
Ela já tinha a casa montada, com electrodomésticos, móveis de boa qualidade, um bom enxoval e uma propriedade de dar inveja aos contos-de-fadas mais floreados. Planejava comprar um carrinho, para poder visitar os amigos e parentes na cidade. Já tinha seu pé de meia, agora poderia pensar em casar-se e ter seus filhos, não mais do que três. Dois, de preferência.
Ele abandonou a roça e voltou para a cidade. Com certeza conseguiria um bom emprego, sempre conseguiu, por que não conseguiria agora? Porque o mundo não pára. De tanto se vangloriar de sua rusticidade, apegou-se a ela e não aprendeu mais nada. O que ele sabia fazer não servia mais. Ninguém queria pagar o equivalente a seis meses de aluguel em uma boa casa para ele, gente muito mais qualificada ganhava para três ou quatro meses, seis meses ganhavam os mais productivos e dispostos a aprender. O máximo que aceitavam lhe pagar era dois meses de aluguel em uma casa pequena e sem amenidades. Teve que aceitar.
Ela voltava da cidade feliz. Feliz por ter revisto entes amados e por ter de novo o aconchego do lar. Já não se imaginava sem aquela chácara. Não descuidava da beleza, afinal ninguém era obrigado a dar de cara com uma mulamba cheia de feridas, de pele rajada e cabelos de ariar panela. Cruz e credo! Ia à roça de luvas, botas, mangas longas e chapéu. Decerto que incomodava, mas o que fazer quando se é branquela daquele jeito, se mesmo os negros se protegem? Mas a armadura era só de manhã, para o serviço pesado que lhe esculpira as formas de pin-up. Após o almoço, com tudo arrumado, vestia seu vestido longuete meio-rodado, de meias mangas, seu chapéu de seda e passeava por entre seu trabalho, meditando e refletindo, coisas que a natureza fomenta em profusão. E pensar que até os doze anos tinha horror ao trabalho mais pesado. Pois agora o amava.
Primeira crise na empresa. Os menos necessários foram os primeiros a receber as contas, entre os quais ele. O dinheiro dava para três meses de teto e comida. Uma rara prudência o fez mudar-se para o barracão dos fundos e ganhou mais dois meses de prazo. Como estavam no meio do ano, o proprietário prometeu deixá-lo até janeiro; seis meses de teto. Mas teria que bater pernas como nunca. Um bico ali, outro acolá e ele ganhou alguns trocados, mas nem de longe poderia se comparar à vida que abandonou. Nem lhe passava pela cabeça que o pomar estava novamente repleto de frutas, que os tubérculos mais resistentes prosperaram e que a pimenteira deu cria, formando um pequeno pimental na entrada da chácara. Mas só os pássaros usufruíam de tudo aquilo. Passava-lhe, porém, pela cabeça, que sua vizinha sempre ajudava quando pedia. Agora se lembra dela. Saiu ofendendo-a, como se limpeza e boa aparência fossem crime, como se o progresso dela fosse a causa de sua derrocada. Como nada conseguira de relevante, decidiu ver como estava a sua roça. Não se preocupava com seus pertences no barracão, não havia o que roubar. Se brincasse, o ladrão até deixaria uma esmola sobre a mesa da saleta.
A cena comoveria, se alguém a visse. Mato, mato e mais mato. Tudo foi tomado pelo mato. Em um momento de ira ele arranca pelas raízes as invasoras, com uma fúria animalesca, como se focalizasse nas ervas daninhas a sua própria estupidez. Apesar de tudo é um homem forte, arrancaria qualquer mandioca com uma só mão. Amontoou tudo aquilo no ponto em que havia parado de plantar e ateou fogo, sempre em prantos. Pois chorou escandalosamente quando viu o que o mato cobria. As plantas estavam imensas! Os amendoins pareciam grandes cercas-vivas, as mandiocas passariam por mamoeiros, para um desavisado, as batateiras estavam lindas de morrer, o pimental que se formou estava mais amarelo e vermelho do que verde, de tão carregado, sem falar na fartura quase pecaminosa do pomar. Chorou como uma criança, sempre repetindo "O que foi que eu fiz da minha vida?" prostrado sob as folhas da mandioca. A casinha estava muito mal tratada, mas estava de pé. As vigas ainda estavam intactas, mas não havia uma só telha inteira. Pelos seus cálculos, o que tinha ali dava para viver um ano inteiro. Decidiu voltar. O trabalho que já tinha feito iria sustentá-lo até a próxima colheita. Pegou suas coisas na cidade, um pouco de dinheiro que tinha, comprou telhas de papel tratado e tornou seu rancho novamente habitável. Consertou e repovoou o galinheiro. Com o que sobrou, mais a fartura da chácara, viveria um e meio, dois anos sem o aperto que conheceu.
Mas antes de retomar seu caminho, precisava se desculpar com a vizinha. Ficou besta ao ver aquilo. As roseiras e os legumes renderam bem. Uma senhora veio atendê-lo, alertando que era funcionária e não mãe da moça. Mais uma vez chora pelo que poderia estar usufruindo hoje, se não tivesse saído do caminho seguro que tinha traçado. Lá no fundo, em uma cadeira de balanço, ela o vê...
- Tu voltaste!
Uma hora basta para acalmar o homem. Ela sabe o que uma pessoa faz quando bêbada. E já que está lá, apresenta-lhe o marido e volta a negociar productos por escambo. O casal trata de encorajá-lo, dizendo "Ainda bem que tu acordaste a tempo, e nem fizeste a besteira de vender tua chácara. Claro que o tempo perdido não se recupera, mas o teu plantio já é teu e ninguém pode tirar de ti".
Mais um lustro e ele consegue o suficiente para criar filhos com dignidade. Casa-se e tem o filho. Decerto que sua vizinha, que começou no mesmo nível e com uma actividade mais tímida e menos rentável, está muito à sua frente. Mas isso já não é motivo para chorar, é uma lição que pretende repetir exaustivamente para seu filho, para que não cometa os mesmos erros. Até porque não tem graça nenhuma cometer os erros dos outros, cada um que cometa os seus.

14/10/2006

A moça da Baviera

Andava tranqüila pelos campos. Gostava do sol tênue da Europa no rosto, embora a pele não ajudasse. Era muito clara.
Queria uma vida tranqüila e sem pretensões. Se perguntavam onde queria viver, não titubeava, soltava em uma só palavra: bayer. Pessoa de olhar calmo e sereno, não causava espanto em sua resposta.
Jovem e sem medo do trabalho, vivia feliz na terra dos teutões. Gostava de trabalhar, achava que não tinha nada melhor a fazer. Nos momentos de folga ia às feiras e festas, profícuas no berço dos celtas.
Ah, que tempos felizes! Nem mesmo as crises financeiras, a estupidez que lançara o país à recessão abalava sua moral. Se ouvia alguém orando aos céus, pedindo a solução para os problemas que afligiam seu povo, logo intrometia: arbeiten, arbeiten und arbeiten. Um prato por dia, dizia sempre, continuava valendo um dia de sobrevida e poderia ser retirado de qualquer quintal. Se alguém se dispusesse a fazer alguns tijolos em troca de algumas refeições, a economia estaria imediatamente recuperada, sem os melindres dos burocratas.
Ah, que tempos felizes. Lhe arrancava lágrimas ver uma criança tomando uma sopa, após um dia ou dois sem ter direito o que comer. Fosse judia, cigana, cristã, pagã, muçulmana, não importava. Bateu à sua porta, não sai sem suas necessidades satisfeitas. Por tudo isso era popular. Tinha o respeito da comunidade.
Mas no orbe terrestre, a felicidade é efêmera. Por tudo o que disse, tinha também a reprovação dos insanos, daqueles que insistiam em tomar um alvo para descarregar as argruras pelas quais passava apátria do trabalho. Para esses, trabalhar não bastava, era preciso trabalhar contra seus desafetos, ainda que nada lhes tivessem feito.
Ah, que tempos felizes! Essa gente medonha não tinha voz. Ainda que fazendo papagaios com o dinheiro corroído pela inflação, continuava-se a viver. Todos continuavam lutando, se recusando a dar a vitória de bandeja à morte.
Mas no orbe terrestre, a felicidade é efêmera. Veio uma voz em socorro dos insanos, falando a mesma língua, veio de fora, de outro reino. Veio dar uma direção perigosa a uma situação que, mesmo reversível, era tensa. A voz pôs veneno no rio Elba, envenenou a cerveja e todos ficaram surdos. ninguém ouvia senão àquela voz malígna. Então a roda girou ao contrário. Reergueu-se a matéria, mas o espírito ficava cada vez mais doente, delirante. Dormia-se em cama de faquir, acreditando que fosse de plumas, sem sentir o sangue escorrendo, do qual se alimentava a voz malígna.
Oh, que tempos tristes! Precisou abandonar as longas saias bordadas, as mangas bufantes, seu lindo vestido azul... e sua família.
A roda estava girando ao contrário e atropelava aqueles que, só querendo tocar suas vidas, continuavam a andar com o relógio. Era preciso tirar toda essa gente da frente e levar a campos mais seguros.
Foi assim que a moça popular e atraente se tornou subversiva. Pois subverter era, então, fazer o que era certo. Tal qual seus pais lhe ensinavam em sua infância, de educação severa, mas muito amorosa. Quando aprendera as prendas domésticas, o trabalho árduo, a dignidade pelos costumes austeros de seu povo.
A moça de cabelos negros, que rechaçava a fama, era então famosa. A moça prendada, de modos educados, agora corria, saltava e até matava, para não morrer. A moça de vestidos elegantes e pudorosos, via-se obrigada a correr de pernas à mostra, para não ser alcançada, usar as calças que odiava, as botas das quais nem queria saber, até então.
Tornou-se heroína. As vidas que salvou, a esperança que fomentou, a confortável vida na roda maldita que recusou. Seria rica, se quisesse; esposa de altos oficiais, se quisesse; teria empregados, se quisesse; seria heroína da pátria, se quisesse. Mas era heroína dos perseguidos, da pátria corrompida era traidora, maldita, prostituta dos judeus e da raça impura, a que dormia com negros e ciganos e pagava com a vergonha ariana.
Mas que falácia! Não queria ser heroína, nem mártir, nem coisa alguma mais do que era quando a cruz enlouqueceu e retroagiu. Queria a vida que tinha, seu marido, sua família, seu trabalho e seus planos para a velhice. Deixava para chorar quando estava só. No resto do tempo precisava dar esperanças aos que ajudava.
Sua cabeça estava a prêmio. Nenhuma surpresa. Nenhuma ruga de preocupação. Já estava preocupada demais, sua vida se tornara perigosa demais. Era apenas mais um detalhe feio e demoníaco da roda corrompida, que combatia sem nem saber o preço que estava pagando. Tinha a certeza de que se parasse para calcular, choraria em desespero e correria enlouquecida e sem rumo. Apenas trabalhava.
Mas o calo que mais dói sempre tem preferência. A encontraram. Sem escolha, mandou seus tutelados para um lado e correu para o outro, chamando atenção. Sem pensar, apenas atrasando ao máximo os perseguidores. Não sabe se seus tutelados se salvaram, sabe que foi pega. Desnecessário dizer dos abusos que sofreu, da violência maior que cometeram. Mas as ordens eram de levá-la para execução à Berlim, quando capturada. Ninguém mais sabia da captura, então relataram que reagiu, os desarmou e por isso foi estrangulada.
Houve festa pela morte da traidora, a prostituta da sub raça. Mas a roda corrompida cobrou seu preço, e já não havia a heroína a levantar a moral do povo.
Foi-se o corpo, só o corpo.