The American Look of 1945 by Nina Leen
Sarah visita a mãe
levando um pequeno pacotinho barulhento de carne e travessuras. Esther recebe
as duas de forma efusiva e calorosa, pega nos braços aquela bonequinha que dará
a primeira continuidade ao seu sangue e a balança com suavidade. Ela serve suas
descendentes, a pequena Maria com leitinho morno e à filha com chá de hortelã e
biscoitos de limão. As duas conversam amenidades em voz pausada para a
pequenina se familiarizar melhor com as palavras e o bom português decentemente
pronunciado, dando-lhe todos os afagos que lhes pede. A matriarca sobe aos seus
aposentos e desce em seguida com duas camisetas que mandou estampar…
- “Mamãe arquiteta
projetou essa estruturazinha linda”! Mama, eu amei!
Ester sorri
largamente enquanto sara veste a si e Maria com as peças, cujas colas em “V” e
os arremates de mangas foram customizados com flores ao estilo das culturas
balcânicas…
- Eu queria tanto
poder caprichar nos meus projectos como caprichei nessa bolinha de carne
barulhenta que tira meu sono todas as noites!
- O que te impede
de fazê-lo, Sarah?
- Os próprios
clientes, mama. Meu escritório tem uma salinha cheia de maquetes e sketches de
demonstração, mas eles preferem essas coisas que estão na moda… até consigo
aqui e acolá colocar pontos e detalhes de beleza e personalidade, mas nada além
disso…
- Que tristeza
repentina é essa, minha filha? Conte para sua mama.
Ela conta à mãe
com uma mágoa indisfarçada, até porque sabe que não adianta esconder seus
sentimentos de quem conhece até o modo de suas írises contraírem. Diz ouvir
muito que beleza, entre muitas outras coisas, é construção social e não deveria
sequer ser posta a público…
- Enganam-se! Essa
afirmação estapafúrdia não tem fundamento.
- Mas tem
narrativas fortes.
- Há aves pequenas
que cantam e são ouvidas a quilômetros, mas todos calam-se imediatamente assim
que vêem uma águia.
- Sei, mas como
dizer a um acadêmico cheio de títulos que ele está errado?
- Se ele estiver
errado, simplesmente diga que está. Somente Deus não erra, abaixo D’Ele, todos
são sujeitos a falhas, tanto mais quanto mais arrogante se for.
- Muitos deles são
ateus, então…
- Isso é
irrelevante. Esse tipo de ateu arrogante tem seus deuses, só que de carne e
osso. Sente-se, respire pausadamente para não preocupar Maria, vou servir-lhe
mais chá e biscoitos então explicarei.
Sarah se senta
acariciando a filha no colo, faz o que a mãe pediu então é servida com finesse.
Não se trata de elitismo, mas de autocontrole, utilizando-se da cerimônia do
chá para recuperar o centro e se colocar no comando das emoções…
- Minha joia,
antes de mais nada existe sim um padrão natural de beleza, que não é
absolutamente rígido, mas tem suas regras claras e escritas pela própria
evolução de cada espécie. Não se trata de futilidade estética, mas do resultado
de bilhões de anos de aprimoramento até chegar ao que melhor funciona para a
subsistência da espécie na nossa era. As espécies mais primitivas, como alguns
reptilianos, se atêm a quem se pareça consigo e que emane odores específicos,
mas até entre eles há diferenças fenotípicas entre o macho e a fêmea, que ajuda
um crocodilo a não se meter no território de outro macho da espécie.
- Horror! Horror!
Horror! Se eu tivesse dito algo assim na faculdade, teria sido decapitada!
- É com muito
pesar que eu acredito. Não é de hoje que vejo essa negação da beleza, desde os
anos setenta que grupos começaram a tratá-la de modo pejorativo e apontando o
dedo para as moças que se cuidavam. Sabia que já puxaram meu cabelo, me
acusando de sabotar as causas da liberação da mulher por “subserviência ao
namorado”?
- Putsgrila! A
pessoa não saiu impune, saiu?
- Decerto que não.
Precisei desfazer o coque e prender num rabo-de-cavalo, mas a criatura estúrdia
precisou de intervenção odontológica. E aqui vem outro ponto de nosso tópico; é
justamente corrompendo as guardiãs da beleza, nós, que os dejetos genéticos
conseguem numerário para seus fins espúrios. Incentivar a anorexia e a bulimia,
acusando de preconceito e intolerância até mesmo aos médicos que se opõe a
isso, faz parte dessa doença. Ponha uma coisa nessa sua cabecinha ainda tão
jovem, que mal fez dezoito e já nos deu esta pequena bênção: Beleza é natural e
essencial. Como eu disse, cada espécie tem a sua, e nisso reside sua
relatividade, não nas narrativas de gente revoltada com o mundo que as
sustenta. À parte os excessos, incentivados justamente por essa gente, a beleza
humana tem sim um padrão com boas margens de tolerância; para mulheres é de
feições delicadas, busto farto, cintura fina e quadril largo; para homens é
feições severas, peito largo, braços fortes e postura altiva. Basta ver em
agrupamentos mais primitivos e reconhecerá esses padrões, com maior ou menor
intensidade, mas estão sempre lá justamente porque funcionam.
- E a senhora?
- Eu o quê, Sarah?
- Esbelta!
- É a minha compleição
(risos)! Mas veja, não me furtei o direito a camadas salutares de gordura, isso
me esculpiu… Sim, mesmo assim sou um tanto esbelta, mas nunca quis ser a
gostosona do bairro.
- Nem na sua época
de adolescente revoltada?
- Nem naquela
época. Minha mãe me ensinou a ser crítica com o que vem de fora, isso me ajudou
a ver que os grupos que tentavam me cooptar não eram diferentes dos outros, um
lado me via como objecto, o outro como instrumento. Aprendi a me arrumar para
mim, para gostar do que vejo no espelho, só depois de grandinha é que percebi
que isso agradava aos garotos.
- A senhora me
ensinou isso também…
- E espero que
você ensine Maria.
Uma pausa, mais
afagos em Maria, mais uma fornada de biscoitos, desta vez de chocolate, e mais
um pouco de chá. Falam um pouco sobre Jacob e sua luta para fazer propagandas
acima da linha do medíocre, ele sempre se lembrando com pesar da genialidade
simples que eram os reclames do Fiat 147, em comparação com o lixo caro e
caótico que usam para promover os carros de hoje, que não são muito melhores do
que suas campanhas publicitárias…
- Eu compreendo e
oro por meu filho, para que tenha forças e discernimento, porque sei muito bem
em que ninhos de serpentes ele precisa pisar todos os dias. Lembre-se, Sarah:
Um simples elogio não é por si mesmo um assédio, gostar do corpo feminino
saudável não é machismo, tem mais afinidade para um fenótipo do que para os
outros não é racismo, ficar horas admirando um corpo nu em uma revista não é
estupro… tem outros nomes, mas nem de longe
é uma violência dessas…
- Ra! Ra! Ra! Ra!
Ra! Ra! Ra! Ra!
- Eu chamaria essa
fixação, de modo elegante, de puerilidade compulsiva… mas voltemos ao assunto… Aquela frase
desprezível “a quem a biologia serve” é mais uma invenção dos negadores da
beleza, repetida à exaustão por gente que repete bordões alheios pensando que
tem pensamento crítico. A biologia não serve a ninguém, ela não precisa de nós,
existe desde antes da primeira cissiparidade, já agia nos coacervados para
evoluírem até formarem os primeiros seres vivos. A medicina é sua filha
primogênita, tudo o que ela faz é seguir os ditames da mãe para não cometer
erros que não possa reparar. Você sabe como surgiu esse padrão de beleza que
temos hoje no ocidente?
- Hollywood?
- Não. Por
incrível que pareça, não foi obra de uma mídia. Foi nos anos 1940, quando a
ciência passou a se valer de métodos mais rigorosos de pesquisas, o que
infelizmente acabou gerando mais impessoalidade do que o necessário, mas deu
frutos de que nos servimos ainda hoje. Uma dessas pesquisas revelou o que seria
o corpo perfeito, do ponto de vista da saúde, e o resultado foi algo muito
próximo do padrão natural de beleza humana; nada de esqualidez e tampouco
excessos de adiposidade, mas simplesmente um corpo equilibrado com musculatura
moderadamente desenvolvida, um pouco de abdômen, no caso do corpo feminino mais
sinuosidade, postura erecta e olhar altivo. Como modelo se utilizaram de uma atleta,
mas uma mulher tipicamente americana, sem nada de extraordinário em suas
medidas e nem mesmo com um rosto particularmente bonito. Isso coincidiu com os
valores de uma década que estava emergindo da grande depressão, a austeridade
em todas as áreas ainda era vista como demonstração de civilidade e elegância,
numa época em que elegância era parte do padrão social de beleza. Inclusive
recentemente um corpo assim foi classificado como perfeito pelos cientistas, da
modelo Kelly Brook. Ela não é uma atleta, como os escolhidos para as pesquisas
nos anos quarenta, é simplesmente um corpo perfeito, mais sinuoso e macio do
que na época. O atletismo antes dessa onda de doping, por ser sinônimo de
saúde, foi o padrão utilizado como ponto de partida para o que divulgaram
porque era um bom exemplo para a juventujde. O resultado é que por décadas o
corpo curvilíneo e bem tonificado foi objecto de desejo das moças.
- E as gordinhas sofreram.
- Em muitos casos
sim. O prêt-à-porter adorou o que considerou uma padronização do corpo humano,
sem atentar para a flexibilidade de proporções que esse corpo perfeito permite,
por outro lado isso garantiu o trabalho das costureiras que ajustavam as peças.
Mais padronização, menos custos de produção, isso é óptimo para a fabricação de
máquinas e insumos, mas não tanto para vestuário. Com a dificuldades em
encontrar números adequados, especialmente as mais jovens, o humor de mal gosto
teve início oficial, o resto nós já sabemos.
- Os cientistas
com a melhor das intenções apontaram um norte…
- E os picaretas
da moda transformaram uma estrada reta num labirinto. Claro que os ideólogos
viram a oportunidade perfeita para cooptar pessoas com cujas lágrimas as
pessoas não demonstravam compaixão, eles também não dão a mínima, mas fingem
magistralmente que sim e guiam essas pessoas para outro labirinto. O mote é “Se
agrada ao meu inimigo, é ruim”, mesmo que até então agrade à pessoa em questão
também, de então em diante passa se reprimir para odiar. Assim começam a se
encher de tudo o que não presta, seja comida, bebida ou drogas, para se afastar
da harmonia de proporções que caracteriza um corpo saudável, porque o inimigo
da causa aprova.
- Nem tudo é
construção social…
- Não, na verdade
o espaço para “construção” é mais estreito do que parece, as condições em que
um ser humano consegue sobreviver são restritas, qualquer abuso comprometeria
irreversivelmente a sobrevivência do indivíduo, por conseqüência também do
grupo que integra. Os povos primitivos precisavam ser pragmáticos, se apegar ao
que funciona e descartar o que não funciona, não existia mídia naquela época,
foi assim que todas as tradições nasceram, e em todas elas a beleza tem papel
central. O uso de coincidências como se fossem provas, à moda de advogados
baratos de porta de cadeia, é uma das vigas frágeis desse chassi de vidro que
sustenta essas narrativas negacionistas, e por isso defendem-nas com tamanha
ferocidade, não admitindo que a outra parte tenha espaço para se expressar; no
fundo, sabem que é tudo mentira, como num casamento de conveniências. Não
precisamos que revoltados e picaretas nos ditem o que é belo ou não! Nós
sabemos instintivamente o que é belo aos olhos humanos, um corpo harmonioso é
belo e a beleza não é um crime.
Sarah acaricia as
bochechas da filha, pensando em que tipo de mundo ela vai crescer, se desde que
se sabe por gente ele só tem piorado. Se lembra de quando participou de um concurso
informal de pinups no colégio e, justo na sua apresentação, o salão foi
invadido por gremistas que queriam reprimir o evento e proibir futuros,
gritando palavras de ordem sem dar chance de resposta, apontando dedos e
acusando os presentes como se fossem criminosos, apesar de todos terem
participado por seu próprio arbítrio; ninguém interferiu nos protestos pró
drogas que aqueles fizeram dias depois. Fizeram outro concurso depois, em
ambiente privado, mas aquilo não lhe sai da memória, nem a intervenção furiosa
de seus pais na sala da reitoria. Ela olha para a mãe e toca no assunto…
- Eu acompanhei a
vida de cada um deles, naquela época… metade já morreu de overdose.
Sarah arregala os
olhos em uma expressão de terror que não surpreende Esther.
- Adivinha se
houve mea-culpa ou mesmo um lamento pelo caminho que os idiotas escolheram…
- Aposto que não…
exigiam respeito sem ter que respeitar a decisão alheia. Quando descobriram que
eu fui premiada no estilo Alberto Vargas, apareci como pária no jornal do
grêmio.
- Como foi quando
decidi ser exclusivamente dona de casa. Meu corpo, minhas regras. Eu decidi
preservar o que é naturalmente feminino em mim, e foi por isso que as
pistoleiras se viram no direito de tentar sabotar meu casamento… e havia
feministas incentivando, justo aquelas que me jogaram pedras na escola…
Sarah suspira
fundo, vê nas edificações modernas os resultados disso, tem verdadeiro horror
por fachadas de vidro, tanto pelo racionalismo patológico de conjuntos
habitacionais financiados pelo Estado…
- Assumir a beleza
é um risco.
- É um risco… muita
gente usa da própria inveja para insuflar essas manifestações, fazendo
direitinho o jogo dos cafajestes, que têm a chance de aprisionar uma mulher
bonita que se sente culpada por sê-lo. Irônico, não?
- Não, nem um
pouco irônico. É hipócrita mesmo.
Esther anui. Sarah
dá o bebê à mãe e se levanta, vai ao espelho da sala, ajusta a camiseta e se
admira, nota os glúteos que se formaram com as inúmeras vezes diárias em que
sobe e desce os três andares que separam seu escritório do térreo, arregala os
olhos, puxa uma perna das calças e nota a tonificação da perna, escancara o
sorriso e olha para a mãe, que aplaude sendo imitada pela pequena…
- Quer saber? Vou
encomendar um ensaio photográphico.
- Estou ansiosa
para ver você finalmente assumir a sua beleza!
- Espera! Fique
assim, do jeito que está!
Sarah saca o
celular, abre a câmera e pega distância. Enquadra bem a cena explícita de
feminilidade de sua mãe de vestido médio azul claro com a neta no colo, naquele
sofá minimalista em cinza mescla claro, com flores nas mesas laterais e o
jardim ao fundo. Ajusta a exposição, dá a maior resolução possível e presenteia
a família inteira com aquela cena. Esther enrubesce, mas não perde a pose.
Nenhum comentário:
Postar um comentário