20/04/2021

Pés-de-boi em extinção

 

As rodas de liga leve foram pagas à parte.

A respeito dos últimos e salgados aumentos nos preços dos carros, não é culpa só das montadoras. Elas querem vender, é disso que vivem, mas sabem que não podem cobrar o preço de um Rolls Royce por um Mobi. Assim como nós queremos receber o máximo possível pelo mínimo possível de horas de trabalho, elas também querem valorizar o que oferecem, mas sabem que isso tem um limite. Sim, dá para fazer um carro robusto e confiável para vender por menos de quarenta mil reais na concessionária, zerinho e reluzindo a tinta da fábrica. Tecnicamente é perfeitamente possível até por menos, mas esse preço baixo teria um custo alto que vocês não poderiam pagar mesmo que quisessem; e eu sei que não querem. Por isso lamento informar que os carros realmente baratos estão em processo de extinção, não compensa mais investir neles. Para entender isso, precisamos ver o que encarece tanto um automóvel hoje, mas me aterei àquilo que simplesmente não pode ser retirado do carro, sob pena de nunca ir às ruas. Temos primeiro os itens de segurança activa e passiva, que são os grandes responsáveis pela proximidade de preços entre um pé de boi e um carro de acabamento médio. Não se trata só de instalar, é preciso testar DESTRUINDO protótipos no decorrer do desenvolvimento do modelo.

 

A célula de sobrevivência é projectada para suportar colisões em velocidades consideráveis sem permitir que os ocupantes sejam atingidos, o que acarreta não só aumento de peso, mas também exige que outros componentes sejam superdimensionados, o que constitui uma imensa dor de cabeça para a engenharia, que não pode permitir que um Ônix Joy fique tão pesado quanto uma Suburban, isso acaba excluindo o uso de aços mais baratos e fáceis de serem trabalhados, que precisariam ser empregados em grandes quantidades, agravando ainda a falta de espaço interno. É preciso utilizar aços mais nobres e estamparias mais sofisticadas, mas tudo isso equacionado para que os custos não sejam proibitivos para o público do modelo em questão. Então uma vez a estrutura de proteção escolhida, já conformados em pagar alguns milhares de bolsos a mais por isso, o carro pode ir para as ruas? Não!

 

Por mais forte que seja a estrutura, é a desaceleração brusca que mais causa ferimentos em uma colisão. Não importa a velocidade, se a parada for suficientemente suave, os ocupantes sobrevivem. É necessário haver zonas de deformação progressiva, para que os danos sofridos pelo veículo dissipem o máximo possível da energia da colisão; é por isso que se diz que o para-choque de uma moto é o motociclista. Os testes que resultam na destruição dos protótipos visam encontrar o ponto de equilíbrio entre o tamanho do capô e a máxima absorção possível, sem que o interior do carro seja gravemente afetado, isso é particularmente complicado em carros compactos, e também por isso eles decidiram não investir mais na Kombi porque, né… a zona de deformação ali é zero… O ideal seria mesclar o uso de aço com boas ligas de alumínio, que também é abundante e muito fácil de fundir, mas estampar o alumínio é quase um pesadelo, exigindo matrizes especiais e mão de obra mais qualificada, por isso peças feitas desse metal são tão mais caras.

 

Ainda temos equipamentos de segurança activa que são altamente problemáticos não só para comprar, mas também para instalar, especialmente porque a maioria é de tecnologia relativamente recente, por isso mesmo ainda cara; ABS, airbag, ARS, controle de tração e mais uma penca de equipamentos que em breve serão obrigatórios em todos os automóveis novos de produção em massa no Brasil. O problema é que eles precisam conversar entre si, e compatibilizar tantos sistemas diferentes rouba meses de estudos e testes exaustivos… e caros. Tudo seria mais simples se não precisassem de softwares, mas precisam e nenhum deles é para amadores. Ainda há o facto de que vai demorar para serem equipamentos leves e compactos, eles tomam espaço, tiram capacidade de carga e exigem mais do alternador, o que se reflete no consumo, não só no conforto, fora a fragilidade mecânica e sensibilidade climática de tudo isso, simplesmente não podem ser molhados, o que exige tirar espaço no cofre do motor e do porta-malas para não tirar dos ocupantes, só que isso pode inviabilizar, vide os Land Rovers, uma manutenção sem equipamentos complexos e ainda transformar o porta-malas em um porta-luvas, e tome mais ansiolítico para a engenharia.

 

Não bastasse tudo isso, para essa tralha toda ser eficiente, é necessário um nível mínimo de qualidade na construção e montagem, com isso ela fica menos onerosa para um grande carro de luxo do que para um compacto popular, e por isso este nicho está ameaçado de extinção, pois está praticamente no limite para absorver os custos de tudo isso sem se tornar inviável. O facto de não haver uma empresa que fabrique todos esses equipamentos em uma só linha de montagem, bem como não haver um módulo único que faça o serviço de todos eles, o que seria tão arriscado quanto caro para um investidor, ajuda a atrapalhar. Não se pode esperar uma redução de custos sem perda de segurança e qualidade antes que uma dramática evolução de software e hardware aconteça, e isso ainda demora um tempo para ser dramática o suficiente, até lá o Ônix vai sofrer para manter seu preço suficientemente abaixo do Cruze.

 

Todos os fabricantes sonham em poder utilizar os racionais, compactos e baratos motores dois tempos refrigerados a ar em seus carros, isso por si já reduziria muito os custos de produção e manutenção, mas nem em sonhos um carro com um motor desses seria aprovado na mais porca das legislações ambientais, não com o combustível padrão disponível. Não é só a adição de catalisadores e injeção electrônica, quem dera isso bastasse, é preciso que esses dois itens sejam também testados e maltratados até a destruição para que sua eficácia seja comprovada. Vale ressaltar que o catalisador, além de cerâmica sofisticada, se utiliza de metais raros, e caros, para cumprir com sua função. Também por isso, e pela fragilidade inerente, não pode ser instalado de qualquer jeito e nem em lugar inacessível, pois precisa manter a temperatura sob controle para funcionar sem ser danificado, o que demanda interferências no layout do monobloco. Lembram do Fusca Itamar? Precisaram deslocar o silencioso para dentro do para lama esquerdo, para o catalisador caber. Sorte que o conceito dos anos 1930 permite isso, e ambos ficaram em lugares bem protegidos sem subtração do escasso espaço interno do Fusca, em um carro moderno isso é bem mais complicado e por isso os antigos menos antigos do que o Fusca virtualmente não teriam conseguido voltar a ser fabricados nem como lotes promocionais.

 

Ainda no tocante às emissões, é muito difícil para mecânicas antigas e consagradas, que já tiveram seus custos de desenvolvimento pagos pelas vendas e por isso seriam extremamente baratos para serem utilizados em versões de entrada, se adequarem às normas de emissões; também por isso a kombi perdeu o motor a ar, mesmo contando com injeção, bem antes de sair de linha. A questão não é só queimar o combustível, mas queimar de modo que as reações no interior da câmara de combustão resultem em níveis aceitáveis de gases nocivos, algo para o qual os limites decrescem rapidamente, em breve os derivados do petróleo não conseguirão mais atender à maioria das legislações. Se há, por exemplo, uma variação significativa de temperatura no interior do motor, como acontece nos refrigerados a ar, o controle electrônico fica menos eficiente e o trabalho do catalisador é prejudicado. Da mesma forma a maior formação de pontos quentes dentro do motor dificulta o uso de gasolina comum, assim como o trabalho de monitoramento da injeção, o que levou as fábricas a reduzir deliberadamente as potências desses motores em seus últimos anos de produção, para contornar o problema e manter o produto em linha o máximo possível. Seria como uma Montana utilizando o motor 151 quatro cilindros que foi do Opala, que tem força bruta e confiabilidade de sobra, mas não atenderia às leis ambientais. Sim, há meios para equacionar isso, mas para a maioria das pessoas, e presidentes de companhias são pessoas, simplesmente não compensa.

 

Mas o que mais dificulta a vida de quem sonha em produzir um modelo popular no Brasil, talvez seja justamente o consumidor brasileiro. Não dá a mínima para equipamentos de segurança e controle de emissões, mas ama ostentar! Para terem uma idéia com acento que é o certo, quando a GM decidiu lançar o Celta, teve o bom senso de consultar o público alvo. Seria uma das poucas vezes que o consumidor realmente ajudaria a projectar o carro que iria comprar meses depois. O pé de boi que a engenharia tinha em mente foi descartado. Imaginem o Celtinha velho de guerra com um painel pobre como o do Fusca, só velocímetro e marcador de combustível, com retrovisores e lanternas traseiras perfeitamente simétricos, de modo que servissem de qualquer lado. O acabamento interior exclusivamente de plástico rígido e porta-malas totalmente pelado. O banco traseiro teria penas dois cintos, pois seria para quatro pessoas, e não permitiria o rebatimento fácil que transforma um hatch subcompacto em um furgãozinho, para isso seria preciso tirar o banco do carro, e nada de console central de tipo nenhum. O sistema de ventilação seria mínimo, apenas para manter os ocupantes vivos, só haveria um paras sol de plástico rígido para o motorista. Ah, claro, para racionalizar a linha de montagem, haveria só a versão de duas portas. Teria sido significativamente mais barato, mas como sabemos, não foi isso que o consumidor decidiu, preferiu pagar mais. Se já tem manolo reclamando que as caixas de rodas dele são muito pequenas para as rodas que eles querem usar... Ainda há um agravante, um carro muito básico precisa de uma tiragem gigantesca para que os investimentos e a apertada margem de remuneração da fábrica sejam pagos, ou seja, o Celta teria morrido logo se não tivesse sido o sucesso que foi.

 

Se pensam que isso é um pé-de-boi de fazer inveja aos carros militares, ainda há meios de depenar e baratear mais. Por exemplo, tirando a máquina do vidro das portas, que então seriam de correr, como nos antigos caminhões Mercedes 608 e na Kombi corujinha, basta ver os ônibus urbanos para saberem o que é. Os bancos poderiam ser apenas conchas de plástico minimamente estofado, impossibilitando qualquer regulagem que não fosse de distância do volante, o que seria exclusivo do motorista. Já imaginaram ter que fazer muita força para frear? Ou então ter que pisar bem fundo num pedal de curso muito longo? Seriam as opções para compensar a falta do hidrovácuo, que é o aparelho que ajuda a frear sem que isso se pareça com uma aula de musculação. E por falar nisso, que tal ter que parar totalmente o carro para engatar a primeira marcha? A não ser que seja um motorista muito experiente e habilidoso, para compensar a falta dos caros anéis sincronizadores, que nos permitem passar as marchas às vezes mal pisando na embrenhagem. Tapetes? Que tapetes? E o porta-luvas pode muito bem ser apenas um buraco maior, sem tampa, assim como a luz de cortesia poderia funcionar apenas com intervenção humana, sem essa de ligar quando se abre a porta e desligar quando fecha, instalação eléctrica é coisa cara! Não podemos nos esquecer das rodas com apenas três parafusos e de usar os mínimos pneus 145R80, que foram do Fiat 147. Parece estranho? Há países em que um cidadão de baixa renda não se importa em ter que esticar o braço para regular o retrovisor do outro lado, neles os carros mais espartanos do mundo gozam de relativo prestígio.

 

Ainda há uma solução que faria vocês jogarem pedras em quem sugerisse, que é utilizar eixo rígido na dianteira. Explico, trata-se de trocar a suspensão relativamente complexa da dianteira, que torna o carro mais fácil e confortável de ser controlado em pisos ruins, que são a regra em nosso país, por uma barata e robusta barra que ligaria rigidamente as duas rodas, assim o que acontecesse com uma se refletiria na do outro lado, e no volante, tornando qualquer irregularidade no asfalto um pesadelo cacofônico dentro do carro, fazendo tudo tremer a cada trepidação. Claro, isso seria coroado com um ou dois feixes de molas transversais em cada eixo, substituindo as confortáveis e caras molas helicoidais; sim, perto do que eu estou descrevendo, o Celta é um Opala. Nos anos setenta eu passei por isso, ainda havia carros em que um pneu fofocava sobre o seu lado do piso para o outro e para o volante. Se serve de consolo, essa receita tornaria o carro mais rápido, ágil e econômico, além de baratear muito a manutenção...  Mas é claro que vocês preferem pagar vinte mil reais a mais para não passar por isso! Mesmo que percorressem rotineiramente estradas de boa qualidade entre condomínios de luxo, vocês não tolerariam ser vistos em um carro assim! Mesmo que uma boa calibragem atenuasse muito os problemas de conforto, e isso uma montadora consegue fazer sem dificuldades, vocês não tolerariam descer um degrau social ainda que fosse bom para vocês! Então paguem!

 

Sem todos esses supérfluos que vocês amam, e se a lei permitisse, os carros populares poderiam ser assim: